"EN TUS MANOS, LA NICARÁGUA..." QUE HISTÓRIA.

“Em tus manos, la Nicarágua...” Que história.

Há poucos dias estava eu em ligeira conversa com o dono do restaurante onde me encontrava, já quase em retirada, quando algo na sua fala mudou o curso do meu pensamento, que foi longe e deu voltas. Esclareço. Ele falava de sua vida em outros países, nas muitas idas e vindas e no pai nicaraguense. Surpreendi-me de repente. Indaguei-lhe quando seu pai havia deixado aquele país – e aí eu já me preparava para receber algo, bomba ou flores. Ele seguiu relatando e, ao se referir ao avô, disse-me, de passagem,“o meu avô foi o braço direito de Somoza”. Disse-o com firmeza e, se não me engano, até com um certo orgulho, ainda que antigo. Em mim isso agiu como uma bomba. Calei-me. Sim senhor, o neto do braço. Foi então que o meu pensamento se movimentou. Ao meu redor as pessoas, uma após outra, foram se transformando em familiares daqueles ditadores peso-pesados da América Latina: Fulgêncio Batista, Videla, Pinochet, Stroessner (do Paraguai). Mirei-o de novo. Ele, o dono do restaurante, devia ter uns trinta e poucos anos, era simpático e tinha boa vivacidade no rosto olhando para mim, duas coisas que já valem um colóquio. Mesmo assim não foi solução:eu sentia uma espécie de mal-estar histórico (também antigo); fui logo alinhavando a prosa e me despedindo. Lá fora, virando-se a cabeça, topava-se com aquele marzão azul sereno, imperturbável.

Saltando: Nos anos setenta era comum o interesse dos europeus pela América Latina. A França conhecia a música daqueles países e até seus típicos instrumentos. A Alemanha também,mas se interessava mais pelos movimentos políticos, movimentos culturais e pelos livros. Havia uma espécie de atenção com esses povos e com sua sorte.

Em meados de 1978 eu recebia em minhas mãos, chegado por via aérea, um pequeno livro em espanhol chamado “La Santidad de La Revolución”. Eu havia conhecido, um pouco antes, um editor alemão que se tornara meu amigo e que era, naquele dia, o feliz autor do presente. Era um livro de Ernesto Cardenal, ou seja, era uma conversa do editor com o poeta, ocorrida cinco anos antes em Solentiname, Nicarágua. Surpreendente e belo, li-o com o sentimento de quem descobre e o contentamento de quem começa a focalizar mais certo. Por muitos anos guardei-o como quem tem uma obra rara,lida por pouquíssimos por mim escolhidos, o receio de que um dia pudesse não voltar àquela estante.

Algum tempo depois me chega outro livro e mais outro, que se seguem num total de sete. Foi dessa forma que tomei contato com sua obra e fui sabendo de sua vida e compreendendo sua grandeza. A Nicarágua sofria as agruras dos tempos de Somoza, os livros de Cardenal surgiam e eram lidos na Alemanha, Espanha e México. Às vezes eu ficava pensando como é que ele tinha podido permanecer naquele país, do qual eu mesma não conhecia nada, a não ser o nome do ditador e a vida de Cardenal que estava nos livros. E naquele ano de 78 ele habitava uma ilha no arquipélago de Solentiname, vivendo numa comunidade fundada por ele ao lado de nativos e camponeses, primeiro plantando e depois fixando-se no trabalho do artesanato (com lindas pinturas coloridas que eram capas de discos), na busca de uma comunidade de paz e trabalho. Cada semana reuniam-se todos para a leitura do Evangelho e estudo da vida, o que também foi difundido e constituiu-se em um dos livros, com fotos – “El Evangelio en Solentiname” ou “Das Evangelium der Bauern in Solentiname” na trad. alemã.

Cardenal era padre,poeta e revolucionário. Como padre foi discípulo de Thomas Merton entre os monges trapistas de Kentucky. Da Poesia recebera importante prêmio literário ( com o qual adquirira o terreno da ilha). Como revolucionário, bem, isso era ele inteiramente. Mas a essência mais clara de sua vida se encontranas respostas às questões no “La Santidad...” como esta: “Creio que isso (a vida na comunidade) não é nos afastar da luta política; na realidade eu me politizei com a vida contemplativa. A meditação, o aprofundamento, a mística é que me deram a radicalização política. Eu cheguei à Revolução pelo Evangelho. Não foi pela leitura de Marx, mas sim de Cristo”.

Saltando de novo:

Dez anos mais tarde Ernesto Cardenal era o Ministro da Cultura da Nicarágua e nessa condição foi que nos visitou. Eu não fui à sua ilha mas ele veio, doce e tranquilo, à minha. Foi a Secretaria de Cultura no meu Estado que ofereceu o passeio de escuna. Das autoridades de cá, nenhuma. Favorável, pois assim eu passava à linha de frente. Ainda em casa, quando acordei naquela manhã, corri para os livros na estante, despertando-os e enfiando-os na sacola. Quasetodo tempo ele falava pouco mas mantinha um sorriso permanente – e “nosotros” o acompanhávamos. Eu sentada ali junto olhava para ele e ele, para umponto distante no mar ou acima; navegávamos na Baía de Todos os Santos, quase chegando à ilha de Maré. Ele que não tinha costume de proferirmuitos elogios à terra que visita , animou-se muito quando falou da luta e poesia do bispo da Amazônia seu amigo Dom Pedro Casaldaglia. Almoçamos em Itaparica e na volta ao barco ,todos mais falantes, eu pergunto referindo-se à ilha: “Não é parecido não?” Ele sorri. Devagar abro a sacola e começo a tirar os livros em sua frente, um por um. Ele autografa, dedica. Por último, a Antología (o” Canto Nacional” muito querido)..Ele ficou surpreso de vê-lo aqui, escreveu e eu peguei-o de volta; ele me fitou com um sorriso largo e me disse: “Tu tienes la Nicarágua em tus manos...” e continuou sorrindo.

Fechando

Fico grata ao meu conhecido do restaurante : se não fosse ele eu não teria aberto esse arquivo e respirado essas interessantes recordações, muito embora, pelo tempo decorrido, sem mais nenhuma ou qualquer conexão com o presente. Permanentes são a Poesia e a espiritualidade. Fecho com uma das orações compiladas entre outras de quarenta tribos indígenas do mundo, num livro de E.C.:

ORAÇÃO DO PESCADOR

Grande espírito, dá-nos um mar calmo

pouco vento, pouca chuva

para que o barco possa seguir bem

para que o barco possa seguir rápido.

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Concessa Marin
Enviado por Concessa Marin em 05/09/2012
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