Toros (Touros)
O presente texto é uma releitura e paráfrase a que são acrescidos comentários a respeito do artigo produzido em idioma espanhol e intitulado TOROS, que integra uma série de trabalhos de pesquisa oferecidos pelo Centro Virtual Cervantes.
A seção escolhida se reporta aos principais costumes e hábitos dos espanhois, a partir de informações contidas em uma coleção de livros de narrativas de viagem feitas por viajantes estrangeiros. Essas narrativas são importantes fontes de informação antropológica que documentam a vida dos espanhois no século XIX.
A maior parte dos estudos consultados para a composição do artigo sobre touros expressa o repúdio e a incompreensão a respeito da tradição espanhola das corridas de touros, ainda que muitos manifestem certa admiração pela coragem do toureiro, pelo componente do sacrifício e pela comunhão com a morte presente no espetáculo. Há algo de intangível durante a corrida que produz certa fascinação _ é o que diz o parágrafo introdutório ao texto intitulado Touros.
É, provavelmente, esse intangível, a linha demarcatória entre o espetáculo de cor, beleza e paixão que faz da tourada um momento fascinante em que se costura a violência à capa que envolve a expectativa da demonstração da supremacia do homem sobre os animais irracionais. Cada mínima fração de segundo em uma tourada reserva uma surpresa que pode colocar toureiro ou touro frente a frente e, ali, na arena, interpõem-se o suspiro coletivo e o silêncio que antecedem a glória do matador ou sua morte.
A maioria das pessoas, diz o texto em apreciação, se impressiona com a violência e intensidade da morte no centro da praça de touros, tanto dos touros como dos cavalos, naqueles anos em que estes animais não eram aparelhados com protetores. O mais curioso, diz o texto, é que, praticamente todos os atores do espetáculo da tourada, inclusive aqueles que o deploram, também recomendam a que se assista a uma corrida de touros quando alguém viajar à Espanha, pois, na opinião deles, sem esta experiência, a viagem não estaria completa.
Na opinião de Terence Hughes (Vol. II), o que mais impressiona em uma corrida de touros não é o sangue, mas a paixão e a excitação que estão impregnadas no público.
E, para Edward Hutton, as corridas de touro deveriam ser vistas com o devido assessoramento ou instrução quanto às técnicas ali empregadas e toda a sua estrutura. Caso contrário, o espectador não desfrutará do espetáculo.
John Campion disse ser a corrida um evento bem organizado e no qual os espanhois colocam um empenho especial. Campion, mesmo não sendo um apreciador das corridas, aceitou a ideia de que ela deve ser vista pelo menos uma vez: “Y aunque mucho puede decirse en contra del toreo, ciertamente es este un espectáculo digno de ser visto ocasionalmente y, si se ve, se puede ver que está concienzudamente bien hecho”.
A dedicação e perfeição técnica a que se referiu Campion é um fato perceptível até a contemporaneidade. Vê-se em uma “plaza de toros” que todos os detalhes foram criteriosamente pensados, há sempre funcionários limpando e recompondo a arena após cada etapa do espetáculo, há cavalos que puxam uma espécie de charrete baixa que arrasta o touro vencido para dentro dos ambientes já arrumados para tal fim e de onde os animais seguem para os caminhões que os transportam para outros locais após a festa. O colorido e a música executada por uma banda de instrumentos predominantemente de sopro fazem as tardes de touradas um momento de rara beleza em terras espanholas.
Alguns autores lançaram questionamentos interessantes a respeito das touradas, como é o caso de George Clark, em sua obra datada de 1850. O que Clark desejou saber é que efeito moral causariam aos espanhois esses espetáculos nas arenas. A obra de Clark associa a dedicação a este tipo de espetáculos com a permissividade e a violência da cultura espanhola, já familiarizada com a visão do sangue, visão esta que, segundo Clark, sem dúvida, contribui para a frequência de assassinatos.
O mesmo Clark advertiu que o visitante deveria evitar pronunciar-se contra as touradas, pois, nada pode haver que irrite mais o patriotismo espanhol que essa atitude. Cabe notar que a obra de Clark é da primeira metade do século XIX, mas, na contemporaneidade, são muitos os espanhois que não aprovam as touradas.
L. Higgin assinalou, em 1902, a grande aceitação e popularidade da figura do toureiro em todos os estratos da sociedade espanhola, considerando-o um amigo da aristocracia e um semideus do povo.
O principal objetivo de alguns autores em viagem à Espanha é tão somente o de presenciar uma corrida de touros, como o fez A. Andros, que chegou ao país em busca dos tópicos que conheceu através de um livro cheio de belas ilustrações. Dentre todos os costumes espanhois o que mais lhe interessou assistir foi a uma tourada, mesmo que tenha a ele parecido uma difícil tarefa, pois, ao chegar a uma cidade, havendo terminado um espetáculo, logo deveria encaminhar-se para outra antes que se iniciasse a corrida seguinte. Justamente ao final de sua viagem, tornou a se emocionar com a ideia que poderia cumprir seu sonho ao avistar um anúncio convidando para uma corrida em Algeciras (ao sul da Espanha), na esperança de que tudo corresse bem. Afinal, não obteve sucesso, pois o barco que o levaria de volta à Inglaterra zarparia antes do horário previsto e Andros não pode assistir à ansiada corrida de touros.
Entre as curiosidade das touradas, Henry Blackburn se reportou à existência de uma mulher toureira e que, no ano de 1866, la «intrépida señorita taurómaca», enfrentou uma acidentada peleja na praça de touros. Tudo corria bem e a mulher que, àquela época geralmente participava de um tipo de esporte que envolvia uma luta com um porco espinho e outros animais inferiores, viu-se diante de um touro enfezado que arremetia mugindo pela arena. Naquele momento a coisa ficou muito séria para a moça toureira. Houve, então, uma corrida frenética dos “banderilleros” e dos ajudantes de resgate, mas transcorridos alguns minutos foi possível arrodear o touro e liberar a artista da perigosa situação em que se envolvera. Dessa forma, “cuando la extrajeron fue sacada furtivamente de la plaza de manera ignominiosa y ya no volvimos a ver a la valiente señorita: no se dio muerte al toro, sino que fue ‘despachado’ fuera del ruedo”. (HENRY BLACKBURN, 1866, p. 165).
Esses costumes e a originalidade deles são característicos da Espanha, tradições dignas de admiração. Há tradições um tanto bizarras, mas que atraem o interesse das pessoas, a exemplo de se encontrar um touro correndo pelas ruas, como registrou Henry Blackburn.
L. Higgin mencionou o trabalho social e familiar em torno dos costumes da tauromaquia e cita a atitude de abnegada devoção das esposas dos toureiros e o importante papel que elas desempenhavam como elemento distintivo da cultura espanhola, além de destacar-lhes a beleza e o temperamento.
O depoimento de Richard Ford considerou o espetáculo da tourada como uma espécie de crueldade sublime e qualificou o toureiro na condição de executor desse ato, um homem da morte. Isto parece querer significar a perspectiva dupla da morte que tanto pode ser a do touro quanto a do toureiro. Portanto, a morte se posta dos dois lados da tourada.
Outro que descreveu os toureiros é John Carr, em relato de 1809, dizendo que eles eram “bons soldados”. Esse viajante nutria um desejo tal de assistir a uma corrida de touros que, em virtude disto, decidiu embarcar no Porto de Santa María e seguir destino a outra localidade, vez que já estavam proibidas, temporariamente, as touradas no restante da Espanha. O narrador, por um lado, critica a crueldade da festa, mas a exalta pela bravura dos toureiros e pela admiração que lhes era demonstrada pelas mulheres.
Abro parênteses na narrativa de Carr para acrescentar que, no ano de 2008, em uma praça de touros localizada em El Escorial, pude verificar que mulheres jovens e belas exibiam o encantamento pelos toureiros que chegavam aparamentados em veículos do tipo Van.
Voltando ao narrador do século XIX, John Carr, ele disse haver sido recebido pelos espanhois como um visitante especial e o permitiram entrar nos espaços mais privados da praça de touros, ali onde se preparam os toureiros e naqueles outros locais em que ficam guardados os touros. Ainda acrescenta o visitante que os organizadores procediam ao pagamento do matador e do pessoal de apoio e, depois de acatadas todas as despesas, o restante da arrecadação era destinado a causas beneficentes.
Leonard Williams afirmou ser a corrida de touros um espetáculo supremo. De tal forma detalhista e bela, a descrição de Williams é aqui transcrita em sua íntegra:
“El espectáculo de estas fiestas de toros, meramente considerado como una forma de entretenimiento, y no como un indicador del estado mental nacional, era indudablemente soberbio. Los suntuosos trajes de corte y de gala; las joyas resplandecientes en el cabello y las orejas de las damas; la Guardia Amarilla, con destellantes armas y uniformes de color escarlata y pajizos; las espléndidas colgaduras, en contraste con las barandillas negras y doradas de los balcones; los arreos de los caballos, y, sobre todo, la reunión de una multitud tan vasta y animada en tan limitado espacio, componían un panorama incomparable” (LEONARD WILLIAMS, p. 132).
O viajante Josep Quin assistiu a una corrida em 1823, em Sevilla, e confessou-se um tanto desconcertado pela visão das cenas de sangue, mas admitiu o atrativo especial da contenda.
Andrew Blayney opinou que se trata do melhor entretenimento que a Espanha oferece a um estrangeiro e que, por certo não existiria outro no país que merecesse tanto a pena ver.
Edward Penfield é outro viajante que escreveu belas linhas sobre a corrida de touros e seu significado na Espanha. Apesar de que esse narrador houvesse declarado não se sentir bem naquela festa, conclui sua emocionada narração a respeito de tudo o que viu ali, acrescentando que nem o futebol ou o beisebol do país onde nasceu se comparariam ao que se vivencia em uma praça de touros numa tarde de domingo. Incluiu que o espetáculo tem uma grandeza indescritível, um lugar reservado na tradição espanhola e que a figura do toureiro é parte dessa cultura, “lo que puede explicar el fracaso de muchos esfuerzos para arrancar de España este deporte”. (EDWARD PENFIELD, p. 145-146).
Convém ressaltar que, atualmente, por várias partes do mundo, são muitas as pessoas que abominam as corridas de touros e não se aceita mais classificá-las como uma modalidade desportiva, vez que cresce a conscientização sobre os direitos dos animais e a repulsa contra aquilo que os faz sofrer.
Matilda Betham-Edwards acusou que a violência das corridas é mais voltada para o touro do que mesmo para o toureiro; e Bart Kennedy comentou em seu guia intitulado Campitos, a respeito da visita que fez à Espanha, no ano de 1903, sobre a admiração pela destreza e coragem do matador.
Foi Mary Herbert a que mais se posicionou contrária às corridas, em sua obra de 1866. Até admitiria a existência da festa, mas se não fosse preciso sacrificar o touro, como acontecia em Portugal. Além disto, levou em conta que a visão dos touros, naquela situação, contribuiria para embrutecer o espectador, tornando-os insensíveis ao sofrimento alheio. Ainda assim, a autora concordou que o espetáculo não desapareceria da manifestação cultural espanhola. Tal é a importância do registro de Mary Herbert que o transcrevemos na íntegra, assim como está nos textos consultados:
“Si el deporte pudiera llevarse a cabo, como se dice que sucede en Salamanca y en Portugal, sin que sufran daño los caballos, el intenso interés suscitado por un combate en el que la destreza, la inteligencia y la agilidad del hombre se echan a pelear contra el instinto, la velocidad y la fuerza del toro, tal vez harían de él un entretenimiento tan legítimo como emocionante; pero en el modo en que se realiza actualmente es sencillamente horrible, e imperdonablemente cruel y repugnante. Es difícil comprender cómo puede ir por segunda vez una mujer. El efecto que tiene en el pueblo debe ser embrutecedor hasta un grado tremendo, y ha de ser responsable en gran medida de su total falta de sentimientos hacia los animales, especialmente los caballos y las mulas, de los que hacen un mal uso de un modo que ha de repugnar sin duda a un inglés, y aparentemente sin el menor sentido de culpa. Mas nada indica que esta diversión se esté haciendo menos popular en España”. (MARY HERBERT, 1866, p.150).
Como se pode notar, o depoimento histórico de Mary Herbert condena o sacrifício dos animais e demonstra que seria mais acertado e digno se a inteligência do homem fosse elevada, mas dispensasse as cenas cruéis e repugnantes, além do que se surpreende quanto ao fato de que uma mulher possa tornar a ver uma peleja como aquela. Levanta a narradora que o efeito daquelas cenas é embrutecedor a um grau muito alto e que expõe a falta de sensibilidade quanto ao sofrimento dos animais, mesmo observando que não havia indicadores de que aquela diversão estivesse se fazendo menos popular na Espanha.
REFERÊNCIAS
Viajeros en España > Secciones > 6. Costumbres > Toros (1 de 3). Disponível em: <http://cvc.cervantes.es/literatura/viajeros/costumbres/toros_paginada.htm>. Acesso em 27 fev. de 2014
Viajeros en España > Secciones > 6. Costumbres > Toros (2 de 3). Disponível em: <http://cvc.cervantes.es/literatura/viajeros/costumbres/toros_02_paginada.htm>. Acesso em 28 fev. de 2014
Viajeros en España > Secciones > 6. Costumbres > Toros (3 de 3). Disponível em: <http://cvc.cervantes.es/literatura/viajeros/costumbres/toros_03_paginada.htm >. Acesso em 1 de mar, de 2014