A TOLERÂNCIA E O INTOLERÁVEL
Para prestigiar o 3o.Centenário do nasccimento de Voltaire (1994), em 1995 a UNESCO promoveu um debate internacional sobre a tolerância. Nas conferências, nos debates e dossiês produzidos recordam-se as tolerâncias e intolerâncias na história da humanidade. Concluiu-se que ainda em nossos tempos é necessária uma vigilância constante para que os indivíduos, as etnias, as "raças", as religiões e os povos se tolerem mutuamente. E para que houvesse um clima de tolerância seria preciso superar superstições, preconceitos e ideologias excludentes. Isto não é fácil. Pois, em muitas partes do mundo, ainda neste início do século XXI, perduram preconceitos étnicos e raciais, reliigiosos e ideológicos que motivam conflitos e provocam intolerâncias criminosas.
Na história da humanidade encontramos povos tolerantes e povos intolerantes. No ano 313 d.C. o Imperador Romano Constantino promulgou o célebre Edito da Tolerância, oficializando a liberdade religiosa no Império Romano. Nos séculos XVII e XVIII Locke, Voltaire e outros pensadores batalharam pela tolerância. E assim, através da história, muitos humanistas já se empenharam para levar os homens à práticca da tolerância. Mas, muitas vezes, esta prática da tolerância fundamentou-se em acusações intolerantes. Voltaire, por exemplo, que queria ser o homem mais tolerante do mundo, foi terrivelmente intolerante para com os judeus e a Igreja Católica, universalizando preconceituosamente situações particulares, e interpretando equivocamente fatos do passado. Mesmo que não nos consideremos donos da verdade, contudo existem ações e situações que a sã razão qualifica como universalmente intoleráveis. Para exemplificar, tomemos apenas algumas intolerâncias em relação ao nosso corpo. É intolerável impedir a alguém de se alimentar, de dormir, de descansar, de falar. Igualmente é intolerável torturar, mutilar, não cuidar da saúde, da habitação, da educação do ser humano; é intolerável ser racista... Para que alguém possa considerar-se tolerante é preciso que lute contra o intolerável. Por isto, convém perguntar: e os nossos governantes, tão ilustrados e engravatados, são eles tolerantes? O que nos dirá a história sobre eles? Quantos dos nossos políticos, uma vez no poder, se mostram simplesmente indiferentes em relação ao intolerável na vida de miséria em que vivem tantos cidadãos brasileiros: sem educação, sem saúde, sem comida, sem habitação digna. Tais políticos de hoje manifestam a mesma falsa consciência de tolerância que encontramos nos antigos donos de escravos. Estes escravocratas se diziam tolerantes para com os escravos que lhes eram submissos, mas nada faziam para acabar com a vergonha da escravidão. Pelo contrário, recorriam à chibata e ao tronco para perpetuar o que humanitariamente sempre foi intolerável em qualquer época e em qualquer lugar. Assim , há ainda políticos que conduzem seus eleitores como que por "cabresto". Tudo fazem para que continuem seus dependentes por causa de sua ignorância e miséria. Isto, com certeza, é intolerável.
Perguntemo-nos, por isto: o que significa ser tolerante? É afirmar que tudo é válido? É renunciar a quaisquer valores, ou considerar que todas as ideias têm o mesmo valor? É propor o agnosticismo e o relativismo absolutos? É tolerar tudo e não se escandalizar com nada? Não parece que assim se chegue a uma verdadeira tolerância. Para sermos tolerantes devemos, em primeiro lugar, fixar os limites do intolerável. Se criticamos determinadas leis e valores, isto não significa que não devam mais existir leis e valores.
Quem nos pode ensinar, portanto, a sermos verdadeiramente tolerantes? Sem dúvida, a consciência crítica. E uma consciência crítica somente é possível em uma sociedade de cidadãos livres. E liberdade somente existe onde há cidadãos ilustrados, com condições de vida digna, com educação, trabalho, saúde e moradia digna.
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Inácio Strieder é professor de filosofia - Reciffe/PE