Dança, arte inquietante!

A dança é uma expressão de cunho cultural, social e artístico, fundamentada na vida e no histórico das diversas sociedades contemporâneas ou arcaicas, pois como prática resultante dos traços sociais, utiliza a linguagem discursiva nas variadas apresentações.

Emitir mensagens pelo corpo é algo elementar, afinal, o ser humano faz uso das práticas gestuais e de expressões para se manifestar; todavia, transmitir qualquer informação por meio da dança não é tão simples como se imagina, pelo fato de que o corpo deve compreender cada um dos movimentos para, por meio dos mesmos, codificar e decodificar as inúmeras mensagens que são e/ ou serão veiculadas durante alguns minutos de apresentação. Além do mais, essa forma de aprendizagem associada à prática da transmissão de uma informação exige tempo, coragem por parte daquele que se subordina à realeza dessa arte, além de infinda força de vontade.

Tudo o que foi exposto acima é perceptível no projeto Dança comunidade, em que os dançarinos aprendem as práticas coreográficas e, por meio delas, dialogam socialmente, aprendendo assim a conhecer o próprio corpo e a ter com ele cuidados essenciais. Não bastasse, essa trupe recebe aulas em língua materna e estrangeira, além da história da dança em vários estágios culturais ao longo dos séculos, o que possibilita compreender a dança como algo tão expressivo quanto os códigos que veiculam as informações que permeiam os variados gêneros estudados. Tal embasamento encontra lastro nas palavras de Marcuschi (2002), que afirma que “os gêneros textuais são fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social. Fruto de trabalho coletivo”.

A dança é uma espécie de discurso híbrido, formado por um emaranhado de conhecimentos que se fundem por meio de variados gêneros, que encontram na música e no teatro os pilares de sua própria “sintaxe”. Afinal, para se transmitir uma mensagem, a dança tem de ser representada (teatro) conforme a música e a cultura privilegiadas.

Como qualquer outra composição, a dança passa por um profundo processo de produção, iniciado com a definição do tema. A partir desse momento, o produtor deverá escolher como a obra será exposta, a música a ser utilizada, os figurinos e as respectivas coreografias, que ensaiadas à exaustão, ganharão corpo no palco e servirão de chamariz àqueles que estiverem na plateia, prontos para se deleitarem com o show de movimentos.

No palco, a obra, já incorporada por todos os viés do gênero, é apresentada à plateia, quando os dançarinos, caracterizados e sob o rigor da estética e da sincronia que beira à surrealidade, transmitem (como autor) a mensagem com o corpo a uma plateia (leitor) embevecida pelas explosões sinestésicas que lhe explodem no âmago a partir dos primeiros contatos visuais com a apresentação. Nesse jogo íntimo de sentidos, o espectador procura um sentido contextual para tudo que lhe está diante dos olhos.

É o que se vê no espetáculo “Samwaad”. Com discurso completamente híbrido, intertextualizado por gêneros de dança e culturas distintas, a plateia não se contém e vai ao êxtase. Durante a apresentação, a dançarina indiana com o bailarino brasileiro parecem duelar no palco para ver quem tem a melhor cultura (que loucura!). Ela se remexe, ele faz o mesmo. A “disputa” acirra-se quando ele encena os gestos de um mestre sala e ela a de uma porta bandeiras. A missivista até tenta experimentar o ritmo, mas percebe que não irá longe em sua empreitada, afinal, aquele ritmo, mesmo para ela, acostumada a ensaios duros, apresenta-se complexo demais. E ela desiste? Não, insiste! Desistir seria a morte, a vitória do fracasso sobre o esforço pessoal. Mas a suposta disputa não termina aí, avança para outros ritmos; é nesse momento que se verifica a intertextualização das práticas.

Na segunda cena, a jovem indiana inicia a dança e convida os brasileiros a interagirem com ela; nesse momento percebe-se, pelo menos pelo visual, que a dança hindu é mais atraente, uma vez que a dança em si é toda revestida por figurinos representativos da cultura daquele país. O visual e o sincrônico se encontram quando, na última cena, o batuque do samba brasileiro margeia os passos da dançarina indiana, que permanece os passos de sua dança de origem. Há aí um suposto desequilíbrio artístico a favor da cultura hindu.

No espetáculo, em uma interpretação possível, a cultura hindu é mostrada de forma sutil, a mensagem que o discurso emite é a da junção harmoniosa das culturas, que mesmo sendo diferentes, possuem valores distintos, por vezes, incomensuráveis. Essa singela interpretação norteia o título “Samwaad”, que significa, de acordo com o vernáculo de origem, “harmonia”.

O público interage com o discurso em cena, conforme os conhecimentos internos de cada um são ativados. E essa interação se dá por meio das tempestades de sensações que se avistam a cada novo movimento, a cada nova nota extraída dos variados instrumentos musicais. Como afirma Marcela Benvegnu “Samwaad me provoca sensações” e “A compreensão que se tem do espetáculo é diretamente provocada pela atual situação da identidade do ‘eu’ plateia e da sintonia provocada no ato da execução da obra de Bertazzo”. Todavia, Marcela tem amplo conhecimento sobre esse tipo de obra, tornando sua crítica mordaz se comparada a de um leigo.

Espetáculos como os de dança, apesar de um show sinestésico, permanecem restritos à ala mais rica da sociedade (leitor ideal). Para que o público mais humilde tivesse acesso a esse tipo de composição - a intenção do autor (Bertazzo), seria necessário a mudança de contexto de produção, passando do Teatro Municipal para um local menos formal, afinal, qualquer formalidade, por mais simples que seja, assusta e espanta aos menos abastados. Ainda, não bastam apenas mudar o processo de produção e o local de apresentação, porque para compreender a dança, é necessário possuir o mínimo de conhecimento sobre essa arte, caso contrário, o ritmo, a coreografia, assim como os demais acessórios, perderiam sentido no imaginário coletivo. Como cita Orlandi (1994 em “Discurso, Imaginário Social e conhecimento”), “... o discurso é o efeito de sentido entre locutores, mas para haver um discurso há que ter os sujeitos com ideologias. Pois não há discurso sem sujeito nem sujeito sem ideologia...”