URUPÊS E A Semana De Arte Moderna
“Da ideia à realização o caminho é áspero.” (Monteiro Lobato).
MONTEIRO LOBATO: “Somos todos uns Jecas Tatus [escreveu em 1915] com mais ou menos letras, mais ou menos roupas, na Presidência da República sob o nome de Wenceslau [Brás] ou na literatura com a Academia de Letras (…). O Brasil é uma Jecatatuásia de oito milhões de quilômetros quadrados”.
1° parágrafo de Urupês: “Esboroou-se o balsâmico indianismo de Alencar ao advento dos Rondons que, ao invés de imaginarem índios num gabinete, com reminiscências de Chateaubriand na cabeça e a Iracema aberta sobre os joelhos, metem-se a palmilhar sertões de Winchester em punho. Morreu Peri, incomparável idealização dum homem natural como o sonhava Rousseau, protótipo de tantas perfeições humanas (…). Contrapôs-lhe a cruel etnologia dos sertanistas modernos um selvagem real, feio e brutesco, anguloso e desinteressante, tão incapaz, muscularmente, de arrancar uma palmeira, como incapaz, moralmente, de amar Ceci. A sedução do imaginoso romancista criou forte corrente. Em sonetos, contos e novelas, hoje esquecidos, consumiram-se tabas inteiras de aimorés sanhudos, com virtudes romanas por dentro e penas de tucano por fora”.
TRADUÇÃO: Reduziu-se a nada a literatura indianista agradável de ler, com odor de flores da selva de José de Alencar, ao surgirem os exploradores do sertão tipo desbravadores à moda do marechal Rondon que não imaginavam índios de gabinete vestidos com terno e gravata, lembrando as aventuras sensacionalistas do jornal de Assis Chateaubriand na cabeça e o romance Iracema sobre os joelhos. Conquistadores tipo o coronel inglês Percy Fawcett a buscar a cidade de ouro perdida na selva amazônica de Winchester em punho. Morreu Peri, incomparável idealização do homem natural ao modelo de Rousseau, protótipo da perfeição humana... Em oposição a Alencar a moderna e cruel etnologia dos sertanistas modernos, o selvagem real, feio e grotesco, anguloso e desinteressante, incapaz muscularmente de arrancar uma palmeira assim como de amar Ceci. A sedução do imaginoso sertanista criou sonetos, contos e novelas hoje esquecidos, após consumidas tabas inteiras de aimorés temíveis aguerridos como guerreiros romanos e penas coloridas e carnavalescas de tucano adornando-lhe a pele.
Chatô geria sua rede de jornais de modo brutal, não media esforços para passar por cima de interesses empresarias dos concorrentes. Abusava das influências políticas para fazer valer a preponderância de seu poder de barão da imprensa. Ele manteve vivo o mito no qual se baseou a personagem de ficção conhecida nas telas de cinema por Indiana Jones.
Indiana Jones ou o Cel. Fawcet: A primeira expedição de Fawcett na América do Sul ocorreu em 1906 quando ele viajou ao Brasil para mapear a amazônia em um trabalho organizado pela Royal Geographical Society.
A cidade perdida procurada por Fawcett estaria localizada na região do rio Culuene e do rio das Mortes na Serra do Roncador, no Mato Grosso. Mais tarde verificou-se que Fawcett nunca forneceu as coordenadas precisas de sua movimentação, para que nenhuma expedição posterior encontrasse o seu caminho.
Logo depois de desembarcar no Brasil ele conseguiu uma audiência com o presidente Artur Bernardes, a quem expôs seus objetivos. O presidente não quis tomar qualquer decisão sozinho e consultou o Marechal Candido Rondon que desaprovou totalmente o plano de Fawcett e fez com que o governo brasileiro negasse a permissão para o projeto.
Fawcett retornou a Inglaterra, mas não abandonou a ideia da expedição.
Em 1928 uma expedição britânica de resgate sob o comando de George Miller Dyott, buscou trilhar a última rota conhecida de Fawcett. Retornou para não enfrentar perigos cada vez maiores em confrontos com nativos hostis que impediram o progresso de sua expedição.
Fawcett voltou ao Brasil em 1924, dessa vez o presidente da República consultou o marechal Rondon que manteve sua mesma opinião anterior aos tempos do presidente Wenceslau Brás. Ainda assim Fawcett conseguiu autorização do ministro do Interior para promover sua expedição. Havia a recomendação escrita do rei Jorge V da Inglaterra.
Publicações da imprensa na época da divulgação dos textos literários de Lobato:
Vida Moderna — Sportman — A Cigarra — Fon-Fon — A Revista do Brasil (1916 /25) — O Pirralho — A Garoa — A Revista — O Minarete — O Queixoso — Correio Paulistano — O Estadinho — O Norte — Jornal de Taubaté — O Parafuso — A Tribuna — Vale do Paraíba — O Povo — O Combatente — O Taubateano — Arcádia — Onze de Agosto (Grêmios acadêmicos).
Opinião de Lobato ao fazer a revisão de Urupês:
“Já me engulha o livro [Urupês]. Nem rever as provas da segunda edição pude — revê-lo seria relê-lo e meu estômago rebela-se. Vêm-me ímpetos infanticidas. Por que o reedita, então? Porque se vende. Já que o público é besta, toca a explorar o público. Mas isto cá só entre nós. Com os outros eu me tomo a sério e com a maior gravidade.”
Ao comentário de um amigo sobre a possibilidade da maioria das pessoas que liam seus contos não compreenderem ao certo o que eles queriam transmitir, ML afirmou: “Que importa que a massa nos não entenda? À massa compete admirar. O compreender é só das minorias.”
PROCESSO CRIATIVO:
— “Guio-me pelo tato e o faro, pelo aspecto visual e auditivo da frase. Se algum período me soa falso, releio-o em voz alta para perceber onde desafina. E achada a corda bamba, não a analiso, dispenso-me de saber que preceito gramatical foi ali ofendido: aperto a cravelha e afino a frase. O método não será dos melhores, mas é o meu. É o mau mas meu.”
— “De volta para cá, relendo aquilo [“Urupês”], assombrei-me com um ror de coisas que hoje eu diria melhor — hoje, Rangel, um mês depois da ejaculação. Como mudamos a galope!”
— “Nada mais emperra a pena, e tolhe tanto o correntio da frase, como sentirmos sobre os ombros alguém a espiar-nos. A “feição” do Estado é um Censor que me espia sobre o ombro quando para ele escrevo. A Opinião Pública é outro Censor. A dos amigos, idem. As conveniências... Como vivemos amarrados, Rangel!...”
— “Não existe um padrão único de estilo. Cada autor tem o seu. (...) Sem dúvida, há tantos estilos quanto autores, e seria absurdo querer impor um, qualquer que fosse. O que queremos propor não é um estilo especial; queremos ensinar cada um a escrever bem dentro de seu próprio estilo.”
— “Proponho estes pontos: 1) Não haver pressa; 2) Apurarmos a forma, de modo que os críticos exigentes não descubram nem uma lêndea (ovos de piolho, chato) de pronome mal colocado; 3) Ler um a produção do outro, comentar, criticar, sugerir, vetar; 4) As duas partes conformar-se-ão com as sentenças, mas ficam com o direito de rejeitar o veto; 5) A fatura material do livro será perfeita; prosa boa impressa em papel de embrulho vira carne seca e fedorenta; champanha em caneca de lata vira zurrapa. (vinho de má qualidade, vinagre, bebida ruim). Podemos lançar mão da bagagem já publicada, depois de devidamente brunida (polida, lustrada). E também enfiar coisas novas.”
“Se me seduz uma ideia, ponho-a num conto, mas sempre com muita preguiça. O gosto vem depois, na polidura do borrão, no acepilhamento (alisado, polido aperfeiçoado), no envernizamento (polir ou lustrar com verniz). O ato bestial de parir um mostrengo, informe, sujo de sangue e placentas, é o mesmo na arte de parir da vida feminina. O gosto da mãe começa depois de lavado e vestido o fedelho.”
— “O que mais aprecio num estilo é a propriedade exata de cada palavra”, declara, investindo contra um manual de redação que andava entusiasmando a rapaziada em São Paulo. “Tenho a impressão de que é obra vã e perigosa, talvez das que ensinam um certo estilo — e neste caso teremos estilo postiço, como há dentes postiços”.
— “É com os grandes mestres da forma que se deve aprender o estilo.”
— “A necessidade de engendrar por muito tempo seu assunto, numa palavra, a gestação, é a condição absoluta do dom de escrever.”
— “O valor do trabalho depende da escolha do assunto e de sua incubação preparatória. A invenção consiste em senti-lo e em transmitir a impressão que ele causa em sua imaginação e em sua sensibilidade.”
— “O importante não é descrever minuciosamente todos os detalhes de um acontecimento, mas de ter uma sensação pessoal e viva deste acontecimento.”
— “Entre a escolha de um assunto e sua execução pela escritura, decorre um lapso de tempo, uma duração, uma incubação mais ou menos longa de acordo com a pessoa. É talvez o momento mais doloroso, a parte mais penosa do trabalho literário.”
“O curioso é que quando produzo um conto, de forma nenhuma o tenho completo na cabeça, tenho lá dentro uma só coisa: a ideia central
do conto. Tudo mais se forma no ato de escrever. A primeira frase que lanço determina todas as mais.”
— Estilos não se fabricam, nem se ajustam por influxo de regras; são o que são, como o nariz das pessoas. O mais, arrebiques, sobrecargas, postiços que só aparentemente melhoram o natural ingênito (inato, congênito) e espontâneo de cada um.
“Queres descrever tudo, quando o certo é apenas sugerir — é dar um rápido relevo de estereoscópio (visor binocular que aumenta o objeto observado) com meia dúzia de pinceladas rápidas e manhosas. Pinceladas-carrapicho, nas quais se enganchem as reminiscências do leitor. Forçamo-lo assim a colaborar conosco — ele vê mil coisas que não dissemos, mas que com os nossos carrapichos soubemos acordar nele. (...) Isto mostra como a extrema sobriedade, quando hábil, desentranha maravilhas da imaginação do leitor — e o tolo as vai atribuindo ao romancista esperto. (...) Fazer que o leitor puxe o carro sem o perceber. Sugerir. Arte é só isso.”
— “Verdade, vida, observação, eis aí as três qualidades que dominam a arte literária e às quais devemos submeter todas as operações do espírito.”
Comentário: O Jeca Tatu de Lobato era só um coitado! Os nossos “Jecas” ainda estão no poder. A Jecolândia nacional está, mais do que nunca, em mãos da Jecaria faminta de poder pelo poder, movido à corrupção parlamentar e jurídica.
— “Você foi o Gandhi do modernismo brasileiro, jejuou e produziu, quem sabe, nesse e noutros setores, a mais eficaz resistência passiva de que se pode orgulhar uma vocação patriótica. No entanto, martirizaram você por falta de patriotismo.” Com essas palavras, em uma carta, Oswald de Andrade, o pai da propaganda modernista brasileira, referia-se aos 25 anos de Urupês.
OS JECAS DA “IARA”
Censura às “Caçadas de Pedrinho”. A audiência de conciliação proposta pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux para decidir se libera o uso do livro “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, na rede pública de ensino terminou nesta terça-feira sem acordo. Com a participação de representantes do Ministério da Educação, da Advocacia Geral da União e do Ministério Público Federal, a audiência, que durou cerca de três horas, foi convocada depois de o Supremo receber mandado de segurança impetrado pelo Instituto de Advocacia Racial (Iara) e pelo técnico em gestão educacional Antônio Gomes Neto. A alegação é de que a obra possui elementos racistas.
Lobato estava destinado a ficar à sombra de sua criatura. Foi o autor, aliás, ainda antes de Urupês ser publicado, primeiro a usar o nome Jeca enquanto adjetivo e metáfora:
— “Somos todos uns Jecas Tatus [escreveu em 1915] com mais ou menos letras, mais ou menos roupas, na Presidência da República sob o nome de Wenceslau [Brás] ou na literatura com a Academia de Letras (…). O Brasil é uma Jecatatuásia de oito milhões de quilômetros quadrados”.
— Articulista de O Estado, em 1917, Lobato fez um comentário demolidor, uma crítica por muitos articulistas considerada “Jeca” sobre a exposição da pintora Anita Malfatti. Lobato afirmou nele sua predileção por uma arte plástica de inspiração clássica (sua literatura não estava escrita nos modelos clássicos), viu nos quadros de Malfatti “produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência” e uma pintora tocada por uma “atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso e Cia”. Para o autor, aquilo era “paranóia” ou “mistificação”.
Nosso querido escritor Monteiro Lobato sabia, quando dava na veneta, ser “Jeca” até demais. Ele simplesmente ignorou todas as conquistas dos movimentos artísticos europeus da virada do século que influenciaram de maneira intensa a arte moderna e ainda influenciam.
Ele simplesmente quis esnobá-los e o feitiço virou contra o feiticeiro. Lobato foi esnobado na imprensa do país por suas opiniões contra, não apenas a obra plástica de Anita Mafaltti, mas por suas opiniões sobre a Semana de Arte Moderna de 1922.
O antropofagismo dos participantes da Semana não foi compreendido por Monteiro Lobato quando de seu posicionamento “Jeca” com relação às realizações culturais do movimento da Semana de Arte Moderna de 1922. Realizada entre 11 e 18 de fevereiro no Teatro Municipal.
Mas não foi apenas Lobato quem malhou a Semana. Foram seus espectadores. A galera de Jecas chiques que frequentou as poltronas do Municipal de terno, gravata borboleta ou vestida de fraque. Assim como a galera pequeno burguesa que lá se encontrava para, possivelmente, afirmar seus valores artísticos defasados. Ambas discreparam intensamente do que viram no palco do Municipal. Na Semana de Arte Moderna de 1922.
Os talentosos antropófagos da cultura externa, da arte de vanguarda que se fazia na Europa, os artistas de maior talento em todos os seguimentos artísticos que representavam, foram literalmente apupados pelos “Jecas” que preenchiam as poltronas, as frisas e os camarotes do Teatro Muncicipal. Jecas bem nascidos, bem fumados, bem mamados, bem cheirados da burguesia nacional.
Ela, a “elite” paulista e paulistana, essa plateia queria fazer parar o tempo. Ou melhor, a plateia do Municipal queria que o tempo parasse para que eles, burgueses bem gritados, não se sentissem fora dele. Dele, tempo. Nem se surpreendessem como criaturas do século passado (o século XIX), à margem das conquistas mais avançadas dos movimentos artísticos europeus. Que a Semana de 22 trazia para o usufruto deles.
O tempo passado, o tempo perdido, eles sequer pensavam que poderiam proustianamente correr atrás do prejuízo. Suas mentes de “Jecas” estavam plugadas nos estilos artísticos moribundos. Estavam inseridos lá no fundo do poço de seus mausoléus familiares, de suas tumbas culturaias, acadêmicas, de seus sepulcros patrimoniais, históricos. Em pleno ocaso.
A mente deles, espectadores da Semana de Arte Moderna de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, estava plugada no crepúsculo de criadores de formas de arte que não eram agora, na ocasião da Semana, mais do que cultura em estado de putrefação.
Os ossos de seus antepassados se reviravam neles, espectadores, através deles, sob a forma de vaias e do “O Grito” em direção a Villa Lobos, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Lima Barreto, Menotti Del Picchia, Luís Aranha, Sérgio Buarque, Anita Malfatti, Tarcila do Amaral, Di Cavalcanti, Vitor Brecheret, Wilhelm Haaberg, entre outros.
Mas, quem pode parar o Tempo? O Tempo não é um bonde sobre trilhos do qual alguém possa puxar a corda da campaínha para descer na Freguesia do Ó, na Estação República, ou no Rio dos Malefícios do Diabo (Vale do Anhamgabaú).
Os escritores não estavam mais na fase indianista da literatura. As escolas literárias e artísticas do Renascimento, os estilos clássicos... Adeus Barroco, Arcadismo, Good bye Romantismo! Saudações! Realismo!, Naturalismo!, Parnasianismo! O Simbolismo decrépito nas artes.
Aqueles espectadores “Jecas” sentados com as bundas muito chiques, muitas da eleite dita intelectual paulista e paulistana, nas poltronas do Municipal a vaiar o futuro das artes no Teatro Municipal. Estavam a vaiar com seu “O Grito” coletivo, por desconhecerem que haviam virado múmias. Múmias gregas, egípcias, romanas, góticas. Múmias que não compreendiam a arte que o Modernismo inaugurava na Semana de 1922.
Múmias chiques, podres de chiques, vestidas em seus fraques, ternos e gravatas borboletas. Múmias que havia feito seus estudos em universidades americanas e europeias. Mumias que seriam deputados, senadores, múmias das câmaras estaduais, municipais. Mumias presidentes da República. Mumias para todos os tipos e gostos da cultura da jecolândia nacional.
Começava um novo tempo para a criação artística. Abriam-se horizontes que não seriam imortais, lembrando Vinícius, posto que chamas, mas que seriam eternos enquanto permanecessem. — As artes superavam os estilos de criação até então praticados na música, nas artes plásticas, na poesia, no cinema, na literatura, na arquitetura. A engenharia do conhecimento se fazia subir um degrau a mais, mais alto, na escala ascendente da criação nas artes.
Agora o próprio Monteiro Lobato se debatia para não ser reconhecido enquanto parte integrante do passado. E isso devia doer pra burro. O estar prisioneiro dos academismos morimbundas e das influências francesas da belle époque. E quejandas. Que tais.
Mas Monteiro Lobato também fazia parte da Semana. Ele fora um precursor dela. Ele proporcionou a oportunidade do país reconhecer-se “Jeca”. A Jecolândia Brasil ganhou uma identidade com seus personagens que, não fosse ele, Lobato, sua literatura, teriam se dissipado no tempo, como personagens de uma pintura impressionista. Sem que se valorizasse a vida difícil e a cultura dessas pessoas.
Personagens lobatianos eram como pontos decompostos de cores sob a ação da luz natural. Como se fossem personagens impressionistas pinceladas pelo talento de um escritor que os fazia emergir na paisagem cultural nacional de onde não passavam de cinzas. Ou pelo menos de pontos de luz impressionistas de difícil identidade.
Monteiro Lobato os tirou, a esses personagens, da decomposição cultural precoce. Fiat Lux! Mostrou que faziam parte da vida. Iluminou suas dores, sua ignorância escondidas nas sombras dos interiores, dos sertões, como se prenunciasse as criações roseanas.
A Semana de 22 mudou tudo. Toda a compreensão que esse país de “Jecas” tinha mantido viva de si mesma. Mal sabiam que, como diria posteriormente Guimarães Rosa, “o correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.
A Semana de 22 mudou, com coragem, a compreensão que a Jecolândia mantinha de seus valores. Puídos. Enferrujados. Desbotados pelo “O Grito” expressionista e pelas vaias dos espectadores transformados pela Semana de Arte Moderna de 22 em uma figura coletiva andrógina. Inconsciente. Tipo a personagem expressão do desespero no quadro expressionista de Eduard Munch.
A ponte entre o passado e o presente aquela plateia de Jecas de “elite” no Municipal não poderia ultrapassar. Pelo menos naquele momento. E essa impossibilidade cultural determinada pela vaidade burguesa e pequeno burguesa, os fazia personagem de “O Grito”. Aquela plateia representava a personagem principal do quadro expressionista desenhado por Munch.
Os gritos e as vaias da plateia no Municipal escondiam o desespero e a angústia de ter, cada espectador, a partir daquele momento decisivo que inaugurou o Modernismo nas artes, expressado, como no quadro expressionista de Munch, a dramática condição das sensações dolorosas e angustiantes que fazem parte da vida dos seres humanos. Principalmente quando se sentem nadificados. Como diria Sartre.
Principalmente quando esses seres humanos se surpreendem fora dos novos significados perceptivos da história. Da história social, econômica, política, financeira e artística de um país. Principalmente quando esses personagens se surpreenderam totalmente por fora, “Jecas” ignorantes das realidades que os artistas da Semana de Arte Moderna tentavam fazer com que a Jecolândia compreendesse que as interpretações do mundo não eram as mesmas. Eles eram outra coisa e não se reconheciam como tal.
Aqueles espectadores da Semana que assistiam ao espetáculo da percepção de sua própria decadência burguesa. A percepção da realidade devastada por sugestões de movimentos artísticos que os convidavam a tomar posse da nova percepção do mundo. Do mundo que era para eles incompreensível do interior de suas zonas de conforto. Um ruído incômodo que clamava por ser atualizado em suas percepções de “Jecas”. Inconformados com os atores do palco das artes na Semana de Arte Moderna de São Paulo. Semana de 1922.
Um mundo compreensível que se tornava incompreensível porque eles, testemunhas do espetáculo da Semana de Arte Moderna não aceitavam o convite daqueles artistas vaiados, por seus “O Grito” de “Jecas” inconformados, que se recusavam a sair de suas percepções cheias do mofo do ranço, do bolor e do bafo de uma realidade de filhos e herdeiros da cultura de dona Sinhá. Filhos e herdeiros da política do café com leite. Que se recusavam a sair de suas zonas de conforto cheias de teias de aranhas.
A plateia da Semana recusava o aprendizado que as exigências da superação estética dos valores nas artes e na vida lhes ofertava. Nem por isso a camisa de força de sua compreensão limitada da vida e das artes desistiria de lhes prender por mais tempo. Por muito mais tempo. Dentro da compreensão limitada de pessoas com uma percepção da vida das artes que mais era sinônimo de uma camisa de força mental. E ainda é.
O que “O Grito” e as vaias da plateia do Municipal na Semana de Arte Moderna de 22 expressavam? Perplexidade, ciúme, medo, vergonha, ignorância, ira, solidão. A deformação dos sentimentos, a incompreensão e a inveja porque aqueles artistas que estavam no palco haviam captado anteriormente a ela, plateia, a nova percepção da condição humana. Através das Artes.
Monteiro Lobato foi um precursor do Modernismo, um escritor que anunciou o futuro, assim como os pintores impressionistas e expressionistas foram os precursores dos movimentos artísticos da virada do século XIX para o XX: Cubismo, Dadaísmo, Futurismo, Surrealismo. Mais impressionante ainda é como essa incompreensão perdura no século XXI.
Monteiro Lobato mostrou o quanto era “Jeca” esse país. Com seus personagens e as personagens de seus contos. Mostrou-nos, e jamais agradeceremos na intensidade que ele merece nossa gratidão. Por ter nos posicionado enquanto um país museu de sua própria vida. De sua própria história. Museu a ceu aberto de suas iluões perdidas. Ilusões burguesas.
Vida construída pelo “O Grito” e as vaias daqueles “Jecas” espectadores da Semana. Eles estavam no mausoléu do Tempo. E não sabiam disso. A Semana os alertou e advertiu. Que suas vidas não eram mais vida. E suas percepções pertenciam ao passado. Que passou com a vida. A percepção deles da vida como a vida era! Os artistas e intelectuais estavam dizendo como a vida é. Ou poderia ser. Outra. Nova. Saída das cinzas.
É a vida. E é bonita. E é bonita. E ainda demasiadamente incompreendida.