Auguste de Saint-Hilaire - equívocos interpretativos da realidade colonial do interior do Brasil
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Auguste de Saint-Hilaire - equívocos de interpretação da realidade colonial do interior do Brasil
Conversando com colegas sobre coisas da cultura de Goiás, chegamos acidentalmente a declarações de Auguste de Saint-Hilaire, sobre a população da província de Goyaz, no início do século XIX no seu "Viagem às nascentes do Rio São Francisco e pela província de Goyaz - 1º volume".
Admirável e esperto naturalista (colhia e enviava acobertadamente espécies medicinais da flora do cerrado para Martinica e Caiena, territórios franceses nas Antilhas), sou da opinião de que foi de uma incapacidade atroz, quando descreveu a população humana e os costumes do interior do pais.
Do que viu em Goiás, por exemplo, registrou , entre outras, com alguma empáfia e má vontade, que as goianas eram feias, que os homens eram vadios, as cidades eram pútridas e, que as famílias e, que as pessoas eram tão pobres que "comiam de mão" e, que as famílias se enfurnavam nas zonas rurais distantes, fugindo da agrura da sobretaxação de impostos.
Provavelmente, meias verdades.
Saint-Hilaire viu uma realidade que não soube compreender nem retratar: o momento precioso em que o ciclo do ouro estava sendo sucedido pelo ciclo agropecuário e o impacto que isto gerava na população e cidades do interior.
Nas cidades onde o ouro era a fonte de renda, muitos homens viram-se de repente, sem atividade econômica ou emprego (exceção feita à mão de obra escrava, evidentemente que, é sabido era bem pouco usada nas atividades auríferas). Muitas famílias empobreceram rapidamente. O declínio abrupto da renda impactou fortemente os usos e costumes familiares e aí, mulheres se viram impossibilitadas de cuidar adequadamente de suas muitas e adoráveis vaidades.
Certamente que as cidades coloniais não primavam pelos rigores na higiene. Mas, isto não era lá muito diferente do que ocorria em Nova Iorque - EUA ou na maioria das cidades europeias, na época.
Na ausência da fonte fácil de recursos oriunda do ouro nas casas de fundição, o fisco foi atrás de outras rendas, para manter aos governantes e dignatários nomeados pelo Rei, então acostumados à moleza e à tripo forra (quem quiser ter uma ideia do clima deste tempo na província goiana pode ler "Chegou o governador", excelente livro de Bernardo Elis, escritor goiano que ocupou a cadeira número 01 da Academia Brasileira de Letras).
Não me parece muito séria a afirmação de que as famílias fugiram para lugares longínquos por causa do fisco, mas para praticar atividade que suprisse a anterior e lhes garantisse fonte de renda ou sobrevivência, a agropecuária, que se sabe, exige muito trabalho e vigília (o que está muito bem expresso no ditado "é o olho do dono que engorda o gado").
E o comer de mão, que o naturalista considerou uma prática quase bárbara, é costume conhecido entre muitos povos (ainda hoje, os árabes etc.), e era provavelmente fruto da interação das populações oriundas de São Paulo com os povos indígenas do estado (inclusive os Goyá, exterminados ao cabo de um longo processo em que foram escravizados em "entradas" dos bandeirantes paulistas ou utilizados como mão-de-obra cativa ou livre, nas minas goianas), o que explica este costume que sobreviveu em alguns lugares até algumas décadas do século passado...