DOIS CONCEITOS DE SOLIDÃO
Milton Pires
Certa vez Isaiah Berlin (1909-1997), um dos principais pensadores liberais do século XX, escreveu um ensaio, até hoje famoso, intitulado "Dois Conceitos de Liberdade". Possa eu, sem um milésimo da capacidade intelectual e do conhecimento de Filosofia que ele tinha, ser feliz escrevendo algumas linhas sobre a ideia de solidão e da sua importância ou desgraça no mundo em que vivemos..
Imagino que a primeira, e mais difícil de todas as tarefas, seja poder escrever de maneira "impessoal" rss..rss..Até hoje estou tentando entender o significado dessa expressão - "escrever de maneira impessoal" - e fico pensando: quem será que inventou essa besteira?? Quem pode de fato pensar que alguém, algum dia, escreveu alguma coisa "impessoal"?? Acho que eu deveria desistir dessa bobagem logo de início e mudar a introdução do texto para apresentá-la da seguinte forma - 1.quero escrever sobre a solidão. 2. não posso (e ninguém pode) fazê-lo de maneira "impessoal". 3. vou tentar escrever de maneira que essa não seja a história da minha solidão; o resto cabe ao leitor decidir se ficou bom ou não..
Talvez seja honesto eu afirmar que solidão é o tema número dois da "minha" filosofia (supondo que eu tenha uma e que considere o tempo o número um dela) e portanto - perdoem tamanha pretensão - de todos nós..Escrevo isso por que presumo que vocês, que estão lendo, estão se sentindo sozinhos.
Desde os '"filósofos das cavernas" até os adolescentes de i-phone é a solidão um elemento comum da nossa História...Essa solidão nasce a partir do momento (inevitável na vida de qualquer ser humano) em que percebemos que um dia vamos morrer, que não temos uma certeza racional daquilo que vem "depois"..que não sabemos sequer se existe um "depois" e, o mais triste de tudo, que crentes ou não numa outra vida, não podemos compartilhar essa certeza..não podemos, em certo sentido, torná-la "real" para o outro. Acredito que nada mais justo é do que afirmar que a Filosofia nasceu da percepção do homem de que ele, homem, um dia vai morrer..que não sabe o que vem "depois" e que disso resulta um sentimento primordial de angústia e solidão que há de acompanhar a todos nós (às vezes mais, às vezes menos) pelo resto das nossas vidas.
Não vejo absolutamente - sem falsa modéstia alguma - nenhum tipo de originalidade naquilo que escrevi acima. Como já se tornou costume nos meus artigos, sustento uma vez mais que muita gente escreveu mais, e melhor, do que eu sobre isso..
O verdadeiro sentido que eu gostaria de dar a esse pequeno texto é o seguinte: Concordamos que a solidão nos acompanha..sabemos que ela vem da consciência da morte..entendemos sua capacidade de gerar angústia e sofrimento, mas também já vimos que dela nasceu a própria filosofia !
Pois bem, isto posto, pergunto o seguinte - e se todos nós estivéssemos nos encaminhando para uma sociedade perfeitamente "conectada"..para um mundo tão "interligado"..para uma realidade tão "compartilhada" em que não houvesse mais tempo para solidão??? E se a solidão acabasse?? Que destino teria a própria filosofia?? É possível uma filosofia original num mundo em que não existe mais capacidade para alguém se sentir só??
Esse artigo não se destina aos psiquiatras. Não escrevo me dirigindo àqueles que pensam nos aspectos patológicos de uma vida sem amigos..de uma realidade sem casamento e filhos..ou simplesmente do comportamento antissocial em que a mera "noção do outro" não faz sentido algum..Nada pode, ao meu ver, ser mais nocivo do que impregnar essa questão (verdadeiramente filosófica) da solidão de um olhar médico..de uma visão diagnóstica...ou de uma ideia de "anormalidade"...
O que faço aqui é um esforço para ver na solidão uma força criadora...um atributo básico de todo filósofo..um pré-requisito para um pensamento original e para capacidade de distanciar-se desse falso mundo dos sentidos em que insistimos em definir o próprio sentido do mundo. Quero também apresentar, naquilo que mais parece um jogo de palavras, minha "angústia com a falta de angústias"..e a minha perplexidade com um mundo sem tempo para se ficar verdadeiramente perplexo com mais nada..
Imagino estar autorizado (por mim mesmo..rss) a definir "dois conceitos de solidão" - uma solidão negativa, capaz de adoecer o homem à medida que lhe priva do convívio com o semelhante e com toda felicidade que decorre daí, e uma solidão coletiva..uma sensação ilusória de pertencer a uma gigantesca "manada" ..de ser um só com todos os outros...e de não ter mais um tempo seu..aquele momento necessário e quase obrigatório para qualquer filósofo em qualquer tempo ...tempo para própria solidão..
Porto Alegre, 17 de agosto de 2013