A contra história das entrelinhas da história
Luciana Carrero
Morreu Delice Ferreira. Certamente a grande maioria dos brasileiros não sabe quem foi esta mulher. Compositora, viúva de Jamelão, ela escreveu, em letras musicais, as entrelinhas de parte da história do Brasil, esta que vem do morro do Rio de Janeiro. Destaque para a música “Linguagem do Morro”, que fui buscar no Youtube, gravada em dueto por Chico Buarque e Beth Carvalho. E tem mais 29 composições. Não conferi se todas estão lá. Vi também outra, o samba “Fechei a Porta”. Vale a pena conferir tudo, porque é cultura musical e humana de peso.
Não temos, ou até temos um pouco da linguagem do morro. Temos ou não um pouco da cultura do morro. Isto não importa. Em maior ou menor amplitude, a cultura brasileira se amalgama. Mas a verdade é que tudo que da cultura do morro emana, em múltiplas facetas, do crime à arte, passando por situações as mais diversas, se reflete em nossas vidas e é verdadeiramente parte da história do Brasil. Por isso não podemos desconsiderar, isto para nossa proteção ou deleite, guardando cautela nas devidas proporções, porque a despeito dos males que de lá advém, o samba que vem do morro supera tudo. Do Carnaval, nem se fala! Esta efervescência cultural que encanta o mundo.
O samba é o lado bom que brotou apesar da marginalidade em que muitas vezes foi construído, mas que a sociedade recebe com admiração e reverência. Os grandes nomes de autores do morro nunca poderiam ser esquecidos, como Heitor dos Prazeres, João da Baiana, Sinhô e tantos outros, como Deli Ferreira, a qual não tenho elementos para qualificar como de origem direta do morro, mas que retrata o cenário, como posso ver em sua música. Nitidamente é uma mulher da cultura afro, honra e glória aos nossos orixás. Cidadãos respeitáveis da arte que encanta o mundo são esquecidos, não somente na vida, como na morte. Mas o ícone Pixinguinha os representa, pois tem maior visibilidade. Delice, 88 anos de bom trabalho cultural, tem hoje o relampejar da sua partida estampado na manchete do jornal e no cenário virtual da Internet. Não são sua última glória os minutos de fama da hora da despedida. Ficará sua alma em notas de melodias que poderemos estar cantando, por muitas gerações, instintivamente, porém sem ligar com o nome de quem a produziu. A arte expressada já não tem mais propriedade, pois é apropriada pelo interlocutor, com a ressalva do direito autoral, enquanto estiver vigente e/ou protegido, que precisa ser respeitado.
Mas enquanto podemos dar o crédito merecido, que o façamos, para honrar a dignidade do autor. A música citada acima, “Linguagem do Morro”, está passando na história contida no Youtube com o nome dos interpretes, Chico Buarque e Beth Carvalho, sem referência à autora. Esta é a contra história das entrelinhas da história.