BRENNAND: SUA ARTE, SUA FILOSOFIA

Quando se fala em Francisco Brennand surge a pergunta: suas oficinas de cerâmica no bairro da Várzea/Recife são uma fábrica, uma oficina de esculturas, um estúdio de pinturas, um museu, ou um “santuário” de representações míticas e filosóficas?

Nesta semana (18.02.2014) a Professora francesa Véronique Donard proferiu uma palestra sobre “A Origem na Obra de Brennand”, a convite do Seminário de Tropicologia, sediado atualmente na Academia Pernambucana de Letras.

O “Seminário de Tropicologia” é um fórum de pesquisa, palestras e debates, que se preocupa com questões relativas ao meio ambiente e ao homem situado nos trópicos. Gilberto Freyre, nos anos 60 do século passado, trouxe este Seminário ao Recife. Inicialmente foi abrigado na UFPE, passou depois para a Fundação Joaquim Nabuco, posteriormente para Fundação Gilberto Freyre, e atualmente sua sede é a Academia Pernambucana de Letras. Já durante um bom número de anos a Coordenadora do Seminário é a Escritora Fátima Quintas, que também é a Presidente da APL.

Por sugestão do Prof. Geraldo Pereira, Véronique Donard fez a sua exposição sobre Brennand. A Profa. Véronique é versada em arte, música, filosofia, teologia, psicologia, questões de direito, lecionando em Paris e outros lugares na Europa. Fez um estágio de pós-doutorado no Recife, quando pesquisou o gênio de Francisco Brennand. Sem explicitamente dizer isto, mas seus estudos resultaram numa espécie de psicanálise da arte de Brennand. Neste seu estudo, Véronique entrevistou longamente Brennand e observou detalhadamente suas obras. Tanto as esculturas, como suas pinturas.

Quando se observa as esculturas de Brennand, não é necessária muita ciência artística para constatar a presença simultânea de diversos aspectos culturais, cósmicos e antropológicos. Estas esculturas objetivam elementos míticos, filosóficos, cosmológicos e fenomênicos. Tanto no que se refere à natureza em geral, quanto ao ser humano.

Um tema central em Brennand é a “origem”. A origem do mundo está simbolizada no “ovo cósmico”; nos seres vivos, o elemento primordial de sua origem é a dimensão sexual. No mundo dos seres vivos tudo é sexuado.

Para Véronique Donard, embora nas esculturas de Brennand as vaginas, os pênis, os espermas e as características sexuais estejam em evidência ostensiva, elas não são eróticas. O erotismo de Brennand se encontra fortemente em suas pinturas. Inclusive, no destaque dado à representação do elemento feminino.

Quanto ao aspecto filosófico, Brennand privilegia os filósofos pré-socráticos. O elemento que produz a diversidade de seus produtos, com cores, dureza e brilho é o fogo. O fogo, com seu calor, é a dinâmica de Heráclito. Na natureza tudo crepita, tudo flui, nada permanece estático.

Há alguns anos, certa vez, levei um grupo de estudantes de Filosofia da UFPE às Oficinas de Brennand. O bilhete explicativo, que recebemos aos entrarmos no “Santuário de Brennand”, dizia: “Francisco Brennand – Mestre dos Sonhos”. E é verdade, Brennand não é apenas escultor, pintor e escritor. Em sua arte ele sonha com um mundo diferente. Um mundo para além das ideologias filosóficas e teológicas particularizantes. Talvez, com Nietzsche, sonhe com um mundo para além do bem e do mal.

O mundo socialista da União Soviética foi um jogo de baralho que desmoronou; a globalização é a destruição das culturas regionais, e a massificação do sujeito humano; a realidade, por si só, é um absurdo. A única verdade que permanece, para além de ideologias e globalizações, é a justiça.

Brennand sonha com uma sociedade sem os absurdos das desigualdades e das manipulações. A mídia, inclusive, é capaz de transformar cafajestes em heróis, e mostrar a violência como algo divertido. Brennand sonha também com um Terceiro Milênio mais ético, religioso e místico. Embora esteja consciente de que nada muda simplesmente porque estamos no início de um novo milênio.

Quando levei os estudantes de filosofia da UFPE para visitar as Oficinas de Brennand, tivemos a grata surpresa de sermos recebidos pelo próprio Brennand. Não é sempre que Brennand está disponível para atender aos numerosos visitantes de seu “Santuário”. Mas, sabendo que éramos filósofos, interessou-se pelo grupo, e “perdeu” quase uma tarde inteira para dialogar conosco. Seu amor pela filosofia não é de agora. Uma de suas filhas se graduou em Filosofia na UFPE. Mostra-se em dia com as publicações filosóficas no país e no mundo. Aliás, em outra época, havia levado o filósofo gaúcho, Gerd Bornheim (hoje falecido), ao “Santuário de Brennand”, quando também o próprio Brennnad nos recebeu, dialogando de par a par com Bornheim sobre a filosofia da arte.

Mas não é somente recebendo filósofos, e falando de filosofia, que Brennnad filosofa. A obra de Brennand transpira filosofia. E até explicitamente, quando deixa pensamentos de filósofos gravados em suas esculturas, como aquele de Heráclito, que se encontra no jardim, perto da miniatura do Taj Mahal. O “tudo flui” de Heráclito é como que o rio primordial que tudo arrasta na vida, não só na vida de Brennand, mas na vida de todos nós.

A produção de Brennand não é uma obra para ser analisada em detalhes. É preciso meditá-la. Ela é como a filosofia, onde nem sempre encontramos conceitos para objetivar os sentidos mais profundos. Cosmogônica, telúrica, psicanalítica... ela não representa simplesmente uma realidade.

Brennand filosofa, talvez, com Kant, para quem a razão humana não consegue penetrar a essência da realidade. Permanecemos ao nível do fenomênico. Por isto, Brennand, por assim dizer, nos eleva aos sonhos, aos mitos, à simbologia, às analogias. Uma linguagem tipicamente filosófica, mas não inócua. É através dela que ascendemos aos absurdos, aos paradoxos, às contradições da realidade; mas também às possibilidades de dignidade, verdade e justiça da vida humana, que pode ser maravilhosa mesmo nas contradições.

O “fluir” da vida e do pensamento de Brennand pode ser compreendido melhor quando acompanhamos sua biografia. Brennand não honra apenas a arte de Pernambuco, mas representa também um pouco de sua filosofia, desafiando os amantes da sabedoria a decifrá-la. Segundo o Prof. Geraldo Pereira, Brennand lhe teria dito que aprendeu tudo que sabe e faz através de seus estudos em Paris, mas nunca se esqueceu de ser brasileiro.

Inácio Strieder é professor de filosofia - Recife- PE.