Sobre sexo, o inferno e minha filha
Toda vez que alguém comenta sobre sexo numa roda de amigos fico de orelhas atentas ao que se diz e se dirá.
Vias de regras, meninos e meninas, homens ou mulheres, jovens ou velhos, todos adoramos falar sobre o assunto. E muito a partir das muitas piadas que o envolvem.
Os rapazes conversam sobre sexo porque não podem deixar de pensar em fazer aquilo que sempre querem e que, graças a pouca disposição de suas escolhidas (ou escolhidos), nem sempre podem fazer - mesmo com a nova cultura do ficar. Os velhos conversam sobre sexo porque não podem deixar de sentir saudade dos tempos que puderam e tiveram todas as condições de gozá-lo de todas as maneiras possíveis, até que não mais pudessem.
E concordarão todos: se “fazer” sexo é bom, imagine "fazer" amor!
Entre minhas preocupações de pai, portanto, há a de que tenho uma filha de 16 anos que, apesar de portadora da Síndrome de Down, está linda e tem seus desejos, embora inevitavelmente a pureza seja sua motivação.
Não sei o que muitos pais e mães sentem por seus filhos e filhas – tendo sabido inclusive que muitas mães e pais são capazes de odiar suas crias a ponto de matá-las! – mas sei que muitos deles "fizeram" amor entre si de diversas formas. Uma senhora me confessou que, se tivesse um filho deficiente e nenhuma mulher que o quisesse, ela ficaria feliz por ceder o corpo dela a que seu filho conhecesse os prazeres do sexo.
Se realizasse seu desejo e fosse descoberta, entretanto, desconfio de que a opinião pública seria infinitamente menos tolerante se a iniciativa partisse de um pai. Menos ainda se fosse para satisfazer a um filho ou uma filha deficiente mental e homossexual. E o que dizer de um filho ou uma filha que quisesse mostrar como fazer sexo é bom a um irmão ou irmã deficientes ou mesmo aos seus pais?
Muitos, para justificarem a realização de seus naturais desejos incestuosos, citam a passagem da Bíblia que conta a história de Ló e suas filhas, sobreviventes à destruição de Sodoma (ou Gomorra?), muito usada pelo filósofo francês Voltaire quando especulava sobre as nuances da moral: "sem mais ninguém no mundo" que as fecundassem a perpetuação da “humanidade” (já que, como Caetano Veloso diz ser São Paulo, Sodoma era “o mundo todo”), elas embriagaram o pai a fim de que transasse com elas.
Dentre tantas possibilidades a avaliar à satisfação daquelas pessoas que amamos, a confissão daquela disposta senhora e seu filho deficiente me fez pensar quão valioso é o poder de uma mãe ou de um pai e quão maldosas interpretações da maioria das pessoas sobre certas relações sexuais.
Munidas de seus preconceitos, muitas sufocadas pela inveja do poder do sedutor despudor alheio, elas veem o mal onde não existe (já que não estamos falando de violência envolvendo estupros, espancamentos e assassinatos) – ao contrário daquelas pessoas “puras de coração” identificadas pelo apóstolo cristão Paulo de Tarso em suas epístolas, que transformam em beleza muito do que outras pessoas consideram somente as mais impuras expressões do mal.
Mesmo procurando compreender a maioria das nuances comportamentais, e mesmo considerando admiráveis as intenções daquela senhora, ou considerando as permissividades do apóstolo Paulo aos puros, mesmo que assim seja não me permito fazer sexo com minha filha deficiente a fim de que, depois de possivelmente rejeitada por todos os pretendentes, ela conheça os prazeres do sexo; e mesmo feito com amor – embora a mesma educação cristã não me tenha impedido de compreender o valor das vidas de uma família formada pelas uniões sexuais entre um casal de irmãos "de sangue", por exemplo; ou ainda as peripécias eróticas de um insólito comedor de maçãs, a sexualidade homossexual de um irmão ou as intenções das meninas mais velhas que, em prazerosos jogos sexuais, se aproveitaram de mim na infância.
Considerando nossa formação cristã, desconsiderando certos mandamentos e considerando outros, exerci até agora minha sexualidade com certa desenvoltura e, melhor, sem muitas culpas – naturalmente respaldado pelos desejos e entregas de minhas parceiras, com quem sempre transei senão expressando todo meu amor, no mínimo motivado pelo afeto e pela gratidão àquelas que me disponibilizaram seus corpos e, por momentos, também seus corações, ao meu bel prazer.
No processo, depois de ignorâncias mútuas, alguns acidentes aconteceram e se transformaram em três filhos queridos e uma filha, cuja presença em minha vida agora é razão principal deste comentário.
Analisando minha paternidade, do ponto de vista do que creio ser o bom sendo (ou, pelo menos, até onde posso exercitá-lo), tenho uma filha com Síndrome de Down de 16 anos: mas, o que para certos pais seria uma temeridade – uma vez que pensam ter uma filha “doente”, com futuro inevitavelmente atrelado ao deles por suas deficiências cognitivas e pela rejeição da sociedade a convivências com ela (fazendo com que, por sua vez, ela tenha baixíssima percepção de si mesma e do que acontece a sua volta, retardando ainda mais seu desenvolvimento possível) – minhas preocupações com Sophia têm se transformado apenas na preocupação de qualquer pai que imagina o que deve ser o melhor para seus filhos e filhas.
Dentro do senso comum, entretanto, em tempos passados, o melhor para as filhas, naturalmente munidas de toda “perfeição” estética, cognitiva, moral e cívica, era encontrar um bom partido como noivo, casar e constituir e cuidar de uma família, de preferência, grande.
Hoje, o melhor para filhas é que, como foi e ainda é para os filhos, elas se dediquem aos estudos acadêmicos, se formem e sejam financeiramente independentes para que possam, sendo donas de suas casas, de seus narizes e do resto de seus corpos, viver a própria vida sexual sem as interferências de um filho ou de uma filha – embora ainda o desejo de serem mães, mesmo solteiras, não vá impedir as novas mulheres das limitações que um filho ou uma filha possam lhes causar.
Às vezes, olho para minha filha e, apesar dos esforços (para mim, sempre insuficientes), acho muito difícil que ela consiga realizar uma coisa ou outra do que faz a maioria atrelada as normas sociais vigentes. Talvez porque, no fundo, minha visão de seu futuro seja expressão de meu desejo de que ela não saia do meu lado, até o dia de minha morte – o que é provavelmente o desejo secreto de todo pai em relação a suas queridas filhas, embora sintam menos o desejo de que permaneçam com eles seus filhos.
A diferença é que a minha filha tem todas as chances de ficar comigo, e então, para justificar-lhe porque não foi capaz de trabalhar e ter sua vida independente quando ela me perguntar, penso ter argumentos de sobra a lhe dizer que, quando estiver mais velha, entre o muito do que já apreendeu, ela apreenderá que foi melhor assim, pois não precisou disputar com colegas de escola participações em grupos ou as atenções dos rapazes pretendentes namorados – embora tenha sido inevitável que, mesmo que eles não a percebam, ela já mendigue a atenção de seus ídolos. Além disso, ela também não terá que enfrentar as dores do parto e da partida de um marido insatisfeito.
Entre muito do que não viverá, ela também não terá que sofrer mais que o inevitável as decepções que outras pessoas amadas lhe causarão, nem vai causar alguma a alguém (já que, para ela, a maioria pensa "tudo já lhe estar perdoado"), entre muitas coisas que será bom que ela nunca sofra, também, para mim. Porque, para mim, o mundo vira um inferno quando vejo Sophia chorar.
Ainda bem que, em sua companhia, raramente passo perto dele.