Nietzsche e o Rock
Autores:
Enock Borges Jr.
Paulo Irineu Barreto
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“Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você.”-
Friedrich Nietzsche
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A relação entre rock e filosofia é um tema bem atual, discutido por vários pensadores e que tem assumido um lugar privilegiado na mídia, redes sociais e nas publicações especializadas (2). O que chama a atenção é a interação de jovens nas pesquisas, artigos e livros, uma vez que o rock é um assunto bem atrativo para estes jovens e faz com que eles interajam mais com a filosofia, “curtindo” as musicas de uma forma mais critica e racional. Assim, eles percebem valores e conceitos, inerentes à filosofia e presentes nas músicas, raramente percebidos por eles mesmos e pela maioria das pessoas.
Assim, propor a relação entre o rock e a filosofia nada mais é do que demonstrar o caráter contestatório e crítico de ambos, no que diz respeito aos valores impostos pela sociedade. Cada um da sua maneira tenta “abrir os olhos do povo” para mudar o cenário contraditório de valores que seguimos, mas que não provém necessariamente de nós mesmos e, geralmente, não são do nosso interesse, isto é o que afirma o niilismo de Nietzsche (3), para o qual o caos é necessário para se produzir a paz. O estilo agressivo do rock, suas letras contestatórias e a sua rebeldia poderiam representar este “caos primordial”.
Ao afirmar que “Deus está morto” (4), Nietzsche propõe a morte de valores tradicionais e “eternos”, para que os seres humanos pudessem criar os seus próprios valores, tornando-se, cada um, o herói de si mesmo! Da mesma forma, o rock assassinou todas as regras de musicalidade da sua época. Criou um “hiato” entre gerações e propôs uma forma inusitada de “ver” a vida e a realidade, questionando-a. A fórmula deu certo e o rock hoje é um “senhor cinquentão” que resiste ao tempo, mesmo tendo passado por várias transformações e estilos. Colocando lado a lado esses dois “inquietos” (Nietzsche e o rock) percebemos que, na verdade, há muito mais de Nietzsche no rock do que se pode imaginar, e é isto o que o presente artigo pretende demonstrar.
Guerra civil e a perda dos valores
As guerras civis sempre foram um ponto marcante em toda a história do mundo, sempre se mostrando necessárias aos olhos de quem tem interesse no resultado final, algumas vezes até se mostrando a única solução. Extermínio de populações inteiras, corpos caídos no chão, sangue em todo lugar, desejo de vitoria, mentes manipuladas. Essas são as faces das guerras que são normalmente ocultadas, como se objetiva a pacificação de um local adentrando nele espalhando pólvora em casas de família?
Com toda essa temática das guerras civis o que não falta é inspiração para se criar trabalhos que penetram no subconsciente das pessoas, na tentativa de promover nada mais do que o desejo do caos, mas em busca da paz. Vários filósofos lançam mão de um mundo cheio de guerras para criticar valores, ideais e ações humanas, e por mais inesperado que seja, várias letras de rock fazem uso das criticas de valores nesse mesmo mundo de guerras idealizado pelos filósofos. Claro que a forma como se entende o pensamento de um filósofo e de um cantor de rock é extremamente diferente e o impacto que irá surtir também será. Porém, o que aproxima esses dois lados, tão opostos, é o fato de que eles estão questionando os valores atuais, ou melhor, a forma com que entendemos e praticamos estes valores. As pessoas se tornam mais individualistas e mais egoístas a cada dia.
Aprofundando mais ainda no tema guerra civil fica fácil perceber os rastros de Nietzsche pelas músicas. Observemos alguns trechos da música Civil War, da banda Guns ñ Roses:
Veja o ódio que estamos criando
Veja o medo que estamos alimentando
Veja as vidas que estamos perdendo
Da maneira que sempre foi antes
Minhas mãos estão presas
Os bilhões passam de um lado para outro
E a guerra continua com orgulho de mentes lavadas
Pelo amor de Deus e por nossos direitos humanos
E todas essas coisas são deixadas de lado
Por mãos sangrentas que o tempo não perdoará
E que são lavadas pelo seu genocídio
E a história esconde as mentiras de nossas guerras civis
[...]
E eu não preciso de sua guerra civil
Ela alimenta os ricos enquanto enterra os pobres
Sua fome de poder vendendo soldados
Em um armazém humano, não é uma graça?
Eu não preciso de sua guerra civil
Nesta musica, o cenário que se passa é de que os soldados são apenas peças de um jogo, uma guerra só acontece quando há interesse, ambição, egoísmo. Ao ler uma letra como essa, é possível perceber que a situação acontece e nós somos incapazes de fazer algo, além de criticar aqueles valores que prezamos tanto. A aporia promove no ouvinte sentimentos de raiva, ódio e repúdio, fazendo com que a insatisfação desta situação promova modificações extremas mesmo que seja apenas mental. Então o que isso tem a ver com Nietzsche?
Ora a musica inteira esta repleta de niilismo, coberta por quebra de valores e insatisfação latente, o pessimismo exagerado e o cenário deplorável não só chamam atenção como também conseguem persuadir o ouvinte a se modificar.
“Dizes que uma boa causa justifica tudo, inclusive a guerra? Contesto: uma boa guerra é que justifica qualquer causa.” — Nietzsche
Vejamos agora algumas afirmações presentes na música Black Rain, de Ozzy Osbourne:
A chuva negra está caindo
Contaminando o solo
A raça humana está morrendo
Os mortos estão espalhados
Qual o preço de uma bala?
Outro buraco na cabeça
Uma bandeira estendida sobre um caixão
Outro soldado está morto
Quantas vitimas cairam?
Quantos mais terão que morrer?
Pessoas morrendo em massa
O Anjo da Morte está pronto
[...]
Os políticos me confundem
Eu vejo a contagem de mortos crescer
Por que as crianças estão marchando
No deserto, para morrer?
A mente humana é distorcida
A loucura se levanta novamente
Outra queda do império
Eu os vejo morrer em vão.
Embora Black Rain não seja uma das musicas mais agressivas do repertorio de Ozzy Osbourne, ela consegue repassar ao público toda a riqueza de sentimentos e não deixa escapar nenhum suspiro de dor. Alem de causar grande impacto nas pessoas, esta música aponta para o “despertar da visão ampla”. Ao ler a sua tradução, você não mais pergunta por que uma guerra pode ser tão ruim, você apenas afirma a si mesmo que a humanidade é vitima da guerra. Nas mãos dos ambiciosos, o mundo se esconde por não poder fazer nada e o poder é mais persuasivo do que se pode imaginar!
Brothers in arms
(Dire straits)
Agora o sol foi para o inferno
e a lua está alta.
Deixe-me dizer adeus.
Todo homem tem de morrer,
mas está escrito nas estrelas,
e em todas as linhas de sua mão,
somos tolos por guerrear
com nossos companheiros de batalha.
Aqui não é o pessimismo que reina, mas sim a tristeza e a decepção com a humanidade. Ate mesmo na guerra o meu lar se tornará o lar do meu inimigo! Então porque guerreamos?
Esta música nos mostra que a ignorância humana é tanta que matamos nossos próprios irmãos por uma causa inútil. Estamos no mesmo planeta “mas vivemos em mundos diferentes”, provocamos sofrimento, dor e medo sem misericórdia em pessoas iguais a nós, mas por quê?
Porque somos facilmente manipulados e movidos pelo ódio dos grandes vilões inescrupulosos.
Não desertamos nossos companheiros por que eles estão do mesmo lado que nós, porém os irmãos que se opuseram foram mortos por mãos que ainda verão a justiça aniquiladora do seu próprio “lobo”.
“Somos tolos de guerrear com nossos companheiros de batalha.”
Na letra da música “Gears of war”, do grupo Megadeth, encontramos os seguintes versos:
Bombas inteligentes, armamentos teleguiados de precisão
Uma forma mais sofisticada para acabar morto
Ainda assim, pesquisamos e inventamos armas tão inteligentes
Que matar uns aos outros
Tal como as engrenagens da guerra
Engrenagens da guerra
Quando você andar com ladrões
Então você morre com ladrões
Atravessa meu coração e esperança
Que você morre
Quando a fumaça se dissipa
O diabo está no espelho
E você vê suas ogivas pintarem o céu.
Agora, você morre!
Nesta letra de Mustaine, ele apenas expõe a lógica invisível de uma guerra:
“Bombas inteligentes, armamentos teleguiados de precisão
Uma forma mais sofisticada para acabar morto”
Não importa o quão sofisticado e tecnológico for uma arma, sua finalidade é sempre matar, implicando que todo esse desenvolvimento é tão fútil quanto às vidas perdidas numa demonstração de “poder” das grandes nações. Afinal, para os donos da guerra, ela nada mais é do que um jogo e os soldados apenas peças.
“Quando você andar com ladrões
Então você morre com ladrões”
A ganância inescrupulosa de uma guerra é tão influente aos olhos dos fracos que moldá-los ao seu gosto nem requer esforços, e morrer pelo mesmo ideal já não causa indignação ou indagação.
Considerações Finais
O que nos desperta para uma visão mais crítica é a busca pelo conhecimento de temas ainda pouco explorados. Compreender a letra de uma canção bem conhecida faz parte de uma interpretação única, que nos leva além do simples prazer de ouvir. No entanto, nem todos estão dispostos a este esforço. Cabe aos incomodados, no bom sentido, realizar conexões extremas, no intuito de desvendar a maneira como os compositores interagem com o cotidiano e retiram dele a sua inspiração. Assim, as diferentes interpretações apontam caminhos a partir dos quais nos sentimos instigados a refletir para além do simples prazer efêmero, que também tem o seu lugar, de ouvir as músicas das quais gostamos.
Notas:
1) Texto escrito em parceria com Enock Borges Jr. (Aluno do 3º ano - Ensino Médio – IFTM – Campus Uberlândia). Este artigo é o início de um projeto que o referido aluno participa, sob a minha orientação (Prof. Paulo Irineu Barreto) - A publicação do texto está autorizada por ambas as partes.
2) A Revista Filosofia, no seu nº 38, traz matéria sobre o assunto.
3) Ver NIETZSCHE, F. Para a genealogia da moral.
4) NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência, Seção 125.
Traduções: Letras.terra.com. br-12/04/2012
Referências:
REVISTA FILOSOFIA. Conhecimento Prático. Nº 38. São Paulo: Escala Educacional.
NIETZSCHE, F. Para a genealogia da moral.
NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência.