Vampirismo cultural

A chegada dos europeus à América acarretou um atrito entre culturas. À primeira vista, parece plausível acreditar que, do embate entre as duas, tenha sobrevivido a cultura mais forte, a mais desenvolvida, mais evoluída, a melhor. Uma breve análise, no entanto, sugere terem sido outras as razões que resultaram no massacre das culturas americanas pelos europeus recém chegados. Citarei duas delas.

A mais fraca dessas razões pode nos surpreender: a ignorância. Creio que individualmente, cada um dos índios, ao contrário dos europeus, dominava a totalidade de sua cultura. Assim, com raras exceções, suponho, todos os índios dominavam as mesmas técnicas, de modo que quando usavam arco e flecha, todos os homens sabiam construir o arco, a flecha e utilizá-los; se pescavam, cada indivíduo sabia manufaturar os apetrechos de pesca e usá-los, se plantavam, todos dominavam as mesmas técnicas para cultivar as mesmas plantas do mesmo modo, de maneira que os mesmos conhecimentos eram compartilhados por todos os indivíduos de uma mesma cultura do novo mundo.

Se isso era assim, e se todos os índios de uma etnia compartilhavam os mesmos conhecimentos, e dominavam as mesmas técnicas, em certo sentido, pode ser dito que não havia ignorância entre eles, já que tudo o que podia ser aprendido o era por todos, inexistindo segredos entre eles. Creio haver certo exagero nessa descrição, tenho certeza que as habilidades humanas são individuais e que algumas pessoas, naturalmente, acabam tendo maior habilidade em certas ações que outros. Também suponho que certos conhecimentos mais específicos, como o da medicina, fossem dominados em mais alto grau por "especialistas" mais experientes que outros no assunto. Tais especializações reduzem apenas levemente as consequências da comparação a seguir.

Nesse mesmo sentido, os europeus recém chegados, ao contrário, eram extremamente ignorantes; desconheciam seu próprio mundo em altíssimo grau. Por exemplo, poucos dos invasores conheciam as técnicas da construção das armas que utilizavam; poucos deles, se algum, sabiam forjar uma espada, ou construir uma arma de fogo, além da pólvora, necessária a seu uso. De fato, os europeus possuíam, já no século XVI, uma cultura de especialistas na qual poucos indivíduos dominavam cada um dos campos de especialização existentes. Assim, agricultores europeus sabiam plantar, soldados guerrear, ferreiros forjavam o metal, e poucos deles se veriam aptos para substituir os especialistas de outras funções, que não a sua própria.

Tal ignorância acabou se revelando uma enorme vantagem no embate entre as culturas, como pode ser visto pelo seguinte: no contato entre índios e europeus, os índios conseguiam ensinar os europeus a construir e dominar o uso das armas índias. Por essa razão os europeus podiam aprender os mistérios do armamento inimigo, seu poder, suas fraquezas; podiam descobrir o alcance de um arco, sua velocidade de recarga, precisão da mira, e todas as demais variáveis relevantes para a análise do poderio inimigo em um batalha.

Mas os indivíduos europeus, via de regra, não tinham a menor ideia de como fabricar uma arma de fogo, por exemplo. Pouquíssimos dos que para aqui vieram no inicio da colonização, se algum, sabia construir uma espingarda, ou canhão, nem também extrair os componentes necessários para a fabricação da pólvora, ou como fazê-la. Se alguns talvez soubessem, ao menos em linhas gerais, como fabricar uma espada a partir de lâminas de aço preexistentes, poucos sabiam extrair o metal do chão, e prepará-lo para a fabricação de armas.

Assim, a ignorância dos europeus revelou-se uma forte bênção nas batalhas que se seguiram, enquanto eles aprendiam tudo sobre as artes bélicas do inimigo, não havia quem ensinasse os índios sobre as armas de seus antagonistas. Como nenhum invasor sabia fabricar uma espada, nenhum índio conseguiu aprender tal ofício. As armas europeias, por essa razão, permaneceram misteriosas, desconhecidas dos índios, facilitando enormemente a vitória nos conflitos armados entre bandos das culturas antagonistas.

Ao contrário do que costuma ser apontado, nesse caso, tal aspecto da ignorância dos europeus, e não sua cultura, favoreceu-os no conflito com os índios, sob esse aspecto mais cultos que o inimigo.

Embora o fato acima deva ter tido alguma relevância no embate entre as culturas, um outro fator teve maior impacto no massacre subsequente às invasões europeias da América. Trata-se de fenômeno que pode ser denominado "vampirismo cultural", descrito e compreendido da seguinte maneira:

Uma sociedade vampira se baseia, fundamentalmente, em alguma espécie de intolerância; consiste em um grupo que insiste na hegemonia cultural de um único ponto de vista, Quando um desses grupos se depara com outro, insiste em impor seu modo de ver o mundo, sua cultura. Eventualmente, a tentativa de imposição pode levar a conflito armado, embora a submissão de culturas diversas possa ser conseguida através de variados meios. Um modo entre outros de vampirismo pode ser compreendida através do lema: só existe um deus, é o meu, e você tem que acreditar nisso!;

Quando no encontro de duas culturas diferentes, a tentativa de imposição dos pontos de vista dos indivíduos do grupo vampiro pode ter sucesso. Pode acontecer, no entanto, que ao contrário, as maneiras dos antagonistas se imponham, sendo absorvidas pelos vampiros. Isso acarretaria uma espécie de contágio da nova sociedade, que mesmo "vitoriosa" no embate com os vampiros, mesmo resistindo à tentativa de imposição de seu modo de ver o mundo, poderia acabar, ela mesma, vampirizada pela outra, tornando-se, ela mesma, uma sociedade vampira, ansiosa por impor seus pontos de vista a todos os que se lhe aproximem.

Esse tipo de vampirismo, essa espécie de semente de intolerância, pode assim contagiar um vasto grupo de sociedades, mesmo tendo se originado em culturas "mais primitivas", menos aptas a sobreviver em um suposto embate em que a cultura mais desenvolvida predomine sobre a outra.

Como o centro geográfico da humanidade se situava próximo ao encontro entre África e Eurásia, não surpreende que os germes do vampirismo cultural, da intolerância, tenham chegado ali, independente do local onde tenham sido criados. Quando os europeus chegaram à América, já haviam travado uma enorme série de embates culturais, fortalecendo, desse modo a própria cultura, imunizando-se contra visões de mundo alienígenas.

Ao chegarem a terras americanas, com facilidade impuseram seu mundo, sua cultura, suas vontades, seus destinos, embora suas vantagens culturais talvez não decorressem de uma supremacia de conhecimentos, nem de uma cultura mais rica, ou sábia. Talvez a hegemonia europeia tenha sido, ao contrario, um fruto da ignorância de seus indivíduos, ou do vampirismo de sua cultura; da avidez, da brutalidade desenfreada, da intolerância para com outras visões de mundo que não sua própria.

É provável que a vitória dos europeus sobre os índios tenha correspondido à vitória dos vilões, e que os massacres ocorridos durante a invasão tenham sido fruto da mera vontade de imposição sobre o outro, da ânsia cruel e vil de dominação. Creio não haver razões para pensar que uma cultura mais evoluída substituiu outra mais primitiva, sendo essa a ordem natural das coisas, mas que a hegemonia, o esmagamento de uma cultura pela outra, resultou de uma ameaça maligna, do cultivo da intolerância, desse “vírus” de vampirismo cultural, já previamente disseminado pelo velho mundo.

Uma análise, mesmo superficial, das invasões europeias não sustenta a crença na substituição de uma cultura mais elevada por outra; os massacres recorrentes sugerem ter ocorrido uma vitória do mal.