Requiem em sol maior para o Campo Grande 3

REQUIEM EM SOL MAIOR PARA O CAMPO GRANDE 3

“A tonalidade de sol maior não se adapta a um Requiem”, dirão. Como assim? Pergunto. Uma vida bem vivida e nem todo adeus é lá menor.

Nessas horas bom é recuperar o que ficou esquecido fazendo vir à lembrança a vida e as casas daquele bairro de antanho ainda que isso seja impulsionado pelo próximo desaparecimento do sobrado de nº3 para o qual compus o Requiem.

Interessante como à sua volta o Campo Grande reunia tudo, resumia praticamente todos os assuntos da cidade. A política, a educação, a religião, a saúde, o clube, a arte, a família. Para constatá-lo damos uma volta pelo passeio ao redor enquanto voltamos um pouco na sua história. Vamos lá ver...

A Assembleia Legislativa do Estado, casa-mater dos políticos baianos, ficava lá bem defronte do nº 3. Discursos e debates os mais inflamados eram ouvidos do lado de fora e se expandiam até se recolherem nos ouvidos de ferro do Caboclo.

Próxima à Assembleia estava a Igreja Anglicana. Foi o seu primeiro Templo entre nós, construído por volta de 1853 em Salvador no Campo da Cidade - nome antigo daquela praça - em terreno comprado pelo capelão inglês, o mesmo que dois anos antes liderou o movimento para a urbanização do Campo Grande. O templo deveria ter um aspecto de residência, não sendo permitido o uso de sinos. Teve sempre a mesma aparência e por volta dos anos sessenta do século passado ele era todo branco (mármore talvez), de uma alvura que o distinguia das outras casas.

À direita da AL tinha-se o tradicional educandário Instituto 7 de Setembro. O Grêmio Cultural do Instituto, bem organizado pelos seus alunos, realizava ciclos de conferências convidando personalidades das ciências e das artes que atendiam aos convites com todo respeito.

Adiante o Clube Inglês, fundado em 1874. A casa recuada, plana, térrea, com gramado na frente e grande gramado atrás.

Surgida nos anos em torno de 1965 vinha a Nubar casa-de-chá, charmosa, atraente, sem concorrentes.

No final daquele trecho já fazendo esquina com a Vitória mas com a entrada de frente para o parque, a Escola de Puericultura Raimundo P. de Magalhães – construída no mesmo local onde tinha sido a casa de Raimundo Pereira de Magalhães, grande nome do comércio baiano – escola onde o maravilhoso pediatra Álvaro Bahia ensinava às jovens mães como cuidar de seus bebês.

Na outra parte perto da entrada do Canela sobressaía-se uma casa com larga fachada, de um tom cinza claro, propriedade de Valério, dono da loja de tecidos do mesmo nome.

Do lado seguinte surge o Arcebispado, um belo solar do séc.19, no início pertencente a um Barão, depois passado ao cidadão de nome Osório Brandão que morou com sua família. Entre 1940 e 1950 foi adquirido pela Arquidiocese. Tombado pelo Patrimônio Histórico, patrimônio também da Igreja como residência de tantos Primazes e tendo por duas vezes hospedado o Papa. Uma casa sossegada, cheia de silêncio, que assistiu com tranquilidade todas as festas, carnavais e passeatas que se desenrolavam à sua frente. Além de tudo é a única que trás o mar ao currículo do Campo Grande...

Chegamos ao Hotel da Bahia. Erguido em 1950, construção que os vizinhos do nº 3 acompanharam passo a passo. Penso que a sua história é mais própria para um filme que documente sua atmosfera, seus casos e hóspedes famosos; sua Galeria de Arte, point de artistas e celebridades como o costureiro Denner; o hóspede milionário Baby Pignatari e seu harém; o maior mural das Américas feito por um artista de 23 anos – Genaro; os bailes, o concurso Glamour Girl.

Muitas foram as famílias que moraram no Largo do Campo Grande em todas essas épocas e todas com suas histórias. Trazemos somente uma delas, a que conhecemos melhor, objeto de nossa comunicação.

A casa – ou “Campo Grande 3” como era chamada - foi adquirida por Carlos Alberto de Carvalho em 1941 e remodelada em 42 (sua construção é de 1860 segundo histórico escrito por ele próprio). Falecido oito anos depois sua família ainda morou lá por um bom tempo até que venderam-na à Clínica Checap em meados dos setenta.

Todos guardam lembranças do Campo Grande principalmente dois garotos mascotes da família pra lá de endiabrados que, inspirados pela liberdade corriam Campo Grande adentro maquinando suas emocionantes travessuras.

Na casa os familiares às vezes mudavam de andar. Já viúva, D. Celina mudou-se para o andar térreo passando o espaço maior do 1º andar a ser ocupado pelo filho artista. Ali ele instalou o 1º atelier de tapeçaria do Brasil e suas bordadeiras, ali morou com sua mulher, ali ele criou uma obra e ali também ele, Genaro de Carvalho, recebeu pessoas ilustres e de várias partes do mundo desejosas de ver a sua arte.

Umas duas casas adiante encontrava-se – sabe-se que nada é perfeito – a sede do PRP-Partido de Renovação Popular remanescente da Ação Integralista, fundado pelo antigo presidente.

Depois vinha a Escolinha de Arte da Bahia de 1951, dirigida pela quase lendária educadora Rosita, onde crianças viviam o teatro, a música, a dança, o ballet e as artes plásticas.

Completando esse lado, alto e majestoso, o Clube Carnavalesco Cruz Vermelha, presença obrigatória no desfile de carros alegóricos, anteriormente também uma residência. Em nossos dias como todos sabem, aquela edificação lindamente restaurada, sedia a Fundação Cultural JFC.

Em local bem destacado surgia a Pinacoteca do Estado, instalada no antigo Solar Pacífico Pereira na cabeceira do Campo Grande, ao qual esteve aberta ao público de 1931 a 1946. Em 1957 foi iniciada no mesmo local a construção do Teatro. Reconstrução, modificações e ampliações, lá está o Castro Alves firme e forte, a cavaleiro da Praça 2 de Julho, portal do Campo Grande.

Por fim, de menos seriedade mas não menos expressivo, trago ainda mais duas lembranças: o bar dos anos setenta famoso Taba dos Orixás, que ficava onde hoje é a descida do ônibus que vai para o vale. A outra, um encontro dentro do Campo Grande: Limongi, conhecido produtor musical de apelido Minihippie caminhava pelo Campo enquanto de lá vinha em sua direção Janis Joplin acompanhada de Veloso e – tudo conforme me disse – foi ali que ele foi apresentado àquele ícone feminino da música rock.

Agora o Campo Grande 3 está vivendo seus dias de adeus. Na nossa cidade, e em todo o mundo, já estamos familiarizados com as demolições. A energia boa (ou as impressões) da casa de meus avós onde eu nasci, depois transformada na da Clínica médica que acolheu enfermos e deles cuidou, em breve estará por terra mas como já disse, isso é normal. É o processo.

Será empresarial? Residencial? De um forma ou de outra provavelmente receberá um nome e aí chego eu para dar minha sugestão:

Edf. Parque da Paineira – homenagem à imensa e tricentenária árvore ali na borda do Campo, com quem não temos sido bastante generosos ou agradecidos.

Edf. Genaro de Carvalho – homenagem ao digno morador do Campo Grande 3, artista nacional que pintou as árvores, as plantas, as flores, os pássaros e o Sol (maior) da Bahia.

Consuelo de Carvalho Mascarenhas

Concessa Marin
Enviado por Concessa Marin em 26/07/2012
Código do texto: T3798352
Classificação de conteúdo: seguro