O HOMEM: SITUADO E INCULTURADO:A propósito do Manifesto Regionalista de Gilberto Freyre
Introdução
A pergunta fundamental que Kant faz no início do seu filosofar é: “quem é o homem?”. Nenhuma das ciências humanas pode eximir-se de dar uma resposta a esta questão fundamental, antes de entrar em suas considerações específicas. Claro, é difícil uma resposta conceitual sintética. Por isto, muitas vezes, apenas conseguimos identificar a compreensão do homem em algum filósofo, sociólogo, antropólogo, psicólogo ou geógrafo após analisarmos o sistema de seu pensamento e os objetivos que atribui ao seu fazer científico. Isto também acontece em Gilberto Freyre. Por isto, neste trabalho, tomo como ponto de partida, para minhas considerações sobre o homem, alguns escritos deste escritor, antropólogo e sociólogo nordestino, recifense. Mas não pretendo deter-me em todos os aspectos antropológicos de sua obra, e sim privilegiar suas considerações sobre o “homem situado” regional e culturalmente. Por que voltar à questão do regionalismo e ao homem situado, numa época em que os termos “globalização” e “universalismo” adquiriram conotações ideológicas de sacralidade dogmática? Diante desta proposta do homem genérico, universal e global é necessária uma atitude crítica e cética. Este homem genérico, universal e global não existe. O que existe é o homem concreto, com um rosto individualizado. Este é o homem que vive, que se alegra e que sofre. E, onde está este homem? Com certeza, não boiando solto, como teia de aranha, em espaços infinitos, sem limites e fronteiras; ou em épocas históricas, sem sinais específicos de uma época definida.
Quando Gilberto Freyre, em 1926, lê o seu manifesto regionalista ele está colocando uma questão fundamental do ser humano: o ser humano real, concreto, com o qual eu me confronto, sempre é um ser situado no tempo e no espaço. Mas este “estar situado” não significa apenas uma situação geográfica física, ou de tempo unilinear. O homem é um ser situado física e culturalmente, e o seu tempo é tríbuo: o passado, o presente e o futuro formam uma unidade. Esta concepção do homem é fundamental para entendermos as preocupações filosóficas, sociológicas e antropológicas de Gilberto Freyre, sem dúvida, hoje já é consenso que os escritos de Gilberto Freyre possuem uma importância fundamental para compreendermos o homem brasileiro. E sem entendermos a nossa realidade humana não seremos capazes de formular políticas para que a nossa sociedade supere suas dimensões desumanas, e dignifiquemos a vida do homem brasileiro. Diante da constatação de que todo homem real é um ser situado, com características culturais regionais, farei algumas considerações sobre o valor do regional e os equívocos de uma globalização universalística sem limites.
1. O Regionalismo
Conta-se que um dia questionaram o senador do Império Romano, Marco Túlio Cícero, por que ele continuava a morar em Tusculanum, numa cidadezinha secundária, em vez de se mudar para a capital Roma, ele teria respondido: “Prefiro ser o primeiro em Tusculanum, a ser o segundo em Roma”. Isto, sem dúvida, é uma declaração de amor ao seu torrão natal, mas, ao mesmo tempo, uma advertência de que a nossa maior autoestima e valoração existencial se consegue no ambiente cultural em que vivemos. Cícero tinha razão, ele era mais ser humano em sua aldeia do que na capital
do Império. Neste sentido, também é interessante que os primeiros filósofos, no período pré-socrático, surgiram em regiões periféricas e não em Atenas, considerada a capital política e cultural da Antiga Grécia. Os estoicos romanos declaravam que, como seres humanos (abstratos), eles se consideravam cidadãos do mundo, mas, como homens concretos, eram cidadãos submissos a Roma. Apontam, assim, para uma dialética entre o regional e o universal. O universal se situa no abstrato racional e lógico, mas no regional se objetiva a razão prática, juntamente com o sentimento, os tempos e os contratempos da vida. Um destes sentimentos, simbioticamente ligado ao regional é a saudade. Para exemplificar, o nosso poeta romântico Gonçalves Dias, expressou isto magnificamente, em 1843, em sua “Canção do Exílio”. E quem não conhece este texto?
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá;
As aves que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores..
Afetiva, psicológica e culturalmente estamos ligados, de certa forma, umbilicalmente à nossa região, ao nosso país, à nossa cidade, à nossa cultura, ao nosso momento histórico. Em trabalhadores portugueses na Europa Central pude verificar problemas de total desorientação existencial, porque estavam longe de suas famílias, de sua aldeia natal, de seu ambiente cultural. A sua situação era análoga a de uma árvore adulta desenraizada, e transplantada para uma terra estranha. Uma tal árvore, muitas vezes, morre, pois não consegue se enraizar de novo. E o único remédio eficaz, receitado pelos psiquiatras alemães, era a volta destes trabalhadores para o seu recanto em Portugal.
No Manifesto Regionalista, Gilberto Freyre mostra a necessidade de estudos regionais de Antropologia, História, Sociologia e Economia brasileiras. Mostra-se também desejoso para que pintores decorem os edifícios de nossas cidades e praças com figuras de negros e mestiços, trabalhando em engenhos. E que as nossas praças não estivessem apenas ornamentadas com estátuas de generais, bispos e doutores brancos; que as ruas e praças fossem arborizadas com árvores das matas brasileiras, e não exóticas; que os nossos escritores de romances, contos, ensaios, poesias e teatros não se envergonhassem de explorar temas regionais. Nesta perspectiva, com certeza, hoje, Gilberto Freyre faria uma dura crítica a determinadas mentalidades acadêmicas, que apenas permitem que os seus mestrandos e doutorandos analisem autores estrangeiros, e não permitem que investiguem o pensamento e a atuação de intelectuais autenticamente brasileiros. Este fenômeno encontramos fortemente presente em diversas ciências humanas. De modo especial gostaria de me referir ao campo da filosofia, como ela é praticada no mundo acadêmico brasileiro. As Comissões da CAPES e CNPq, responsáveis pela avaliação das produções e pesquisas filosóficas no Brasil, demonstram profunda aversão por projetos que se propõem a estudar o pensamento brasileiro. Mestrados e Doutorados em filosofia não se atrevem a incentivar seus mestrandos e doutorandos a produzirem dissertações e teses, a partir da análise do pensamento de autores brasileiros. Se assim se atrevessem, com certeza, seriam penalizados. Desta forma, os filósofos brasileiros, praticamente, se restringem a uma atividade de comentadores da filosofia estrangeira. Como se no Brasil não existissem, ou tivessem existido, pensadores dignos de serem estudados. Mas não, encontramos sociedades filosóficas as mais diversas: Sociedade Kant, Sociedade Hegel, Sociedade Wittgenstein, Sociedade de Filosofia Medieval, Sociedade Tomás de Aquino, Grupo de Estudos da Filosofia da Mente, Grupo de Estudos da Filosofia do Século XVIII, etc... Por aí temos especialistas em Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Tomás de Aquino, Maquiavel, Rousseau, Descartes, Spinoza, Marx, Nietzsche, Sartre, Heidegger, etc. etc. Somente alguns rebeldes estudam a filosofia brasileira e latino-americana. Mas estes se sentem discriminados, quando solicitam apoios para seus projetos aos órgãos fomentadores de pesquisas e estudos, como se no Brasil não houvesse quem produzisse ideias e criasse uma filosofia, fruto do nosso contexto existencial. A filosofia, hoje incentivada no Brasil, é uma filosofia acósmica, que não toma em consideração o homem situado. Apenas se valoriza o pensamento dos estrangeiros, que não conheceram, nem conhecem nossa realidade. Diante desta situação, no campo da filosofia em nosso país, seria muito bem vindo, hoje, um Manifesto filosófico regionalista, análogo ao Manifesto Regionalista de Gilberto Freyre, em 1926. Só desta forma a nossa filosofia começaria a se preocupar com os problemas concretos do Brasil, e se tornaria uma filosofia engajada, transformadora, libertadora com consequências. Ainda mais, isto é importante, neste momento, em que a filosofia se tornou matéria obrigatória no ensino médio brasileiro. Os professores de filosofia, falando apenas de pensadores estrangeiros em suas aulas, deixarão em seus alunos uma impressão de inferioridade, com consequente diminuição da autoestima nacional, como se nós brasileiros não tivéssemos capacidade de pensar. Como se a nossa capacidade apenas permitisse que comentássemos o pensamento de estrangeiros. Se assim se proceder, melhor seria que a filosofia não fosse disciplina obrigatória nas escolas.
Mas, nestas minhas considerações, a partir do Manifesto Regionalista, não pretendo apenas avaliar o que está ocorrendo com a filosofia no Brasil. Gilberto Freyre, quando analisa a importância do regionalismo, estende suas preocupações para todo o campo cultural que afeta o homem situado, e especialmente situado no Nordeste do Brasil.
Por que no Nordeste?
Para entender o Congresso Regionalista de Recife, em 1926, durante o qual foi lido o Manifesto Regionalista, escrito por Gilberto Freyre, na época um jovem de 26 anos, que recentemente havia retornado ao Recife, após estudos nos Estados Unidos, e viagens pela Europa, é preciso situá-lo em seu contexto histórico.
Na década dos anos 20 do século passado cresceram no Brasil as primeiras atitudes de rompimento com a aceitação acrítica de valores estrangeiros. Há, portanto, uma atmosfera generalizada de renovação. E esta vontade renovadora apareceu objetivamente na Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922. Esta Semana teve repercussões profundas sobre a filosofia, a literatura e as artes brasileiras. Mas na Semana Modernista predominou o espírito internacionalista. Os modernistas queriam adotar os métodos do mundo desenvolvido, para superar o atraso do Brasil em relação ao protótipo europeu. Diante da polaridade das elites brasileiras, pela qual, em algumas épocas, se considerava moderno apenas o que vinha do exterior, e em outras, se valorizava o que era autenticamente nacional, os modernistas favoreceram uma redescoberta do Brasil pelos brasileiros. Propuseram-se a brasileirar o Brasil, pois acreditavam que só poderíamos ser universais fortificando a consciência de nossa brasilidade. Somente com esta consciência os brasileiros deixariam de ser puros imitadores para se tornarem criadores. Assim os brasileiros seriam universais, porque nacionais. Estas ideias expressas pelos modernistas Mário de Andrade, que se qualificou como “turista aprendiz”, viajando pelo Brasil Carlos Drummond de Andrade, e outros, motivaram o lançamento do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade, em 1928. Neste Manifesto, Oswald de Andrade afirma que “só a antropofagia nos une socialmente, economicamente e filosoficamente”. Esta característica antropofágica dos brasileiros teria iniciado com a deglutição do primeiro bispo do Brasil pelos índios em 1554. Em analogia a esta antropofagia, a modernidade brasileira consistiria na capacidade de ingerirmos e digerirmos criativamente o que vem de fora. O que se pretendia dizer com isto? Que no Brasil nos apropriamos do que vem do exterior, mas o submetemos a um processo de transformação e absorção. Segundo o modernismo de Oswald de Andrade, no Brasil este tipo de antropofagia cultural deveria ser valorizado. Segundo a crítica, que acima formulamos, em relação a algumas áreas de nossa produção acadêmica, até hoje, ainda não nos adequamos à proposta modernista de Oswald de Andrade. Em grande parte continuamos no puro mimetismo. Muito menos, superamos o modernismo dos paulistas, para confrontarmos suas propostas com as propostas, a seu modo modernistas, do Manifesto Regionalista de Gilberto Freyre. Mas, o que há de diferente no manifesto nordestino?
O movimento de 1926 no Recife, contrariamente ao movimento modernista de 1922 em São Paulo, não deseja atualizar a cultura brasileira em relação ao exterior, mas deseja preservar a tradição em geral, e especificamente a tradição nordestina. No Manifesto Regionalista estão interligados dois temas básicos: a defesa das regiões, enquanto unidades da organização nacional, e a conservação dos valores tradicionais e regionais do Brasil, e, em particular, do Nordeste. Numa edição posterior (1967), Freyre qualificou o Manifesto como “regionalista, tradicionalista e a seu modo modernista”, fazendo a defesa do popular, que deve ser protegido do mau cosmopolitismo e do falso modernismo. Hoje, com certeza, Freyre se debruçaria a analisar o conceito e a proposta das diversas “globalizações” em andamento. Uma proposta européia de globalização, que inclui aspectos humanitários; e a proposta norte-americana, que apenas considera uma “globalização” comercial, que apenas visa lucros econômicos para os Estados Unidos, sem qualquer interesse humanitário.
O regionalismo do nordeste alerta para a necessidade de reorganizar o Brasil, pois em toda a sua história se deixou dominar por modelos estrangeiros, que não levaram em consideração as peculiaridades e diversidades físicas, sociais e antropológicas de suas terras e de suas gentes. Em relação ao tamanho do Brasil, Freyre levanta uma questão até hoje não bem equacionada: como fazer com que as diferenças regionais sejam respeitadas dentro do país como um todo? Na resposta ele fala analogamente aos modernistas paulistas: o único modo de ser nacional é ser regional. Contudo se distancia dos paulistas, quando se contrapõe a uma modernização do Brasil pela absorção de costumes e valores vindos do exterior. Nesta defesa de valores regionais e tradicionais Freyre é criticado pelos modernistas/progressistas do sul. Pois, defende itens tradicionais considerados símbolos da pobreza e do atraso nordestino. Por exemplo, elogia os mocambos como abrigo humano adaptado à natureza tropical do Nordeste. Critica projetos urbanísticos que desrespeitam características regionais e históricas; defende a tradição culinária familiar nordestina contra o avanço dos doces em lata e as conservas. Para Freyre, uma cozinha em crise significa um perigo de descaracterização de uma civilização. Estes valores, defendidos no Manifesto, permanecerão um parâmetro para muitos pareceres posteriores, emitidos por Freyre. Neste sentido, apenas uma referência. Por ocasião da construção de Brasília, advertiu o Presidente Juscelino de que a arquitetura dos prédios administrativos previa vidros demais em suas janelas, pois, no Planalto Central, a luminosidade natural era muito alta. E muita luminosidade dispersa as pessoas. Por isto, ambientes com muita luminosidade, não dispõem as pessoas ao trabalho sério. Se, portanto, Juscelino desejasse que os funcionários públicos, em Brasília, trabalhassem seriamente em seus gabinetes, no interior dos prédios administrativos, deveria diminuir a luminosidade que neles entrasse. Se os construísse com tantos vidros, teria que, posteriormente, fazer altos gastos com cortinas. (Pelo que se constata, parece que Gilberto tinha razão, pois muitas coisas acontecem em Brasília, até hoje, sem a devida seriedade!).
Interessante é que Freyre no Manifesto Regionalista expõe uma das questões fundamentais para uma adequada política nacional. Os comentaristas chamam a atenção que a questão regionalista de Freyre é uma questão sociológica e antropológica popular do Brasil, enquanto a preocupação dos modernistas paulistas se restringe às artes e à literatura, uma questão das elites. O ponto de partida de Freyre é o telúrico regional, a terra e o homem situado no Nordeste, a sua região. Mas, para que pudesse colocar como base referencial esta região, era preciso conhecer o restante do Brasil, e também o vasto mundo. De fato, conhecia outras terras estudara nos Estados Unidos, viajara e pesquisara na Europa e conhecia a produção literária e cultural do restante do Brasil. Ele mesmo voltara, por opção ao seu Nordeste. E ali, em seu Nordeste, conhecia a riqueza cultural do povo; reconheceu neste povo miscigenado com sangue português, indígena e africano o povo mais autenticamente brasileiro. Nenhuma região do Brasil possuía uma história e uma cultura tão rica como o Nordeste. No entanto, o Nordeste era considerado periférico em relação ao centro-sul do país. O poder político e econômico restringiam a participação do Nordeste na vida nacional. Era preciso mostrar a riqueza cultural do povo nordestino ao restante do país. Quem melhor representaria o Brasil era a população mestiça do Nordeste, discriminada pela política de embranquecimento da diplomacia brasileira. Era preciso recuperar a autoestima do nordestino, de sua cultura, de seu valor humano. Para isto, as elites econômicas do Sul deveriam se voltar para o Nordeste e redescobrir a contribuição deste povo na identidade nacional. Era como que a antecipação do slogan, hoje em voga, do “orgulho de ser nordestino”. E isto era necessário que todo o Brasil ouvisse. Gilberto Freyre não propõe separatismos, mas superação de preconceitos, de discriminações e de injustiças econômicas do Sul em relação ao Nordeste. É interessante que até hoje nem todos os problemas levantados por Freyre em relação ao Nordeste foram devidamente equacionados na política nacional. A população , a partir do Centro-sul do Brasil ainda manifesta preconceitos em relação ao Nordeste. As Universidades no Nordeste são menos favorecidas; há aqui menos indústrias; as injustiças sociais se multiplicam; a saúde da população continua precária; há deficiência de escolas e os professores, em geral, são muito mal pagos. No entanto, o Nordeste poderia ser semelhante ao paraíso. A variedade de suas frutas já impressionava os missionários e os viajantes do Brasil colônia. Em seu interior, no sertão ainda existem muitas plantas e árvores frutíferas por serem descobertas e incorporadas ao uso; inúmeras plantas medicinais ainda não foram pesquisadas; e o sol tropical torna o Nordeste, por assim dizer, doce. Os doces nordestinos são deliciosos. A culinária é variada. As manifestações culturais, artísticas e musicais, riquíssimas. A inteligência de muitos intelectuais surpreendente. Sem perigo de erro, pode-se afirmar que o Manifesto Regionalista é ponto de partida para revelar o Nordeste ao Brasil. Isto é a sua riqueza e sua importância.
O Regionalismo questionado
Entre as considerações analíticas do pensamento ocidental existem basicamente duas atitudes para a avaliação da produção cultural e intelectual e dos comportamentos humanos. Uma considera que apenas possui valor humanitário o que visa o universal; e outra, que dá a devida importância ao regional e ao particular. Os universalistas falam em globalização, em direitos humanos universais, em ética mundial, em organização de todas as nações, em internacional operária, em leis internacionais, em unificação da humanidade, em religião única, em ciência universal, em cultura da humanidade, em civilização única, etc.etc... Nesta linguagem, talvez, o conceito mais recorrente seja a palavra “globalização”. Constata-se, contudo, que, já a partir deste conceito, não há unanimidade em sua definição. Mas, a linguagem globalizante tenta desqualificar tudo que , de alguma forma, se apresenta como regional e particular, pois qualquer filosofia particular seria ilegítima. Isto vale, especialmente para alguns filósofos no Brasil, que não desejam ser considerados filósofos brasileiros, nem admitem uma filosofia brasileira. E, como a filosofia é responsável pela criação de muitos dos conteúdos de nossos conceitos culturais, tenta-se desqualificar tudo que é regional. Inclusive apontando perigos advindos de regionalismos e particularismos. Talvez, por detrás deste medo esteja o medo do engajamento. Pois, o rosto do particular com quem me confronto me questiona mais do que o homem genérico sem rosto. Por exemplo, falar sobre a guerra em terras distantes me sensibiliza muito menos do que um homem, diante de mim, estraçalhado por uma bomba. Num sentido psicológico, por isto, muitos universalismos parecem simplesmente racionalizações perante a realidade situado do homem concreto. Mas, o que se alega para desqualificar o regional?
Alega-se que o regionalismo potencializa separatismos étnicos, favorece ideologias como o “sangue e a terra” do nazismo, retrata uma mentalidade agrícola retrógrada e conservadora. E todos os tipos de regionalismo, no juízo de Mário de Andrade, são uma “praga nacional” no Brasil. Portanto, fatores de atraso. Neste sentido se afirma que, com a modernização das técnicas agrícolas, o êxodo rural, o desenvolvimento das cidades e de uma cultura urbana, o regionalismo se apresenta como ultrapassado, retrógrado e reacionário, tanto do ponto de vista cultural como ideológico. Tais críticos tentam menosprezar o regionalismo. Esta crítica, no entanto, parece esquecer que o regionalismo é uma constante na humanidade, pois o homem é um ser situado, que ama sua terra e seus costumes, com um senso de espaço o particular. E, no momento atual, muitos regionalismos são uma reação contra uma urbanização descontrolada, e contra um capitalismo despersonalizante. Por isto o regionalismo continua a existir sob dois aspectos: abriga reacionários, xenófobos e progressistas, inconformados com a divisão injusta do mundo entre ricos e pobres.
Voltando ao regionalismo freyreano, ele se caracteriza pela valorização da cultura do homem concreto, pelo incentivo da autoestima do homem concreto, que busca a dignidade de sua expressão como ser humano. Este regionalismo não é estreito, mas aberto ao mundo. Quer que outros vejam a capacidade de expressão do homem situado no espaço e no tempo. O próprio Freyre, situado no Nordeste, começa a revelar o valor regional de seu contexto, mas quer, ao mesmo tempo, que no Brasil os gaúchos mostrem a sua cultura, os paulistas, os cariocas, os mineiros, etc... E cada um se orgulhe de suas capacidades de objetivação cultural e artística. Isto também vale para o desenvolvimento tecnológico e econômica. Somente se forem valorizadas adequadamente as diversas regiões do país teremos uma nação digna do povo brasileiro. Esta forma de pensar também deveria ser aplicada a uma visão mais ampla, a partir da qual se deva avaliar a nossa situação como latino-americanos, ou inseridos e manifestações culturais afros, indígenas, europeias ou asiáticas.
Conclusão
Para mim, considero muito gratificante ter revisitado o Manifesto Regionalista , escrito por Gilberto Freyre em 1926. O seu valor perdura ainda hoje. Ainda mais, porque em nosso tempo se desenvolveu um turismo nacional, em que somos levados a satisfazer nossa curiosidade visitando diversas regiões deste nosso imenso Brasil, ou então visitando outros povos e outras culturas. Assim descobrimos que nem todos os homens pensam ou agem da mesma forma. E isto nos enriquece. Nos tornamos mais abertos e mais tolerantes. Descobrimos o diferente, a partir do qual nos podemos enriquecer ou nos confirmar nos valores que já cultivamos. E em tudo isto aparece o valor do regional. Quando um sulista visita o Nordeste, ou o Norte, ele aqui não quer encontrar o Sul. Procura o que é tipicamente regional : a comida, a música, o artesanato, a literatura, a arquitetura, a paisagem, o calor do ar e das águas, os costumes do nosso povo, a riqueza e a miséria de nosso contexto existencial. O turista não busca o universal, mas o regional. Neste mesmo sentido, quando apresentamos a nossa Universidade, o estrangeiro não quer saber se praticamos a mesma filosofia de sua universidade, ele quer saber se pensamos em algo específico, em algo diferente. Se nós temos a nossa filosofia, se a nossa literatura e arte oferecem algo original. Não se interessam se entendemos Kant, Hegel, Wittgenstein ou Frege. Nos países destes filósofos sempre há melhores especialistas no pensamento de tais filósofos. Eles querem saber se nós, brasileiros, nordestinos pensamos em algo original. Se assim fôssemos capazes, esta seria a nossa glória. E, de fato, aqui, regionalmente, podemos localizar numerosos intelectuais dignos de menção, como Gilberto Freyre, Paulo Freire, Helder Camara, deixando de mencionar tantos outros músicos, artistas, pedagogos que provêm deste vasto Nordeste. Claro, o regionalismo não pode ser xenófobo, mas aberto ao mundo. Tanto mais o regional será valorizado, quanto mais conhecermos outras regiões do mundo, com suas expressões culturais. Neste sentido, como não teremos condições de conhecer tudo neste mundo, deveremos privilegiar o que mais nos enriquece como seres humanos situados. Para nós brasileiros, com certeza, deveria em primeiro lugar interessar o que está próximo a nós. Em primeiro lugar as diversas regiões e manifestações culturais dentro do Brasil. Em segundo lugar, o que aconteceu e acontece na América Latina, depois na África, na Europa e na Ásia. Mas, infelizmente, os interesses e as ideias de muitos brasileiros estão deslocados. Estamos voltados de costas para as riquezas culturais e geográficas da América Latina. Desconhecemos também, em grande parte, a riqueza das regiões brasileiras. Pensamos que só vale o que vem da Europa e dos Estados Unidos. O que, de fato, significa uma atitude de serviência e submissão, valorizando, muitas vezes o que pensamos ser o universal, mas que nada mais é do que ideologia de servidão. Não esqueçamos que nós, como nossos companheiros de história, somos seres humanos situados no tempo e no espaço. E o nosso primeiro compromisso é com a nossa situação, que sempre será regional.
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Inácio Strieder é professor de Filosofia - Recife