Ariano (publicado originalmente em 5/8/2014)
‘Dizem até que sou hermética’. Com esta frase, dita numa entrevista em 1977 para a TV Cultura, Clarice Lispector tentou se definir, ou explicar o modo de sua escrita. Podemos afirmar que Ariano Suassuna era completamente o oposto. Nada tinha de fechado, lacrado ou estranho.
O dramaturgo paraibano-pernambucano era fã de Ozymandias, soneto de Percy Bysshe Shelley, publicado em 1818. Para descrever a imagem da estátua de Ozymandias, apelido grego do faraó Ramsés II, Shelley recorre a temas como arrogância, abuso de poder e a eternidade da arte. O trecho final do poema diz: “‘Meu nome é Ozymandias, rei dos reis./Contemplem minhas obras, ó poderosos, e desesperai-vos.’ / Nada resta: junto à decadência das ruínas colossais, / ilimitadas e nuas / Areias solitárias e inacabáveis estendem-se à distância.” Suassuna era isto.
Admirador de Shelley, poema inglês, Ariano era contra estrangeirismos. Não confunda uma coisa com a outra. O que ele não admitia se definia nas palavras de fora por aqui, daquelas marcas famosas estadunidenses que povoam nosso dia a dia. Numa entrevista para o jornalista Roberto D’Ávila, criticou Andy Warhol, Michael Jackson e Madonna. Ele podia. E como podia.
O ‘Cavaleiro do Sertão’, apelido de toda trajetória, fez por merecer a alcunha. Batalhou como Dom Quixote (outro livro de sua estante) os muitos ‘moinhos de vento’ que insistiam em crescer à volta. Claro, a maioria absurda o conhece como o autor de ‘Auto da Compadecida’, a peça escrita em 55 com diversas adaptações à TV e cinema, a mais famosa de 2000, com Selton Melo e Matheus Nachtergaele na crista da onda. Porém, o universo suassuniano vai além disto.
Em suas obras, nada de homens simples em busca de finais felizes, com a parceria das mocinhas empedernidas e doces. Basta nos lembrarmos de João Grilo e Chicó. Ou então de ‘O Santo e a Porca’, ‘A Pena e a Lei’ e ‘A Farsa da Boa Preguiça’. E ariano tinha fixação pela morte, apesar de denunciá-la como criminosa. Seu pai morrera assassinado na revolução de 30. A ira da polícia o fez refém de uma busca: a do pai desconhecido, não frequentado. ‘Quando eu não sabia o que fazer com meus personagens, matava eles todos. Até no Auto da Compadecida, uma história cômica, as pessoas morrem todas’, dizia, divertindo-se de sua veia fúnebre, sem querer.
Conhecido também por sua poesia, o escritor, certa vez declarou, sobre a preferência do povo por atrações de qualidade duvidosa: ‘Quando o dono de um cão dá ao bicho apenas osso, a vida inteira só osso, o animal se acostuma com aquilo e nem sabe de mais nada. Agora, quando o dono se aproxima com o filé, o cachorro sente o cheiro de longe e, a partir daí, não vai querer mais o osso pra comer. O que ocorre hoje em dia com o Brasil é que dão osso demais pra todos. Quando derem filé, tudo mudará, pois as pessoas ficarão mais exigentes.’ A definição é perfeita.
Nas aulas-espetáculo que dava Brasil afora (jamais viajou pra fora do país), espalhava a cultura popular, divulgava o Movimento Armorial, sua menina-dos-olhos, e fascinava o público com carisma, humor refinado e gingado preciso. Sim, ele dava passos de touradas no show. Eu tive a chance de vê-lo ao vivo em 2011, quando passou por Jacareí. Jamais me esquecerei. E as lembranças são mais fortes porque pude entrevistá-lo, tête-à-tête, mesmo que por dez minutos.
As lições são a se levar até o esquife. Torcedor do Sport de Recife, membro da Academia Brasileira de Letras, namorado pra sempre de dona Zélia ‘desde 20 de agosto de 1947, estamos assim até hoje’, como ele afirmava, Ariano Suassuna conseguiu cobrir a lacuna do Nordeste e a linguagem ficará associada ao povo, que Eduardo Coutinho pôs em frente à câmera em ‘Cabra Marcado pra Morrer’. O Brasil fica burro, mas somos consolados porque Ariano era brasileiro.