MÚSICA DEGENERADA

Durante o Carnaval constata-se, de modo especial, o poder da música. Multidões entram em delírio, dançando e pulando ao som de uma guitarra, de uma zabumba, ao som dos músicos e cantores. No Carnaval todos estes ritmos são para divertir. Mas a música tem um leque de usos e motivações muito mais amplo. As religiões recorrem aos hinos e às músicas para seus cultos; os soldados marcham para os campos de batalha ao som de ritmos musicais que os estimulam ao heroísmo, ao ódio, à crueldade e à matança; as tiranias possuem seus hinos, e todos os países seus hinos nacionais. Clubes esportivos, agremiações culturais e entidades, com as mais diversas funções, expressam sua identidade através de hinos e músicas.

As músicas podem expressar alegria, entusiasmo, euforia, mas também tristeza, angústia, ódios, ressentimentos e paixões. Depende das disposições sentimentais e ideológicas das pessoas. O certo é que todas estas músicas influem profundamente na postura dos seres humanos. Podem dispor os indivíduos e as multidões para o ódio e a guerra, mas especialmente deveriam dispô-las para a solidariedade.

Os nazistas, por exemplo, usavam a música como propaganda a serviço de sua ideologia da raça pura e superior. Compositores e músicos que não aceitavam esta doutrina acabavam nos campos de concentração.

Pelos anos de 1920, a república germânica de Weimar era rica em inovações artísticas e em movimentos políticos. Compositores extrapolavam os limites da música clássica. A música da época (Zeitmusik), com seus 12 tons e o jazz, formava uma nova e excitante rede de movimentos musicais. Quando Hitler e os nazistas assumiram o poder, o mundo da arte e o clima político foram afetados profundamente. Durante a ditadura nazista as artes, e especialmente a música, foram usadas para doutrinar e adequar o povo alemão à ideologia da superioridade nacional e do ódio racial.

Em sua máquina publicitária, os nazistas qualificavam os compositores, de uma grande variedade de gêneros musicais, como criadores de uma “música degenerada” (entartete Musik), considerada uma traição da cultura alemã.

Para os nazistas, a música e a artes deveriam contribuir para unificar e educar a consciência da pureza racial e da superioridade do povo alemão. Com isto, intensificaram a censura a compositores e suas músicas. Eram censuradas as músicas com algum elemento de jazz, as músicas atonais e, especialmente, as músicas de compositores judeus. As experiências com novos gêneros musicais, mesmo sem motivações raciais, eram classificadas como sintomas de um câncer que infectava a autêntica cultura do povo alemão. Foram propostos como modelos de uma música genuinamente alemã as composições de Wagner e Bruckner.

Um bom número de compositores da “música degenerada” conseguiu deixar a Alemanha. Outros, que não tiveram esta sorte, foram presos e alguns executados.

Um bom número de artistas de origem judaica foram enviados para a “cidade” Teresiana (Terezín). Um campo de concentração ao norte de Praga. Esta “cidade” (campo de concentração) tinha uma dupla função: era um campo de transição, para posterior envio dos “moradores” aos campos de concentração, e uma tentativa de ludibriar a comunidade internacional, em relação a verdadeira natureza da “solução final”.

Cerca de 120.000 pessoas passaram pela “Cidade Teresiana” durante o regime nazista, das quais 33.OOO morreram ali. Das 87.OOO que foram enviadas aos campos de concentração, somente 5% sobreviveram. Pela propaganda nazista, Terezín era apresentado como um “ghetto paradisíaco” para os judeus expatriados. Mas a falta de atendimento médico, as torturas e a falta de condições tornavam a vida nesta “cidade” intolerável. Os prisioneiros, no entanto, conseguiram contrabandear para o ghetto diversos instrumentos musicais. Inclusive um violoncelo foi contrabandeado dentro de um caixão, como se fosse um morto.

Como em Terezín já se encontravam um bom número de compositores, os prisioneiros conseguiram realizar clandestinamente alguns concertos. Os nazistas constataram que a música contribuía para acalmar os prisioneiros, e tiveram a ideia de permitir aos moradores promoções musicais de “tempo livre”. E aproveitaram esta autorização para divulgar ao mundo de que a vida em Terezín, realmente, era agradável. Em uma destas propagandas se dizia: “O Führer presenteia os judeus com uma cidade”.

Grande parte da música, composta pelos prisioneiros de Terezín, foi de resistência e sobrevivência. A maioria de seus compositores, finalmente, foi enviada aos campos de concentração e de extermínio, onde pereceu.

Parte das músicas compostas em Terezín sobreviveu, e, juntamente com outras “músicas degeneradas”(!?), é testemunho de quanto a humanidade perde quando vozes são silenciadas. Ainda hoje, estas músicas, demonstram o poder da música para um povo oprimido, e para as mais diversas situações do ser humano. O povo canta suas alegrias e suas mágoas. “Música degenerada”, verdadeiramente, é apenas toda música de guerra, de destruição; música que incita ao ódio, à violência e à corrupção.

Inácio Strieder é Professor de filosofia - Recife - PE.