A outra face da comunicação
A OUTRA FACE DA COMUNICAÇÃO
Antônio Mesquita Galvão
Nos dias de hoje, os métodos de espionagem são tão sofisticados, que permi-tem a leitura, desde um satélite, que passa a milhares de quilômetros acima de nós, a leitura do número do chassi gravado no pára-brisas de um carro, ou o valor de um cheque na mão de uma pessoa. Ligado à comunicação, não tenho dúvidas em afirmar que somos constantemente filmados, gravados, analisados, pelos tan-tos mecanismos cibernéticos que voam por cima de nossas cabeças. E não é só isso.
Os tantos “cadastros”, as inúmeras “informações confidenciais” que somos obrigados a prestar, desde o número da carteira de identidade ou do telefone que nos obrigam a apor no verso do cheque com que compramos combustível, vão aos poucos tornando públicos os dados das pessoas, das empresas e dos grupos sociais. Por conta disto, é fácil depreender que, aos mecanismos internacionais, gran-des grupos financeiros e empresariais, a espionagem, a quebra de sigilo pessoal é fundamental, uma vez que – como dizem os midiólogos – o poder começa pelo do-mínio da informação. A mídia tem duas faces: uma útil e outra perversa.
A gente vai ao supermercado, ao shopping, ao posto de gasolina ou a uma bodega qualquer, e está sendo filmado (e gravado), se pagar com cheque ou cartão terá de informar telefone, número da identidade, endereço, placa do carro, etc. Di-zem que há motéis, nas grandes cidades, que filmam os casais, sem que eles se dêem pela conta. Na ficção, de George Orwel († 1950), o “Grande Irmão” (The Big Brother) seria uma inteligência cibernética que, conhecendo todos os dados das pessoas, dominaria o mundo. O fim último é estabelecer domínios. Volta-e-meia se recebe uma “mala-direta” desse ou daquele, sem saber como obtiveram tantas in-formações ao nosso respeito. Quem nos garante que na transmissão de dados, desse para aquele equipamento, nossa privacidade não seja devassada por qual-quer racker, privado ou oficial, nacional ou internacional?
Ora, com a sociedade controlada desta forma, basta apenas chamar um programa de computador para fazer uma pesquisa de opinião, de comportamento, de tendências, etc. De posse desses dados, os sistemas de poder, acionando a mídia (que trabalha a seu favor) podem “formar a opinião” da população, de uma forma subjacente e imperceptível, mas profunda e pertinaz.
As técnicas da mídia a servi-ço do neoliberalismo globalizado venceram o direito de decidir de muitos povos (inclusive dos brasileiros). Como é possível, pergunta I. Lesbaupin, enganar tão bem, se os meios de comunicação são livres? Poucas vezes se viu, neste país, uma una-nimidade tão grande da mídia, fazendo quase em uníssono o discurso governista. Aparece o que interessa ao jogo do poder, e o que não interessa é ignorado ou omi-tido, como uma verdadeira cortina de fumaça.
Como resultante desse processo de formar uma opinião popular totalmente “domesticada”, a estilo das ditaduras culturais de Mao Tsé Tung († 1976) ou J. Stalin († 1953), a democracia tornou-se apenas uma fachada, como que um rótulo, um meio, e não um fim. E a grande questão que surge a partir daí, quando se fala em mídia, é saber se a informação é direito do cidadão ou um mero negócio, produto de consumo da ideologia que rege o segmento de comunicação ou tão-somente o desejo de veicular a notícia tal qual ela ocorreu.
Há uma questão que percorre nossas mentes, cuja resposta nem sempre é convenientemente satisfatória: A mídia trabalha para informar e divertir o público? Ou para faturar? Para formar opinião e vender a ideologia vigente? Todas as afir-mativas estão corretas? Em alguns livros que escrevi anteriormente, bem como em um grande número de artigos, em jornais e revistas, tenho me referido à mídia como um “quarto poder”, com força igual (e às vezes superior) ao Executivo, Legis-lativo e Judiciário.
A mídia é composta, entre outros, do rádio, dos jornais, das revistas, da te-levisão (convencional, a cabo e em circuito fechado), cinema e mais alguns boletins e encartes (propaganda especial) associados a um veículo escrito. Situam-se nesse tópico também o “porta-voz” e o “relações públicas” desse ou daquele órgão, que veiculam comunicações oficiais e regulares. A mídia também engloba a “comuni-cação acessória”, como, panfletos, folders, malas-diretas, a “voz do poste”, carros de som, faixas, cartazes, painéis, etc.
Há ainda um outro elemento que também integra a mídia, que é a “opinião pública reciclada”, onde pessoas, de forma cons-ciente, induzida ou subliminar, tornam-se multiplicadoras de ideologias ou pro-cessos de marketing. Por exemplo: “Todo o sem-terra é vagabundo!”, porque a grande mídia assim o diz. “A Kaiser é uma graaande cerveja!”, por causa do co-mercial do baixinho. “A Coca-Cola Light é o resgate de um antigo sabor!”, a propaganda e a degustação buscam confirmar tal assertiva. “O candidato fulano de tal vai vencer a eleição”, porque este é o resultado da pesquisa do Datafolha. “Os ho-mens fumam Arizona”, buscando um nicho de mercado naqueles que não têm a masculinidade totalmente identificada.
A mídia moderna é eminentemente empresarial e mercantilista. Seu objetivo mais próximo é o lucro, e esse se obtém com venda de exemplares ou aumento de pontos de audiência. Essa busca tem gerado, em muitos países, corrupção, de-núncias infundadas, distorções éticas e – não-raro – atropelos à moral. Com isto, constata-se que a mídia hoje está diretamente ligada ao marketing, seja ele mercantil ou político. Por marketing, compreende-se a ciência de oferta da satisfação e do benefício (sejam estes verdadeiros ou não).
No terreno político, por exemplo, quando há um episódio negativo, é preciso criar um fato novo para neutralizar o impacto do escândalo anterior sobre a opini-ão pública. Às vezes cria-se um fato novo para desviar a atenção de outro, em ge-ral mais grave. É a velha tática neoliberal de varrer a sujeira para debaixo do tape-te, e assim formar opinião deturpada ou impedir a formação de um juízo contrário. E opinião pública, todos sabem, é o julgamento que a população, ou uma parte socialmente ativa dela, faz do governo, de um fato social ou de qualquer circuns-tância.
A opinião pública no Brasil é manipulada pela mídia, em geral a soldo do poder (econômico e político) neoliberal. Inseridos em uma realidade econômica nitidamente neoliberal, a maioria dos mass media do Brasil trabalha em favor da elite, de onde lhes vêm os patrocínios, o prestígio e também o consumo.
Nada mais provoca mais medo no Brasil, além da polícia, do que a mídia, ao menos entre os que podem ser atingidos por ela: políticos, intelectuais, escritores. Difícilmente a imprensa toma para si o mesmo parâmetro. Criticado, um veículo joga no ostracismo o desvairado que se atreveu a romper o silêncio. Com isso, im-pera o sistema de servidão voluntária. (J. M. da Silva: A miséria no jornalismo brasileiro. Ed. Vozes, 2000).
A mídia moderna – é bom que se diga – está em transformação. Os jornais estão perdendo lugar para as revistas semanais, por causa da qualidade visual, possibilidade de releitura e melhor elaboração jornalística dessas. No terreno da multimídia, já tomam corpo as notícias eletrônicas, o “jornal sem papel”. Em paralelo com tamanha evolução, é imperioso que o leitor se muna de um razoável sen-so crítico a fim de filtrar as mensagens que a mídia tenta colocar, no sentido de “fazer a cabeça”, ao sabor de suas ideologias.
A opinião pública nacional não está imune à “formação de opinião” que emana dos tantos órgãos de comunicação. Em toda a América Latina, é prudente salientar, o governo faz concessões de canais de tevê, rádio convencional e FM, a políticos e empresários, em troca de apoio políti-co, financeiro e midiático.
No Brasil a Rede Globo tenta formar, à sua maneira, eminentemente neoli-beral, a opinião, a cultura e a moral do país. Nela, os locutores se limitam a dar aquelas notícias que estão em sintonia com a ideologia do órgão, sem maiores considerações. Os raros editoriais ocorrem como comentários de fatos óbvios, ou em defesa da corporação, ou para enaltecer conquistas do Diretor Presidente da corporação.
Nos outros canais, alguns, pelo menos, há a notícia e o comentário pessoal do jornalista, sobre o fato. Como um exemplo disto, observa-se que a “rede oficial” não noticiou praticamente nada dos protestos, da pancadaria e das agres-sões da PM da Bahia contra índios, jornalistas, estudantes, sindicalistas e sem-terra no episódio dos “500 anos”. Limitou-se a transcrever discursos “oficiais” e a vinhetas que realçavam o lado “histórico” do fato.
Como no tempo das ditaduras, observa-se como que um reavivamento da censura. Só saem as notícias que o fil-tro ideológico permite. Só publicam o que “eles” querem que a massa digira como “real”. Sobre esse cerceamento ideológico de liberdade, há um interessante pro-nunciamento feito por Herbert de Souza, Betinho († 1997), a um jornal, em abril de 1997: “Não vivemos em uma sociedade democrática, mas autoritária. Os nossos representantes votam contra o eleitorado, enquanto a mídia encobre a realidade, com pesquisas e censura”.
A televisão brasileira, em muitos casos, pode ser vista como a síntese da hipocrisia nacional. Ela combate o chamado “turismo sexual” e a exploração sexual de crianças, mas libera suas programações (novelas, comerciais, documentários, programas de variedades) ao erotismo e à pornografia. É liberal na moral para fa-turar no econômico. Defendem o erotismo e a pornografia como liberdade de expressão, mas as críticas a essa liberalidade são censuradas. Diz que condena o tráfico de drogas, mas faz programas mostrando as rotas de entrada e distribuição no país. Esta é a práxis da mídia no Brasil neoliberal. É preciso um grande senso crítico para evitar a manipulação.
Há um engano quando se fala em imprensa livre no Brasil. Na verdade, esse “quarto poder da República” (e às vezes primeiro), é mais forte do que se pensa. As “pesquisas de opinião” elegem presidentes. Dizem que a mídia no Brasil já derru-bou um presidente (F. Collor) e manteve outro no poder (Fernando Henrique Cardoso), ao silenciar sobre a omissão do Congresso em não criar as CPIs dos bancos e da compra de votos.
A mídia brasileira está sempre em busca do escândalo mais recente. A ela não interessa o desfecho ou a solução do caso anterior. O que vale é o atual e o que ele representa em termos de faturamento. Para a mídia não existem valores éticos, o que conta é a possibilidade de vender mais, de faturar, mesmo que para isso tenha que promover, tanto Leonardo Pareja como frei Damião. De nada resol-ve os jornalistas independentes tentarem lutar pelo que chamam de “imprensa livre”, se o patrão restringe sua ação à ideologia dominante. É lamentável se ver a domesticação que o poder exerce sobre alguns jornalistas dos grandes veículos.
Como “quarto poder”, a mídia já não atua mais nas sombras, mas encara frontalmente os que não se perfilam a seu ideário. Hoje, se pode afirmar, sem me-do de injustiça, que a mídia, no Brasil, é um bem e um mal. Presta um serviço, sim, mas, em paralelo, quantos desserviços! É assim que ela precisa ser vista e julgada. Nossa mídia – e em especial jornais, tevês e revistas – gosta muito do “prato feito”, isto é, a opinião formada pela ideologia do veículo É preciso questio-nar, fazer pensar, estabelecer a polêmica.
É indispensável, mais do que nunca, muito senso crítico. E isso nossos meios de comunicação não querem. Nem deixam fazer. O que fazem é estabelecer programas de entrevistas ou debates, tipo “conversas cruzadas” ou “pinga fogo” onde, geralmente as cartas vêm marcadas, e a “conclusão interativa” já se sabe antes de terminar o programa, basta ver a no-minata dos debatedores.
Na velocidade do mundo globalizado, é preciso correr para dar a informação, julgar o fato e colocá-lo apto a ser digerido pelo consumidor. Nesse processo, o no-vo papel da mídia é criar verdades, novas, meias, adequadas. Esse novo papel é nefasto e deletério, visto subserviente às elites e excludente da maioria das pesso-as da sociedade. Em nome da generosa entrada de dinheiro dos patrocinadores (nacionais e internacionais), os grupos de comunicação fazem o jogo das elites, manipula notícias, denigrem uns exaltam outros, censurando, boicotando, fazendo oposição ou proselitismo sistemático, naquela velha tática: “Se o inimigo tiver vir-tudes, a gente esconde: se não tiver defeitos, a gente inventa”.
No Brasil, governantes, congressistas, magistrados e políticos – como afirma Nietzsche – dizem estar a serviço do povo e de suas superstições, mas não se colo-cam a serviço da verdade... As verdades caladas se convertem em veneno. Nossa mídia ajuda a calar muitas verdades e a publicizar muitas mentiras. A grande mí-dia nacional há muito deixou de cumprir seu tríplice papel de educar, informar e servir.
Hoje, sua função primordial, além das mercantis, é anestesiar a opinião pú-blica. No passado se engambelava as massas com “pão e circo”. Hoje, como o pão diminuiu, dão mais circo. E como dão! Por todas essas razões, tenho dito, há al-guns anos, em meus escritos, que a mídia brasileira, do jeito que é conduzida, é um dos tentáculos do polvo, talvez o braço mais letal e ameaçador do Leviatã chamado globalização neoliberal. Essa tendência triunfalista e acobertadora da mídia nacional foi denunciada no Fórum Social. Talvez por isso, havia mais correspondentes internacionais, no campus da PUCRS que jornalistas brasi-leiros. É um ponderável sintoma!
Filósofo, Escritor, Comunicador. Autor de 109 livros no Brasil e Exterior, entre eles “Curso Básico de Comunicação”, Ed. O Recado, 2010.