A HISTÓRIA VISTA DE BAIXO: O underground literário na França pré-revolucionária

O Iluminismo que gerou a Revolução Francesa ou foi a Revolução Francesa que gerou o Iluminismo? Com este questionamento, proposto por Roger Chartier em sua obra Origens Culturais da Revolução Francesa, acerca da França do século XVIII, inicio este trabalho, onde objetivo fazer um estudo sobre os grupos literários da França no Antigo Regime e ponderar seu papel na Revolução Francesa. Partindo de pesquisa bibliográfica e análise introdutória de duas obras do Chartier: a acima citada e A Ordem dos Livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII, e uma análise mais aprofundada da obra Boemia Literária e Revolução: O submundo das letras no Antigo Regime do Robert Darnton , busco dialogar com estes autores, que fazem parte da vertente histórica chamada “História Cultural”, acerca da influência da literatura underground no processo revolucionário francês nos últimos 25 anos do Antigo Regime e a percepção da leitura sobre a população da França na época.

A historiografia tradicional está habituada a afirmar que foi o Iluminismo, com seus ideais políticos fundamentados na primazia da razão sobre a fé e a tradição, que originou a Revolução Francesa.

Roger Chatier critica essa conclusão fazendo uma suposição de que o caminho talvez tenha sido o oposto, ou seja, a Revolução Francesa que gestou o Iluminismo. Partindo deste pressuposto, surge outro questionamento: como isto seria possível se os philosophes já desempenhavam suas atividades intelectuais antes da Revolução Francesa? Para Chartier, o que houve foi uma preferência dos revolucionários de 1789 por alguns autores franceses como Voltaire, Rousseau, Gabriel Mably, Guillaume Raynal, eles desejavam buscar a paternidade da Revolução em alguns autores contemporâneos, pois, uma vez que estavam concretizando as ideias dos pensadores, trariam junto sua legitimidade. Porém, vários outros autores tão talentosos quanto os que foram sacramentados por 1789, não foram inclusos neste distinto grupo, seguramente pelo fato de apresentarem propostas antagonistas dentro do discurso filosófico, muitas delas reforçando a autoridade real. Por isso, Chartier propõe a mudança do termo de origens intelectuais, que abarcaria apenas uma parcela de pensadores, para origens culturais termo mais fluido e que aceita ideia de outros pensadores, mesmo aquelas contrárias aos postulados defendidos pelos revolucionários franceses (CHARTIER, 2009, p.29).

Considerando esta afirmação, podemos nos perguntar qual o papel da leitura na formação de novas ideias e novos pensamentos e até onde ela interfere e influencia as ações humanas, atingindo diferentes tipos de leitores.

De acordo com Chartier, em sua obra A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII, são os leitores que dão forma à leitura, conferindo sentido ao que leem. Para analisar o contexto da produção e circulação de um texto, é necessário considerar aspectos socioculturais que influenciarão a maneira como o leitor apreende e compreende um texto, não restringindo a análise somente a diferenciação entre leitores populares e eruditos. Sendo assim, devemos fazer um levantamento dos aspectos culturais envolvidos na prática literária do século XVIII, especificamente nos últimos anos do Antigo Regime francês.

Nesta época, vale destacar, a maioria da população francesa era analfabeta, mas apesar disso, muitas das obras literárias, como jornais e folhetins, eram lidas em voz alta nos locais públicos, permitindo que esses sujeitos analfabetos entrassem em contato com essa literatura revolucionária. Neste ponto, faz-se necessário iniciarmos o diálogo com Robert Darnton.

A Revolução Francesa, considerada uma das maiores revoluções da História, foi, e é, objeto de estudo de diversos historiadores. Visto isso, Darnton propõe uma abordagem diferente, ele busca compreender a Revolução Francesa através do submundo das letras, da literatura clandestina, proibida pelo Antigo Regime, e dos escritores e filósofos que habitavam o submundo francês nos últimos anos do regime:

Tantas foram, e tão boas, as descrições do ápice da história intelectual do século XVIII, que talvez conviesse rumar noutra direção, tentando atingir a base do Iluminismo e mesmo penetrar seu submundo, lá onde ele possa ser examinado como ultimamente se tem feito a Revolução – isto é, de baixo. (DARNTON, 1989, p. 13).

Analisando esta obra de Darnton, poderemos contextualizar e estudar os indivíduos que foram esquecidos pela historiografia tradicional – os habitantes do underground, os subliteratos - e perceber o papel desses homens no processo revolucionário francês do final do século das luzes.

O mundo literário do século XVIII se dividia entre duas realidades opostas: o Le Monde, elite sociocultural apoiadora do Antigo Regime, e os subliteratos, o underground, a boemia literária, formada por homens que fracassaram na busca pelo sucesso, por isso tornam-se adeptos de uma política contra o regime.

O Le Monde era um seleto grupo de philosophes que viviam à custa de pensões concedidas pela monarquia, era, literalmente, o mundo frequentado por gente da mais alta estirpe. Para fazer parte desta elite sociocultural era mais necessário ter boa aparência, bons costumes e contatos, do que, de fato, talento para escrever. O autor deixa isto bem claro nesta passagem:

O elemento ausente era o mercado: Suard vivia de pensões e sinecuras, não da venda de livros. Na verdade, pouco escrevia; e pouco tinha a dizer – nada, ocioso acrescentar, que ofendesse o regime. Acatava escrupulosamente a linha do partido dos philosophes e embolsava a sua recompensa. (DARNTON, 1989, p. 18).

Verificamos que, sendo o mercado, um elemento ausente, os philosophes do Alto Iluminismo dependiam dessas pensões cedidas pelo Antigo Regime para sobreviverem. O autor põe em evidencia que não era qualquer individuo que conseguia uma destas pensões, era necessário ter relação direta com o Le Monde e principalmente opiniões “sadias”, isto é, favoráveis à monarquia.

No século XVIII ocorreu uma valorização do status do escritor, um elevado número de jovens passou a almejar a carreira na República das Letras. Porém, como já foi dito, apenas poucos privilegiados conseguiam chegar a fazer parte do Le Monde. O resultado disto foi o crescente aumento da população de escritores desempregados nas ruas da França.

Os que não obtiveram sucesso neste caminho, os que chafurdavam em fracassos com relação as suas tentativas estéreis de agarrarem algum patrocínio, os que não escreviam a literatura “sadia” se acomodaram no submundo das periferias parisienses, sendo obrigados a realizar trabalhos considerados, dentro do meio literário, “sujos” como, por exemplo, espionar para a polícia, produzir panfletos, livros proibidos e pornografia, para sobreviverem. Alguns se atiravam no abismo degradante da marginalidade.

A vida dos subliteratos era dura e cobrava um tributo psicológico; as “fezes da literatura” não enfrentavam apenas o fracasso, mas também a degradação – e tinham de fazê-lo sozinhas. O fracasso gera solidão, e as condições do underground eram adequadíssimas para isolar seus habitantes. (DARNTON, 1989, p. 37).

Eram ridicularizados pelos philosophes que os chamavam de “escritores de sarjeta” e afirmavam que eles ocupavam um nível social inferior até mesmo ao das prostitutas. Por outro lado, os textos produzidos pela boemia literária estavam carregados de críticas contra o Le Monde, o ódio do proletariado literário contra a aristocracia literária crescia, e foi nesse submundo das letras que estes homens se tornariam revolucionários.

Darnton afirma que o underground não possuía uma estrutura corporativa definida, porém não era totalmente anárquico, tinha até algumas instituições onde exibiam seus trabalhos, declamavam trovas e faziam contatos. Normalmente o contato entre os subliteratos se davam nos cafés

Darnton afirma que o principal meio de vida dos subliteratos era a produção de libeles que nada mais eram que acusações ferrenhas à monarquia, eram o seu ganha pão e gênero favorito:

Um gênero que merece ser resgatado da negligência dos historiadores, pois comunica a visão de mundo da boemia literária: um espetáculo de velhacos e idiotas vendendo-se uns aos outros, sempre vitimados por les grands. O verdadeiro alvo dos libeles era o grand monde. Difamavam a corte, a Igreja, a aristocracia, os salões – tudo o que fosse elevado e respeitável, sem perdoar a própria monarquia – com uma insolência difícil de imaginar ainda hoje, mesmo em se tratando de gênero com longa carreira na literatura clandestina. (DARNTON, 1989, p. 39).

Em suas críticas o sensacionalismo estava sempre presente, principalmente o sexual. Afirmavam que os nobres sofriam de impotência sexual, e suas esposas eram obrigadas a se satisfazerem sexualmente com a criadagem, ou então eram pervertidos. A crônica de adultério, sodomia, incesto e impotência nas classes altas pode ser lida como indiciamento da ordem social.

Podemos afirmar que estas críticas constantes tinham alguma relação com a Revolução? De acordo com Robert Darnton, não. O verdadeiro motivo que levou à Revolução Francesa foram questões econômicas: o descontentamento da população carente que passavam fome enquanto a Corte esbanjava, o fracasso dos escritores excluídos do Le Monde que criticavam ferrenhamente a monarquia, porém estavam apenas em busca de meios de sobrevivência em tempos extremos. Entretanto, mesmo “sem querer” eles foram verdadeiros propagadores do descontentamento com a ordem vigente do século XVIII, os subliteratos foram indivíduos imprescindíveis para a queda da monarquia, sem o esforço destes homens, podemos afirmar que a Revolução Francesa não teria ocorrido.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Editora UNB. 2ª edição, 1999.

CHARTIER, Roger. Origens Culturais da Revolução Francesa. São Paulo: Editora Unesp, 2009.

DARNTON, Robert. Boemia Literária e Revolução: O submundo das letras no Antigo Regime. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Stefany Marquis
Enviado por Stefany Marquis em 10/04/2013
Código do texto: T4233746
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