De cargueiro ao esquecimento? - A ausência do Negro nos relatos da bandeira do Anhanguera, pelo alferes Silva Braga

Fabiane Silva Rodrigues

fabysrodrigues@gmail.com

[...] A vastidão desses campos,

A alta muralha das serras

As lavras inchadas de ouro

Os diamantes entre as pedras

Negros, índios e mulatos.

Almoçares e gamelas.

[...] Os rios, todos revirados

Toda revirada, a terra.

(Cecília Meireles)

O ensino de História Regional nos níveis médio e fundamental, por ausência da abordagem desta pelos livros didáticos que, erroneamente, são utilizados como suporte no ensino pelos professores, se mostra desordenado. Por não se trabalhar em sala de aula a História do estado ou da cidade, tal ausência é o primeiro item da justificativa, seguido de outros como falta de tempo e fontes para se pesquisar, baixos salários e uma infinidade de problemas que permeiam a vida profissional de uma enorme gama de professores de História e são usados como desculpas, justificando a baixa qualidade do ensino no estado. A riqueza de informações sobre a história da região está no álbum de fotografias, na música, nas tradições, na cultura, na memória do idoso, nas cartas, diários, na literatura, em todo lugar. Contudo, estes documentos não são devidamente explorados, há profissionais acomodados e uma comunidade discente totalmente adversa quanto à sua participação como sujeito histórico e principalmente quanto às suas raízes.

O presente trabalho consiste na análise da carta de José Peixoto da Silva Braga, enviada ao padre Diogo Soares, em agosto de 1734. Silva Braga participou da expedição coordenada por Bartolomeu Bueno da Silva (filho), que partiu de São Paulo ao interior, nos Goyazes, e objetivava reencontrar minas de ouro descobertas quarenta anos antes por Bartolomeu Bueno, o Anhanguera.

Partindo da efetivação da lei 10.639, que estabelece como obrigatório, nos níveis fundamental e médio, em escolas públicas e privadas, o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira , também se faz necessária a abordagem da História do negro em Goiás como elemento importante na construção da identidade regional, para o enriquecimento da escrita da história da região.

Os negros participaram das bandeiras, presenciaram a descoberta do ouro em nossa região e foram elementos principais no trabalho de exploração do mesmo. Portanto, não fugindo do ideal de democracia racial de Freyre na obra Casa Grande & Senzala , o negro explorador do ouro e talvez participante da bandeira do Bartolomeu filho, poderá ter sido um dos indivíduos que inicia a miscigenação nas Minas dos Goyazes, dando origem ao João mameluco, ao Pedro cafuzo e ao leitor goiano negro de olhos verdes.

Salles destaca a predominância do escravo africano na mineração goiana:

“Os paulistas que se dirigiram às minas, ate a terceira década do século XVIII, tinham preferentemente, indígenas sob sua administração, podendo-se talvez supor que tenham, no assentamento inicial das propriedades rurais, se prestando a auxiliar na lavoura. [...]

[...] Mas na região mineradora goiana, como nas demais áreas de exportação, predomina o africano.” (SALLES, p. 243)

Rezende destaca a baixa faixa etária dos escravos das minas, o que indica que estes provavelmente vinham desacompanhados de mulheres.

“Na verdade, a população mancípia que migrou para o restante da Colônia, era escolhida conforme a necessidade senhorial. Assim, os senhores de escravos de minas compravam seus cativos seguindo praticamente três critérios, a idade, que era geralmente entre 15 e 20 anos; o sexo, comumente havendo a preferência pelos homens, em função das atividades econômicas desempenhadas em Minas; e a origem, predominando os africanos da Costa Ocidental, sobretudo, os de nação mina.” (REZENDE, p.76)

Em Palacin, o aumento vegetativo da população é destacado:

“1753 é o ano que marca a maior produção do ouro, depois começa a decadência. Daqui por diante o aumento de população, sempre bastante lento, deve-se exclusivamente, a um aumento vegetativo, não a imigração de novos trabalhadores.” (PALACIN, p. 32).

Portanto, o povoamento de Goiás se inicia com a vinda dos trabalhadores exploradores do ouro, se processando através do entrecruzamento das raças. Tal fato destaca para a História Regional de Goiás, tamanha importância não somente do paulista bandeirante que efetiva a expedição e dos seus companheiros acompanhados de seus índios e negros, mas também do indivíduo que vem posteriormente para explorar o ouro, do escravo que ele traz para fazer o trabalho para si e da formação dos arraiais que originam as primeiras cidades goianas.

Nos roteiros da bandeira ao interior da capitania de São Paulo, coordenada pelo Anhanguera filho, relatada por José Peixoto da Silva Braga e Urbano do Couto, mesmo superficialmente, é descrita a viagem de emboabas, paulistas e seus negros e índios ao interior do país em busca de riquezas. Contudo, em tais relatos nota – se claramente a ausência de informações sobre as minorias que participavam da bandeira. É mencionada a presença de índios e negros junto a seus donos, todavia, tal descrição é feita somente como informações quantitativas, a importância da presença destes na expedição é simplesmente ignorada.

“[...] Dos brancos, quasi todos eram filhos de Portugal, um da Bahia e cinco ou seis Paulistas com seus índios e negros, e todos a sua custa. [...]” (SILVA, Henrique. P.11)

“[...] Da Meia – Ponte distante dois dias se deixou ficar Frei Antônio com ânimo de lançar roça com dez negros... [...]” (SILVA, Henrique. P.14)

A historiografia brasileira, no que se tange à abordagem da participação indígena nas entradas e bandeiras, se mostra bastante competente. A destreza do nativo em meio à mata, às águas e à doença é enfatizada, mostrando a importância da presença destes em tais expedições para adentrar o interior do país em áreas desconhecidas, encontrar alimento, identificar quais frutos nativos seriam comestíveis e quais ervas poderiam servir como medicamento.

“Detenhamo-nos por ora nas marchas indígenas, que contribuíram enormemente para o avanço dos bandeirantes mato adentro. Sem o saber, subjugados pela postura senhorial dos cabos-de-tropa piratininganos, os índios foram os verdadeiros mestres sertanistas dos bandeirantes, ciceroneando-os e iniciando-os nos segredos do viver cotidiano, num universo que reivindicava habilidades específicas. Guiando os expedicionários paulistas por trilhas incultas, os índios possibilitaram o descortinamento de áreas remotas, nunca antes percorridas por homens oriundos de além - mar. Desta forma, o alcance destas paragens longínquas foi em grande parte devido à colaboração indígena.” (NETO, p. 56)

Contudo, a abordagem do negro nas pesquisas para produção historiográfica se intensifica somente a partir da década de 1960, justificando a quantidade reduzida de material referente à atividade dos mesmos nas expedições dos bandeirantes.

Nota-se, a partir da afirmação de Silva Braga, “Feitas duas canoas, e dado meu Cavallo a Fr. Luis, para m’o dizer em missas a Nossa Senhora da Boa Viagem, por lhe ter morrido o seu, rodamos rio abaixo [...]”, que nem todos, faziam o trajeto percorrido pelas bandeiras a cavalo . Portanto, deduz-se que índios, negros e os impossibilitados de possuírem um animal para o carregar se via obrigado a sentir nos pés a instabilidade dos terrenos, percorrer desmedidas distâncias sofrendo calor, sede e fome. As baixas na tropa podem ter ocorrido por falta de animais de carga, se levar em conta parte ainda do relato de Silva Braga:

“[...] Aqui nos começou a gente a desfallecer de todo: morreram-nos mais de quarenta e tantas pessoas entre brancos e negros, ao desamparo, e o eu a ficar com vida o devo ao meu cavallo, que para me montar nelle pela nímia fraqueza em que me achava me era preciso o lançar-me primeiro nelle de braços levantados sobre o primeiro cupim que encontrava.[...] ” (SILVA, Henrique. P.15)

E o negro? Estava na expedição, certamente incumbido de várias responsabilidades do seu senhor. Cargas, preparo de alimentos, foices na mão para abrir passagens no mato...

“Escravos [tanto indígenas como negros] serviram de carregadores. Compunham-se a carga de pólvora, bala, machados e outras ferramentas, cordas para amarrar os cativos, às vezes sementes, ás vezes sal e mantimentos. Poucos mantimentos. Costumavam partir de madrugada, pousavam antes do entardecer, o resto do dia passavam caçando, pescando, procurando mel silvestre, extraindo palmito, colhendo frutos; as pobres roças dos índios forneciam-lhes os suplementos necessários, e destruí-las era um dos meios mais próprios para sujeitar os donos.” (ABREU, p.142)

Não há no roteiro relatado por Silva Braga, menções de deserções de negros e resistências. Para Neto, talvez este fato esteja associado ao medo causado pelo recente episódio que, por ora, dizimou muitos dos seus compatriotas em Palmares. Não há no mesmo, tampouco, qualquer outra referência à importância da presença dos escravos oriundos da África na bandeira, o que deixa uma enorme lacuna se tal história for analisada somente a partir deste documento, escrito junto a alguns negros escravos que, mesmo sem posses, importância e outra cor, foram elementos que possibilitaram talvez, a sobrevivência de muitos durante a expedição e o enriquecimento do seu senhor, os ignorou e permitiu que estes sujeitos históricos, por um tempo, ficassem invisíveis na história.

BIBLIOGRAFIA

ABREU, J. Capistrano. Capítulos de História Colonial. São Paulo: Edusp, 1988.

NETO, Manuel Pacheco. Palmilhando o Brasil colonial: A motricidade de bandeirantes, índios e jesuítas no século XVII. Dissertação de Mestrado. Dourados: UFMS, 2002, 145 p.

PALACIN, Luiz. O século do ouro em Goiás. 3ª Ed. – Goiânia: Oriente: Brasília: INL, 1979.

PALACIN, Luiz, GARCIA, Ledonias Franco, AMADO, Janaína. História de Goiás em documentos: I. Colônia. Goiânia: Editora UFG, 1995.

REZENDE, Rodrigo Castro. As “Nossas Áfricas”: população escrava e identidades africanas nas Minas Setecentistas. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: UFMG, 2006, p.12 – 75.

SALLES, Gilka Vasconcelos Ferreira de. Economia e escravidão na capitania de Goiás. Goiânia: CEGRAF/UFG,1992.

SILVA, Henrique. A Bandeira do Anhanguera a Goiás em 1722 (reconstituição dos roteiros de José Peixoto da Silva Braga e Urbano Couto). In: TELES, J. M. (cord). Memórias Goianas. Goiânia: UCG, 1982.

SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves. Aprendizagem e ensino das africanidades brasileiras. Reorientação Curricular em AÇÃO – Construção do 5º Caderno. Superintendência do ensino fundamental itinerante. Secretaria de Educação Estadual de Goiás. 2007.