O PROTÓTIPO DO HOMEM EXISTENCIALISTA - Conforme Sartre, em seu livro “SAINT GENET: Ator e Mártir”
1. Introdução
Jean Genet se destacou, na literatura francesa do século XX, como um escritor que retratou o mundo marginal da sociedade europeia. Segundo Sartre, na literatura de Genet aparece o protótipo do homem existencialista.
Principalmente no livro de Genet “O Diário de um Ladrão” se desnuda a vida dos marginais em diversos lugares na Europa. Genet é um destes marginais. Ele aparece como excluído, ladrão, prostituto, homossexual, traidor, miserável, prisioneiro, fugitivo das prisões, condenado. Parece que todo mal se manifesta nele. Mas, sendo escritor reconhecido por sua genialidade, os intelectuais se tornaram seus amigos e se preocuparam com ele.
Quando Genet estava preso, Sartre, Foucault e outros intelectuais fizeram manifestações de rua para conseguir sua libertação. E o Presidente francês o indultou.
Diante de tantos paradoxos na vida de Genet, Sartre o tomou como protótipo do homem existencialista, descrevendo e analisando a biografia deste homem diferente, transformando-o em “Saint-Genet”, comediante da vida e mártir das relações sociais e morais da burguesia europeia.
Cinquenta anos depois de Sartre ter publicado seu livro “Saint Genet: comédien et martyr(1952)”, ele foi traduzido para o português, e publicado no Brasil pela Editora Vozes. No entanto, esta obra de Sartre é relativamente pouco conhecida entre nós. Por isto, ela merece ainda que nos detenhamos nela, examinando-a a partir da análise social e moral que Sartre faz do contexto de vida de Jean Genet.
Tomando, assim, em consideração, especialmente, que Sartre vê em Genet o protótipo do homem existencialista, sugere-se que o mundo em que ele vive nos desvenda os motivos de muitos problemas sociais e morais que afetam o homem civilizado e burguês do século XX, e de hoje. As interpretações que Sartre faz do “ator” e “mártir” Genet nos estimulam a compreender melhor algumas das questões sociais e morais de nosso tempo.
2. O homem existencialista
Para obter êxito em nossa proposta, foi necessária a leitura de alguns dos escritos de Jean Genet, com destaque especial para o Diário de um Ladrão, pois este livro é , praticamente, uma autobiografia. Mas isto não significa que a leitura de outras obras de Genet seja dispensável, como As Criadas, Nossa Senhora das Flores, O Balcão, etc...
Embora o objetivo deste artigo não seja o aprofundamento na literatura de Genet, e sim na filosofia de Sartre, contudo é pressuposto conhecer os escritos deste autor. Pois só assim entenderemos o interesse de Sartre em usá-los para explicar sua filosofia existencialista. Inclusive, deve-se considerar que Sartre escreveu Saint-Genet em sua segunda fase filosófica.
Em sua primeira fase, Sartre exaltou a liberdade de tal forma que parecia ter ela valor por si mesma. Agora, após as lições da II Guerra, ele volta sua atenção mais para a responsabilidade social. Nesta nova forma de abordar a questão da liberdade, Sartre planejou, em 1945, uma novela em quatro volumes, sob o título Os Caminhos da Liberdade. Destes quatro volumes, publicou três: Idade da Razão, Sursis e Com a Morte na Alma. Em vez do quarto volume, preferiu escrever teatros com temas nitidamente sociais e políticos. Assim apareceram: As Moscas, Entre Quatro Paredes, Mortos sem Sepultura, A Prostituta Respeitosa, As mãos sujas, O Diabo e o Bom Deus, Nekrassov, Os Sequestradores de Altona, que trata do colonialismo na Algéria francesa. Todas estas peças fazem uma abordagem pessimista do relacionamento humano, enfatizando a hostilidade natural do homem para com seu semelhante, porém deixando antever uma possibilidade sempre presente de remissão e salvação.
Já em 1946, Sartre escreve O Existencialismo é um Humanismo, um tratado com conteúdo ético. Seguem-se Reflexões sobre a Questão Judaica, um livro sobre Baudelaire e outros escritos com interpretações sócio-psicológicas. É nesta categoria que se situa Sait-Genet – ator e mártir(1952).
Após a II Guerra Mundial, Sartre continuou sua atividade política, com inclinação manifestamente esquerdista, tornando-se um ativo admirador da União Soviética. Contudo, nunca se filiou ao partido comunista. A entrada dos tanques soviéticos em Budapeste, em 1956, deixaram Sartre desapontado com o comunismo, passando então a criticar a União Soviética, e a submissão do partido comunista francês a Moscou.
Esta polêmica resultou em vários escritos de Sartre, entre os quais está o livro Crítica da Razão Dialética, de 1960, em que ele trata das afinidades do existencialismo com o marxismo. Acusa o marxismo de se ter ossificado. Em lugar de se ter adaptado a situações particulares, compeliu cegamente o particular a enquadrar-se num universal predeterminado. Era preciso reconhecer circunstâncias existenciais concretas, que diferem de uma comunidade para outra, e respeitar a liberdade individual do homem.
Isto demonstra que, também na Crítica da Razão Dialética ele permanece fiel à defesa da liberdade, como base da construção da vida do indivíduo. Mesmo que o ser humano escolha mal em viver sua vida, contudo foi ele que a escolheu.
A partir deste princípio de liberdade, que perdura no existencialismo sartreano, é preciso ler e interpretar também o Saint-Genet. Nesta obra Sartre caracteriza e interpreta os motivos, as causas e as consequências que levaram Genet a escolher “livremente” ser ladrão e marginal. Mas por que Sartre transforma este marginal num Santo e Mártir? Sartre explica que isto se justifica quando se examina o mundo em que Genet nasceu, cresceu e viveu, e quais foram os mecanismos psicológicos ativados no homem Genet.
Para Sartre, Genet foi o que ele fez de si. Mas, ele foi de fato o que ele quis ser? As circunstâncias de sua época, as ideias e práticas morais de seu mundo situaram Genet num ambiente preconceituoso, injusto, repressor, excludente, em relação ao qual resistiu. E esta resistência o moldou, fazendo com que se assumisse de acordo como foi caracterizado pela moral burguesa que o cercava.
Já que o chamaram de ladrão, assumiu-se como ladrão. Assim Sartre proclama Genet como sendo o protótipo do homem existencialista, cuja distinção entre o bem e o mal é o resultado de uma escolha e decisão. Mas será que não deveríamos criticar Genet como sendo um prisioneiro de seu próprio mundo do crime? Um encarcerado em seu próprio vício, do qual não consegue se libertar? Em vez de aceitar com Sartre de denominá-lo “Saint Genet”?
Divergindo, inicialmente de Sartre, juntamente com outros intérpretes, contudo podemos verificar que Sartre interpreta adequadamente o que aconteceu com Genet. E que em circunstâncias sociais e morais análogas aconteceria também o mesmo com outros indivíduos. Assim, Genet revela um aspecto da natureza do ser humano, tornando-se benéfico para toda a humanidade.
3. Conclusão
Que proveito nos traz a obra de Sartre sobre Genet?
Com certeza, a leitura desta obra nos leva a conhecer melhor a filosofia existencialista de Sartre. Uma filosofia que ensina a cada um a assumir com responsabilidade plena as circunstâncias de sua vida. E nestas circunstâncias históricas, em que nos situamos, se manifestarão os problemas sociais e morais que constituem nosso mundo, assim como, em seu tempo, se manifestaram a Genet. Na vida de Genet estas circunstâncias manifestaram todo seu poder de sedução, levando-o a escolher o que queria ser, o que o constitui em protótipo do “homem existencialista”, na visão de Sartre.
Inácio Strieder é professor de filosofia - Recife- PE.