FADO. CANTO PORTUGUÊS COM ALMA BRASILEIRA
Sérgio Martins Pandolfo*A 10 de junho estará sendo comemorado mais um Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Já como parte dessas festividades tivemos, no dia 2 p.p., um soberbo espetáculo no Theatro da Paz com a fadista Ana Moura, intitulado “Leva-me aos Fados”. O fado, a mais nacional das canções lusitanas, é Patrimônio Imaterial da Humanidade desde 27 de Novembro de 2011 por resolução da UNESCO. Isso nos motivou a escrever este artigo, em que tentaremos mostrar que o Brasil jogou papel relevante para o nascimento desse gênero musical.
O fado é sim um canto português nascido no Brasil, coisa, aliás, que em nada desmerece aos portugueses nem privilegia os brasileiros. Fácil é compreender, ou entender, essa dual paternidade: em 1808 a Família Real e a Corte portuguesa transladaram-se para o Brasil, mais precisamente para o Rio de Janeiro, sede do Vice-Reinado, fugindo às ameaças da invasão napoleônica. Foram mais de 15 mil transferidos, de todos os níveis culturais e políticos, o que reunia, além da rainha D. Maria I, seu filho e regente D. João (depois rei D. João VI) e demais membros da Família Real, toda a corte lusa com seus agregados, membros do poder judiciário, legislativo, clero, advogados, médicos, serventuários de todos os ramos de atividade, operários, etc. Vieram também, claro está, músicos e seus instrumentos de trabalho. Passara o Rio à condição de sede do Império Português, situação em que permaneceu durante treze anos.
Aqui, misturados aos locais, eruditos e/ou populares, reuniam-se para festejar, comemorar, divertir-se, dançar, confraternizar, namorar e... miscigenar, coisa que se fez infrene e consentida. A mistura das gentes e dos ritmos fez nascer sim essa música fantasticamente bela e evocativa, fruto da saudade da terra distante (Portugal), do banzo dos africanos e do convívio com os naturais, muitos deles luso-brasileiros aqui radicados havia muito. São conhecidas, comentadas e controversas as saídas do príncipe Pedro com seu amigo e comparsa de pândegas, o Chalaça, incógnitos, para se misturarem à plebe rude nas noitadas festeiras e boêmias.
Ao retornarem a Portugal D. João VI e a Corte, em 1821, levaram para lá o embrião que, por desconhecimento e até certa resistência dos lisboetas ficou restrito, inicialmente, às camadas mais baixas da população, áreas portuárias, zonas boêmias mal afamadas, nos "quarteirões do pecado" a e que tais. Com o rodar dos tempos a música se foi refinando, o instrumental se aprimorando, o fado passando a ser, para gáudio de portugueses, e agora também da humanidade, um gênero musical, um ritmo de escol, interpretado por músicos da melhor qualidade, assim instrumental como vocal.
Além das já insustentáveis teorias da origem árabe e provençal, as raízes brasileiras afrolusíndias do fado têm cada vez mais defensores entre os estudiosos sem pruridos, que afirmam ser o fado um estilo musical que evoluiu do lundum, dança tradicional africana trazida por escravos negros para Brasil. Manuel Antônio de Almeida em “Memórias de um sargento de milícias”, foi o primeiro a referir a origem brasileira do fado, em 1854. Mário de Andrade reafirma-a no artigo, “As Origens do Fado”, em 1930. Porém, o deslindador e validador definitivo da asserção foi o crítico musical brasileiro J. Ramos Tinhorão com a publicação (anos 80) da obra "História Social da Música Popular Brasileira", reforçada em “Fado: Dança do Brasil, Cantar de Lisboa. O Fim de um Mito”, editada em Lisboa. A redizê-lo: “Desde a estruturação do género popular como canção solo, com acompanhamento de guitarra em menor, já desvinculada da dança – o que permitia ao cantador variar as inflexões da voz, esquecendo as nuances psicológicas do canto -, o fado começara a ultrapassar a sua fronteira original circunscrita aos redutos proletários de Lisboa”
Lá, já em 1934, o historiador Alberto Lamego as defendia, perfilhadas hoje pelo sociólogo José Machado Pais e pelo musicólogo Rui Vieira Nery. O berço brasileiro, é claro, é de pronto refutado pelos paladinos da fonte lisboeta, mas, é fato, não há um só registro de fado em Portugal anterior ao ano de 1820.
Fado, do latim fatum, significa destino. Foi a música nacional de Portugal na época do ditador Salazar. A primeira fadista de que se tem notícia foi Maria Severa (1820-46), a protofadista, prostituta e cigana que faleceu tuberculosa precocemente e teve entre seus amantes o conde de Vimioso. Alfredo Marceneiro (1890-982), de ar senhoreal e distinto, foi outro dos mais venerados. E, claro, Amália Rodrigues (1920-99), maior figura de sempre, a diva do fado mais recente. Na atualidade vários fadistas brilham nas ribaltas em que se exibem, tais: os veteranos Carlos do Carmo e Argentina Santos, Camané, a moçambicana Mariza, Dulce Pontes e a supracitada Ana Moura.
Nota: acima, O Fado, quadro de José Malhoa, 1910, Museu do Fado, Lisboa
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*Médico e escritor. SOBRAMES/ABRAMES
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