Do Homem Sem Medo
Ele não está entre os mais badalados. Ele não estampa outdoors, não é popular entre os bonecos de super-heróis, não pode voar, não possui visão de raio-X. Ele sequer pode enxergar. E ainda assim tem algo que chama a atenção. Algo que um homem misterioso, sempre visto de chapéu e roupas pretas, soprou nele e explorou ao máximo que poderia. Aos desavisados, o aviso: o supra-citado aqui é o advogado Matt Murdock, conhecido nos subúrbios de Manhattan como o Demolidor, o homem sem medo.
Suas primeiras aparições nos quadrinhos não foram das mais interessantes, não fugiam do lugar-comum de super-herói da época. Tanto que a princípio ele não vingou. Quem lapidou o diamante bruto foi Frank Miller, o tal homem misterioso de chapéu, à época somente um jovem sonhador e talentoso. Miller deu ao herói uma identidade que marcou sua carreira: transformou-o em um justiceiro cheio de fraquezas humanas que tenta diminuir o máximo possível as mazelas de um lugar sem lei, onde as ruas cheiram a prostituição, drogas e toda sorte de crimes. De quebra, deu a ele um arqui-inimigo: Wilson Fisk, vulgo Rei do Crime. Murdock é advogado, ou seja, trabalha com a justiça. É cego como a própria justiça, mas possui os outros sentidos muito mais apurados do que qualquer ser humano, o que lhe dá poder para saber se alguém mente ouvindo a pulsação do coração, por exemplo.
A história de Murdock é do tipo que nem o fã mais exaltado gostaria de viver na pele. Aliás, principalmente o fã mais exaltado, por conhecer ainda mais a triste biografia do Homem Sem Medo. Sua mãe? Cresceu sem conhecer. Seu pai? Um lutador fracassado que se envolvera com o submundo do crime e acabou morto por não entregar uma luta. Seu desejo? Vingança. Murdock inicialmente é o herói que não é herói, aquele que se motivou por uma causa não tão nobre a se tornar um vigilante. Fora treinado por um velho lutador para tornar-se parte de uma ordem de homens que seguem princípios austeros, mas foi rejeitado por seu coração cheio de rancor. Com um tormento profundo em sua mente, jurou vingar a morte de seu pai. E cumpriu. Mas descobriu que tudo fazia parte de algo maior. Além disso, seu envolvimento em outros casos fez com que mergulhasse de cabeça na vida perigosa de justiceiro mascarado, sob o nome pelo qual os colegas de escola o chamavam para humilhá-lo. E a cada rua do bairro conhecido como Cozinha do Inferno, ele pode quase ouvir as vozes infantis gritando "Demolidor, demolidor!". Sua mente nunca conseguiu exorcizar os demônios do passado.
Como o próprio Frank Miller diz em sua obra "Homem Sem Medo", ele tem todos os ingredientes para ser um criminoso, todas as desculpas. "Um moleque levado, brigão, um mentiroso que usa máscara para trair o juramento solene que fez a seu pai milhares de vezes. Um ser perigoso, com talento quase sobre-humano para a violência. Um pecador, um advogado que desobedece a lei", nas palavras do gênio. Murdock não é só atormentado pela perda da família, pelas lembranças de humilhação na escola ou pelo acidente que tirou sua visão. Ele também leva na alma os castigos e as dores de amores que o machucaram severamente. Elektra Natchios, Karen Page... suas maiores paixões tornaram-se também seus piores pesadelos, encarnadas em uma inimiga mortal e uma viciada que arruinou a vida do herói em troca de drogas.
Vida arruinada pelas drogas. Sim. Miller mostrou toda sua genialidade no clássico "A Queda de Murdock". O Rei do Crime faz Murdock passar por apuros que vilão algum havia feito com um herói. Sua casa, seu trabalho, seus amigos. Tudo perdido. O advogado cego torna-se nada mais que um homem sem esperança. A forma como Miller leva ao desfecho é digna apenas dos gênios. E sua marca continuou após outros assumirem as histórias do diabo vermelho. A identidade de Miller continua lá. E continuará, pois já está fixada como a identidade do próprio Demolidor. Murdock ainda tem muito tempo para mostrar que um homem sem esperança é um homem sem medo.