RELIGIOSIDADE EM GILBERTO FREYRE
Não penso que se possa separar a pessoa de Gilberto Freyre de sua obra. Referindo-se à Casa Grande & Senzala o próprio Gilberto nos adverte de que esta obra tem muito de auto-biográfico. É como que uma busca de si mesmo, de sua identidade, de sua origem. Por isto, penso ser necessário, para falar da religiosidade em Gilberto Freyre, primeiramente dizer algo sobre a sua religiosidade pessoal. Assim, inicialmente, farei algumas observações sobre o que o próprio Gilberto Freyre diz de sua compreensão religiosa, e dos julgamentos que outros fizeram a respeito desta religiosidade de Freyre. Posteriormente tentarei identificar quais seriam, no meu entender, as principais teses que encontramos na obra de Gilberto Freyre, com relação à religiosidade.
A religiosidade de Gilberto Freyre
Em Alhos & bugalhos Gilberto Freyre se pergunta: “serei um escritor obsceno?”(1). E passa a dar a sua resposta: “Quando, há algumas dezenas de anos, apareceu o livro de minha autoria intitulado Casa-Grande & Senzala houve quem o considerasse ‘imundamente obsceno’; ou extremamente ‘sexy’; pornográfico, até; ou imoral ao mesmo tempo que anti-religioso e mesmo antibrasileiro. Obra de alguém desvairado pela ‘obsessão com o sexo’. ‘História social?’ Perguntou austero crítico da então pudica Universidade de Harvard. E respondia, ele próprio, muito ancho do seu jogo de palavras: ‘Não! E sim história sexual’.”(2)
E continua Gilberto Freyre:
“A acusação de ‘anti-religioso’, acompanhando a de livro obsceno, persistiria por algum tempo... Resistiriam tais acusações a um livro, sob critério intelectualmente honesto e, em essência, pró-brasileiro e até pró-católico, como apontado por certos críticos como ‘imundamente obsceno’, anti-religioso e antibrasileiro, a uma revisão severamente crítica dos seus propósitos, dos seus métodos e da sua linguagem?... O livro não tardou a merecer críticas favoráveis, nos Estados Unidos, da autorizada Catholic Sociological Review,... na França, do famoso jesuíta Padre Retif... O que, afinal, constitui obscenidade em obra literária...? Obscenos personagens, em obras de teatro,... até de Ariano Suassuna, que é tão católico nas suas convicções religiosas quanto o Cardeal Dom Eugênio Sales ...”(3)
Citei este texto, bastante longo de Gilberto Freyre em Alhos & bugalhos para observar que a publicação de Casa-Grande & Senzala provocou polêmicas em relação à interpretação do autor quanto à importância da religiosidade na formação do Brasil colonial.
Vários artigos e resenhas, publicados sobre Casa-Grande & Senzala, sob diversos aspectos, fazem críticas a Gilberto Freyre. Afonso Arinos de Melo Franco(4) denomina “Casa-Grande & Senzala” de “uma obra rabelaisiana”, criticando que nela há demasiadas palavras chulas, e sugerindo a Gilberto Freyre que tivesse “um pouco mais de dignidade”. Miguel Reale(5) classifica Gilberto Freyre como “sociólogo naturalista”, e afirma que viu silhuetas, mas não encontrou almas em “Casa-Grande & Senzala” ; mostra-se também escandalizado com a interpretação de Gilberto em relação à ação missionária dos jesuítas. Mais escandalizado se mostra ainda, quanto à questão dos jesuítas, o médico mineiro Armando Más Leite(6) , que, em artigo sobre “Gilberto Freyre e a pedagogia dos jesuítas”, ironiza Freyre quanto às suas opiniões sobre os jesuítas, e o acusa de anti-espiritualista. As opiniões de Freyre sobre os jesuítas lhe custaram ainda outras amarguras, como veremos. Aqui no Recife o Pe. Antônio Siríaco Fernandes S.J., proveniente de Goa, demonstrou profundo desagrado quanto às opiniões de Freyre em relação aos jesuítas. Freyre também foi acusado de ofensivo a Nossa Senhora. Principalmente porque escrevera em Casa-Grande & Senzala que no Brasil colonial se jurava “pelo pentelho da Virgem”. Foi necessário explicar ao bondoso padre Fernandes que isto não era uma afirmação de Gilberto Freyre, mas uma citação colhida nos autos da inquisição em Pernambuco. Destes autos Freyre também citou a denúncia de que alguns cristãos novos colocavam o crucifixo debaixo da mulher na hora da cópula(7).Informação também considerada ofensiva.
A partir de tais citações, colhidas em documentos da época colonial acusava-se Gilberto de irreligioso e desrespeitoso para com os santos, a Virgem Maria e a Igreja.
Outros comentaristas da obra de Gilberto Freyre , desde o início, se mostraram mais tolerantes na interpretação da opinião religiosa de Freyre. Alceu Amoroso Lima, em seu artigo “Gilberto Freyre visto por um católico”(8), fala de diversas concordâncias de Gilberto Freyre com o pensamento católico, mas qualifica-o de sociólogo não-católico e agnóstico.
Edson Nery da Fonseca, certamente o melhor conhecedor e intérprete de Gilberto Freyre, afirma que Gilberto “não se considera católico, nem anti-católico, mas acatólico”(9).
José Lins do Rêgo, no prefácio ao livro de Gilberto Freyre, Região e Tradição, afirma que Gilberto Freyre era um “apaixonado pela Igreja Católica, mas de longe, seduzido pela ordem, pela liturgia, pelo esplendor de Deus, sem que se completasse na fé... ficara sempre de fora, rondando a porta da Igreja, no sereno, sem disposição de meter-se na festa”(10).
Bem, penso que estes poucos testemunhos sobre a religiosidade de Gilberto Freyre nos podem levar adiante na análise de nosso tema. Qual seria a minha opinião se fosse caracterizar a religiosidade de Gilberto Freyre? Naturalmente me fundamentando nos escritos de Gilberto Freyre. À base destes escritos, não concordo totalmente nem com Miguel Reale, que qualificou Freyre como naturalista (em artigo posterior ele mudou esta qualificação, denominando então Gilberto Freyre como sociólogo culturalista)(11); nem com Alceu Amoroso Lima, dizendo que Freyre era agnóstico e não-católico; nem com Edson Nery da Fonseca, que afirma Freyre ter sido acatólico. No meu entender, Gilberto Freyre deve ser considerado um pró-católico e um católico sociologicamente, como ele mesmo se qualifica(12). Mas o que Freyre entende quando se auto-qualifica como sociologicamente católico? Vejamos isto a partir de um texto dele mesmo.
Em l977, Gilberto Freyre fez uma palestra na Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, em Brasília, sobre Terra, Homem e Educação(13). Ao final da palestra , o deputado Dayl de Almeida pediu um esclarecimento a Gilberto Freyre sobre uma frase que havia pronunciado durante a palestra, afirmando que “a Igreja Católica temporariamente estava decadente”. O deputado queria saber o que Freyre queria dizer com esta frase. E Gilberto explica: “Sr.Deputado... talvez a sua maneira de ver a Igreja Católica – que eu tanto respeito – seja a de um católico... A minha maneira não é a de um indivíduo teologicamente católico. Não sou teologicamente católico. Não posso, porém, dizer que, como brasileiro, não seja católico, sociologicamente católico. Acho que todo brasileiro, mesmo quando é protestante, mesmo quando é israelita, ou maometano, ou budista, é sociologicamente católico. Isso está no meu primeiro livro escrito no Brasil, Casa-Grande & Senzala. (Deputado Dayl: Até a umbanda, na Bahia, é católica?) ... (Freyre): Exato. De modo que, desse ponto de vista, sou um aculturado pela Igreja Católica, pelo catolicismo, mas teologicamente não sou católico... vendo o assunto de fora para dentro... há um declínio... decadência... na ortodoxia católica em todo mundo e com reflexo no catolicismo brasileiro”.
Em função destas considerações de Gilberto Freyre, penso se possa entender porque Edson Nery da Fonseca afirme ser Gilberto Freyre acatólico.Como se repara no texto acima, o próprio Gilberto declara que ele não é teologicamente católico. Em outras palavras, isto quer dizer que ele não aceita integralmente a doutrina teológico-dogmática da Igreja Católica.
Da minha parte diria que Freyre se relaciona com a Igreja Católica na perspectiva do filósofo francês Henri Bergson. Bergson, diversas vezes citado por Freyre, explica, em seu livro “As duas fontes da moral e da religião”, que todos os grandes místicos estão ligados a uma religião estática, isto é, a uma religião institucionalizada, mas aceitam dela somente a sua espiritualidade. É isto, mais ou menos, o que penso ter sido a atitude de Gilberto Freyre em relação à Igreja Católica (14).
E, por falar em místicos, chama atenção nos escritos de Gilberto Freyre a quantidade de vezes que ele menciona os grandes místicos do cristianismo, com destaque para a mística ibérica. Especial menção recebem, no mundo hispânico, o franciscano Raimundo Lullo, São João da Cruz, Santa Tereza de Ávila, Unamuno. Dentre os filósofos, de certa forma ligados à tradição mística, Freyre simpatiza especialmente com Santo Agostinho, Pascal, Bergson, Jacques Maritain, Péguy, Gabriel Marcel, Santayana. Causa-lhe especial admiração a atitude de Santayana, que abandonou inesperadamente a sua cátedra em Harvard, para viver o restante de sua vida enclausurado num mosteiro no sul da Itália(15). Dentre os grandes santos, Freyre mostra simpatia especial por São Francisco de Assis e por Santo Antônio.
Além disto, Freyre escreveu diversos artigos exaltando figuras exemplares da Igreja Católica. Quando nos Estados Unidos, publica artigo no Diário de Pernambuco(l5-5-l921), por ocasião da morte do Cardeal Gibbons, entusiasmado com este “papa dos Católicos americanos... um grande homem e um grande ‘leader’... uma dessas figuras cheias de sedução pessoal... homem sem ódios sectários, antes eclético e amado por protestantes e judeus... Era assim humano, eclético, um papa para todos... Homem de visão social e idéias avançadas... na morte de James Gibbons perdeu o Catolicismo um grande ‘leader’ e os Estados Unidos viram desaparecer um dos seus homens mais altamente representativos. Era ele o que as Escrituras chamam um ‘homem de Deus’- sem que sua bondade fosse desculpa para falta ou pobreza de intelecto”(16).
Em fevereiro de l922 manda outro artigo ao Diário de Pernambuco(17), por ocasião da morte do papa Benedito XV (ou Bento XV), em que destina a este papa um lugar de “grande papa” na história, e que ele foi, na opinião de Freyre, “the right man in the right place” (o homem certo no lugar certo), em contraposição ao “honesto, bom, patriarcal, medíocre Pio X”. Neste mesmo artigo, Gilberto Freyre menciona o Papa Leão XIII , que soube adequadamente orientar os católicos frente ao darwinismo, considerando que a teoria da evolução, como hipótese ou realidade, não era contrária aos princípios do cristianismo. Os protestantes, ao contrário, sem uma orientação adequada, segundo Freyre, perderam o prumo, frente ao darwinismo, uns renunciando à fé, outros intransigentemente recusando esta teoria, a partir de seu literalismo bíblico.
Em outro artigo no Diário de Pernambuco (l7-7-1923)(18), Gilberto critica o positivismo, o endeusamento e o dogmatismo da Ciência, denominando este cientificismo de “lúbrico misticismo”. E diz: “A este misticismo de laboratório, vastamente superior é o dessa grande ‘officina artis spiritualis’ que é a Igreja Católica... Quanto a mim, sempre me pareceu mais interessante uma catedral que um laboratório”.
Esta mesma linha de admiração pela Igreja Católica constatamos na Conferência que Gilberto Freyre proferiu na Paraiba em l924(19). Gilberto denomina esta conferência de “Apologia pro generatione sua”, em analogia ao título do livro do cardeal Newman “Apologia pro vita sua”. Como todos sabem, O cardeal Newman se convertera à Igreja Católica, e isto repercutira profundamente em todo o mundo cristão, por se tratar de um líder do anglicanismo, um homem espiritual de características místicas. A conferência de Freyre assume,assim, praticamente, as características de uma “apologia do cardeal Newman”.
Outra “laudatio” a um cardeal da Igreja Católica encontramos num pronunciamento que Gilberto fez no Congresso Nacional, quando Deputado Federal por Pernambuco de l946-l950(20). Trata-se desta vez de uma homenagem ao primeiro cardeal brasileiro, Dom Joaquim Arcoverde, por ocasião do centenário de seu nascimento. Neste discurso Gilberto Freyre exalta a pernambucanidade do cardeal Arcoverde, o seu nome e a sua origem indígena, e o cristianismo firme e sertanejo do avô e do pai deste primeiro cardeal brasileiro.
Neste elenco de escritos “religiosos” de Gilberto Freyre, se assim me é permitido denominar estes registros em que ele analisa especialmente temas a partir de uma visão católico-cristã, merecem ainda especial menção os artigos, reunidos por Edson Nery da Fonseca, no livro Pessoas, Coisas & Animais, na secção Santos e quase santos(21). Fala Gilberto ali de “São Severino do Ramo”, iniciando o artigo dizendo: “Alguém alude há pouco ao fato de que, menino de sete ou oito anos, teria eu ido do Recife ao interior de Pernambuco visitar a igreja de São Severino do Ramo. Talvez para pedir alguma graça ao poderoso santo, hão de concluir os maliciosos. Quando a verdade é que nem em tão remota meninice, nem depois de homem feito, fiz até hoje qualquer viagem para pedir graça de santo ou obséquio de poderoso”. Ao final deste artigo, Freyre diz que o “alferes Severino” não lhe dava ânimo contra o medo do terrível Cabeleira(*). Por isto não lhe fez oração. Mais segurança lhe deu, naquela noite de medo, contra o Cabeleira e outros monstros dos canaviais, a presença de sua mãe e as portas da casa-grande fechadas. E acrescenta: “Rezei mais a Nossa Senhora, pedi a bênção a Papai do Céu e dormi sossegado até o dia seguinte”.
No artigo sobre “Santo Antônio, militar no Brasil”(22), Gilberto Freyre diz que “o culto de Santo Antônio... nos faz esquecer e perdoar o que há de... pouco cristão... nas tradições de algumas confrarias...(e lembra) pelo que há de realmente cristão, democrático, fraternal na verdadeira Igreja e no verdadeiro Cristianismo... A vida, a saúde, a beleza da Igreja Católica, está na diversidade de tendências que à sombra do Papa e em torno dos dogmas se concilia com a unidade magnífica. Está no fato de seus santos serem tão diversos: São Jerônimo, Santo Agostinho, São Tomaz, Santa Teresa de Jesus, Santo Antônio de Lisboa, São Bento, São Francisco de Assis. Está no fato de dentro da Igreja haver dominicanos e franciscanos, padres do Oratório e jesuítas. Está na diversidade de tendências políticas de seus próprios líderes brasileiros, de suas grandes figuras de leigos...”
Em outro artigo, Gilberto mostra uma grande simpatia pelo “padre Ibiapina e suas ‘mães-sinhás’.”(23) Para Gilberto Freyre o Padre Ibiapina foi “uma enorme força moral a serviço da Igreja e do Brasil... Nunca o Brasil precisou tanto como hoje de padres que, ao ideal universalista de católico, à larga simpatia humana de cristãos, reúnam, como Ibiapina reunia, a autenticidade de... brasileiros.”
Neste mesmo conjunto de artigos, publicados no livro Pessoas, Coisas & Animais, Gilberto ainda fala da “Ação e contemplação dos franciscanos”, dos “carmelitas no Brasil”, de “um mundo necessitado de profetas”; de sua amizade com o babalorixá ortodoxo, Pai Adão; e também de “um homem que ‘ seguiu Jesus’: Orlando Dantas”(24).
Este artigo, em memória de Orlando Dantas, merece um destaque especial, pois se reporta a um importante momento da juventude de Gilberto Freyre. Neste artigo,Gilberto relata que, quando ainda “menino de dezesseis para dezessete anos, pretendendo orientar homens feitos com um evangelismo de Exército da Salvação ao qual acrescentava um socialismo romântico que poderia ser facilmente considerado Comunismo. Comunismo cristão. Tolstoiano... Lembro-me de que um dia falei desse cristianismo socialista – cristianismo que eu, romântico de dezesseis anos, imaginava poder desenvolver-se numa grande força sem clero e até sem igreja – a um público que era o mais heterogêneo dos públicos... terminei o discurso, dizendo: ‘Agora, quem quer seguir Jesus? Quem quiser seguir Jesus, venha apertar-me a mão”. E diz Freyre que vieram mendigos, prostitutas, estudantes, doutores e operários. Tudo gente mais velha do que ele apertar-lhe a mão. E nesta ocasião veio também Orlando Dantas, já homem feito, mas desorientado na vida, doente por falta de fé, apertar-lhe a mão, decidido a “seguir Jesus”. E, segundo Freyre, Orlando Dantas triunfou no jornalismo e como publicitário, mas toda a vida ficou fiel à sua decisão de seguir Jesus, e sempre foi um homem cristãmente de bem. Um homem desorientado encontrara novo rumo na vida, tocado pela voz de um colegial de dezesseis anos.
Gilberto recorda este fato, ao que parece, com certa nostalgia, quando escreve aos 53 anos de idade : “Passou minha fase de cristianismo romanticamente evangélico; durou menos de dois anos. Mas em Orlando Dantas, a memória daquela decisão de ‘seguir Jesus’ duraria a vida inteira”.
E aqui nos podemos perguntar, por que este ideal evangélico de Freyre durou tão pouco tempo, quando ele, terminando o curso secundário no Colégio Batista do Recife, foi aos Estados Unidos e se matriculou numa Universidade Batista com o propósito de se preparar para ser missionário na Amazônia? Ao que tudo indica, o seu afastamento do protestantismo se deve a dois ou três fatos. Primeiramente, uma profunda decepção com a vida burguesa dos batistas americanos; segundo, o racismo entre os batistas no sul dos Estados Unidos. Conta Gilberto Freyre que, viajando com colegas batistas pelo interior dos Estados Unidos, numa determinada cidade sentiu um cheiro horrível de carne queimada. Perguntando a seus colegas donde vinha este cheiro, teriam respondido simploriamente de que estavam ali apenas queimando um negro. Outro fato que, certamente, contribuiu para Gilberto Freyre se voltar com tanta simpatia para a Igreja Católica foi a sua amizade com Manoel Oliveira Lima. Toda vez que podia, visitava Oliveira Lima em Nova Iorque. E Oliveira Lima, que se considerava um católico histórico, deve ter convencido Gilberto Freyre da importância da Igreja Católica na formação cultural e histórica do Brasil. Assim se explica, provavelmente, que Gilberto nunca mais tenha feita alguma laudatio ao protestantismo no Brasil e em geral.
Caberia aqui também analisar as considerações de Gilberto Freyre sobre a volta de Joaquim Nabuco à Igreja Católica. Embora Gilberto considerasse esta volta de Nabuco à Igreja mais como uma volta sociológica e cultural, contudo manifesta admiração e respeito pela convicção deste Estadista do Império(25).
Para concluir esta parte das minhas considerações, ainda duas perguntas: 1. Afinal, em que Gilberto Freyre, de fato, acreditava? 2. Qual foi a atitude final de Gilberto Freyre em relação à Igreja Católica?
Em relação à primeira questão, podemos afirmar, com certeza, que Gilberto acreditava em Deus. Quanto à Segunda questão, devo fazer algumas considerações um pouco mais amplas.
Há poucos dias eu disse à Profa. Sylvana, coordenadora deste evento, que eu provaria na minha fala que Gilberto Freyre está no céu, segundo a teologia católica. E isto sem brincadeira. Pois, segundo a teologia da Igreja, há várias formas de se obter o perdão dos pecados. E uma destas formas é converter infiéis, ou trazer descrentes para o seio da Igreja. E Gilberto, consciente ou inconscientemente, fez isto. Já relatei antes o caso de Orlando Dantas. Mas há um caso ainda mais interessante de uma conversão à Igreja Católica mediada por Gilberto Freyre. Ouçam o seguinte relato, depois me digam quem poderia ter relatado isto: “Nascido de família protestante, estava sendo educado em colégio protestante, por educadores americanos...Foi neste período decisivo de minha vida que me caiu nas mãos uma conferência importantíssima de Gilberto Freyre. Chamava-se Uma Cultura Ameaçada, a Luso-Brasileira. Contra o cientificismo... chamava Gilberto Freyre a atenção do adolescente que eu era então para ‘sentimentos que, sem serem rigorosamente experimentais, são, entretanto, realidades tremendas para a vida, a sociedade e a cultura dos povos ameaçados pela negação dos mesmos sentimentos, os quais seriam substituídos por outros menos lógicos’... Apresentava como caminho a todos nós a cultura de origem portuguesa..., conservado o cristianismo que os portugueses trouxeram a esta parte da América... como forma apolítica... dos brasileiros... de participarem... da larga sociedade cristã de que fala T.S.Eliot...: aquela em que o natural do cristianismo é aceito, sociologicamente por todos; o sobrenatural – com seus dogmas, suas doutrinas, sua teologia – pelos que têm olhos para o sobrenatural’.(Gilberto) Voltava a se referir insistentemente na conferência ao cristianismo católico e tradicional dos portugueses, que se opunha ao protestantismo rígido, puritano e estreito dos nórdicos... Era Gilberto Freyre que vinha me revelar que tínhamos uma tradição e que o caminho que eu procurava era este... Em suma: com esta conferência, Gilberto Freyre despertava minha atenção para a ... fé católica. Não importa que sua admiração pela Igreja fosse antes de caráter ético e estético do que propriamente religioso e confessional – o que, espero, também virá com o tempo. O que importa é que, mais tarde, quando voltei a procurar nesse campo, sabia que nada mais tinha a perguntar ao protestantismo em que tinha sido educado, mas sim ao catolicismo vivo e aberto”(26).
Adivinhem de quem é a confissão deste texto? Será que nos devemos admirar? Nada menos do que de Ariano Suassuna. Interessante que, neste texto, publicado em l962, Ariano Suassuna espera que a admiração de Gilberto pela Igreja Católica, um dia, também chegue a ser religiosa e confessional. Não sei se isto chegou a acontecer de forma profunda e íntima, mas a verdade é que Gilberto Freyre, perto do fim de sua vida, recebeu os sacramentos da Igreja das mãos do então abade do Mosteiro de São Bento de Olinda, Dom Basílio Penido. O que, normalmente, se interpreta como uma plena comunhão com a Igreja.
Mesmo que Gilberto não o diga explicitamente, ele demonstra em seus escritos uma nostalgia pelo sobrenatural, e espiritualmente, em certos momentos ao menos, terá sido um angustiado.
Caberia ainda analisar o desencontro de Gilberto Freyre com o clero progressista, principalmente a partir do golpe de l964. Fala-se de antipatias de Freyre para com o Arcebispo Dom Helder Camara. Não pesquisei esta fase da vida de Gilberto Freyre, mas sei que, neste período, criticou padres, segundo ele, demagogos e desviados de suas funções espirituais. Mas a avaliação das atitudes religiosas de Freyre, nesta época, fica para uma outra ocasião.
Com isto eu finalizo esta primeira parte de minhas considerações, em que tentei caracterizar a religiosidade de Gilberto Freyre. Na segunda parte tratarei, propriamente, do título desta minha palestra: A religiosidade em Gilberto Freyre.
Considerações finais
Perguntar pela religiosidade em Gilberto Freyre, naturalmente, significa perguntar pelo lugar que esta religiosidade ocupa na Obra de Freyre. Mas, qual é o principal objeto de análise nas pesquisas e nos escritos de Gilberto Freyre? Sem dúvida, o Brasil e sua história. E, em relação a este objeto, Freyre escreveu em 1942, em seu artigo “Um ortodoxo brasileiro no século XIX”, reproduzido no Jornal do Commercio (Recife), em 17.09.1942, o seguinte: “A história do Brasil é tão cheia de padre e de frade que de longe parece a ‘história eclesiástica’ de que já falou um dos nossos mais finos escritores católicos: o meu velho amigo Sr. Luiz Cedro Carneiro Leão. Daí ser tão difícil deixar de falar de padres e frades quando se escreve do Brasil e de sua história”.
De acordo com este testemunho de Freyre, a religiosidade é uma constante em sua obra. É interessante observar que, desde os seus primeiros artigos, enviados dos Estados Unidos, principalmente ao Diário de Pernambuco, até as suas últimas obras ele fica fiel a uma dúzia de teses em relação à religiosidade brasileira. Tentarei, resumidamente, elencar quais são, no meu entender, as principais teses em que Gilberto Freyre se fundamenta quando fala da religiosidade em sua obra.
No período do Brasil colonial, cristianismo e catolicismo se identificavam em Portugal. Mas, este catolicismo português era um “catolicismo lírico”, quase sem ossos, com uma moral flexível, com bastantes resquícios de costumes pré-cristãos dos povos ibéricos, e com forte influência maometana.
A catequese dos missionários no Brasil foi predominantemente cristocêntrica, e não etnocêntrica, como nos países colonizados por protestantes. Isto permitiu que o cristianismo no Brasil fosse caracteristicamente universalista, e se “miscigenizasse” com rituais não-cristãos dos povos indígenas e africanos.
O catolicismo brasileiro não é idêntico ao catolicismo europeu. Possui características “tropicais”.
A religião católica foi o cimento da unidade nacional. O estrangeiro, por si só, nunca foi considerado um perigo para o Brasil Colônia. Perigoso era o herege. Assim como hoje sobem aos navios os fiscais da alfândega, para examinar os produtos, no Brasil colônia iam aos navios os padres, para examinar a ortodoxia da fé dos adventícios. O Brasil, desde sua origem, é sociologicamente católico.
Mais significativa e adequada ao Brasil foi a ação dos franciscanos do que dos jesuítas. Não se dá a devida importância aos fransciscanos porque não documentaram suficientemente seu trabalho. Os jesuítas documentaram muito melhor a sua presença, por isto sempre se prestigiou a sua ação.
A educação intelectualista/aristotélica e apolínea dos jesuítas fracassou; fracassou também seu projeto de ajuntar os indígenas em reduções.Se o projeto das reduções tivesse triunfado, provavelmente o Brasil se teria fragmentado. Pois o projeto jesuítico criava nações étnicas dentro da colônia. Mais adequado foi o franciscanismo, com sua filosofia nominalista e pragmática, com suas missões volantes, de tradição agostiniana e características dionisíacas; e amantes da natureza.
A catequese e a conversão dos não-cristãos, no Brasil colonial, não foi somente uma ação de padres, freis e monges. Muitos leigos e leigas, nas casas-grandes e nas senzalas, transmitiam o cristianismo, tanto aos filhos dos senhores como aos escravos. As casas-grandes tinham a sua capela, e, muitas vezes, o seu capelão, submisso ao patriarca da casa.
A base de sustentação da religiosidade, no Brasil colônia, não eram as igrejas, mas as famílias na casa patriarcal.
No cristianismo português, muitos santos assumiram os encargos das antigas entidades pagãs. Para todos os problemas do dia-a-dia havia santos protetores. Os santos faziam como que parte da família. Eram escolhidos para padrinhos e madrinhas de batismo. Moças casadouras, mulheres estéreis e solteironas rezavam a Nossa Senhora, a São Gonçalo, a Santo Antônio, a São João Batista, a São Pedro para que as socorressem em suas aflições.
Os escravos adultos, que vinham ao Brasil ainda não batizados, somente deveriam ser batizados com seu consentimento. Depois de certo tempo, muitos pediam espontaneamente o batismo, pois isto significava a sua integração entre os outros escravos e facilitava o relacionamento com os seus senhores.
O catolicismo colonial no Brasil foi democrático, pois senhores e escravos rezavam as mesmas orações, dirigiam-se aos mesmos santos protetores, invocavam os mesmos anjos. Também os escravos deviam observar o Domingo, e antes da morte tinham direito a receber os sacramentos da Igreja.
O catolicismo lírico de Portugal evitou que os rigores da inquisição chegassem com muita intensidade ao Brasil. Foi um catolicismo que soube absorver rituais e músicas dos não-cristãos. Muito diferente de como ocorreu em países cristianizados por missionários protestantes. Desta forma, o catolicismo, embora trazido pelos colonizadores e opressores, em muitas situações se transformou em religião protetora dos povos invadidos e oprimidos.
Com esta dúzia de teses, que elenquei aqui, não pretendo dizer que são apenas estas as características básicas da religiosidade em Gilberto Freyre. Mas, parece-me, que a partir delas se pode identificar as principais idéias que conduziram a análise e a pesquisa da sociologia e da antropologia de Freyre.
Notas:
(1)Cf. Gilberto Freyre. Serei um Escritor Obsceno? In: FREYRE, Gilberto. Alhos & bugalhos. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, l978, p 178-185
(2)Cf. idem, p 178
(3)Cf. ibidem, p 180
(4)Cf. Afonso Arinos de Melo Franco. Uma obra Rabelaisiana. In: FONSECA, Edson Nery da (org.). Casa-Grande & Senzala e a crítica brasileira de 1933 a 1944. Recife, Companhia Editora de Pernambuco, 1985, p 81-88
(5)Cf. Miguel Reale. Um Sociólogo Naturalista. In: Idem, p 161-166
(6)Cf. Armando Más Leite. Gilberto Freyre e a Pedagogia dos Jesuítas. In: Ibidem, p 167-169
(7)Cf. Gilberto Freyre. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro, Record, 1994, p LXVII
(8)Cf. Alceu Amoroso Lima. Gilberto Freyre visto por um Católico. In: Gilberto Freyre, sua Ciência, sua Filosofia, sua Arte. Rio de Janeiro, José Olympio, 1962, p 37-45
(9)Cf. Edson Nery da Fonseca. Apresentação. In: FREYRE, Gilberto. Pessoas, Coisas & animais. São Paulo, MPM Propaganda, l979, p 01-08
(10)José Lins do Rêgo. Prefácio. In: FREYRE, Gilberto. Região e Tradição. Rio de Janeiro, Record, 1968, p 30
(11)Cf. Miguel Reale. A filosofia da história do Brasil na Obra de Gilberto Freyre. In: FREYRE, Gilberto. Sua Ciência, sua Filosofia, Sua Arte. Rio de Janeiro, José Olympio, 1962, p 405-411
(12)Cf.Gilberto Freyre. Alhos & bugalhos, p 178; Gilberto Freyre. Novas Conferências em busca de Leitores. Recife, Editora Universitária-UFPE, 1995, p 185
(13)Cf. Gilberto Freyre. Novas Conferências em busca de Leitores, p 184-186
(14)Não é que eu considere Gilberto Freyre como um místico, no sentido cristão ortodoxo. Mas é interessante que Freyre tenha confidenciado ao Prof. Edson Nery da Fonseca ter vivenciado duas crises “místicas”, com experiências de intensa luminosidade interior.
(15)Em diversas passagens de seus escritos, Gilberto Freyre alude a esta atitude do filósofo George Santayana, que foi passar o resto de sua vida num convento no sul da Itália, mesmo que não tivesse assumido integralmente a doutrina teológico-dogmática da Igreja Católica.
(16)Cf. Gilberto Freyre. Tempo de Aprendiz. São Paulo/Brasília, IBRASA/IBL, 1979, p 117-119, v.01
(17)Cf. idem, p 206-208
(18)Cf. ibidem, p 282-284
(19)Cf. Gilberto Freyre. Região e Tradição, p 79-98
(20))Cf. Gilberto Freyre. Quase política. Rio de Janeiro, José Olympio, l980, p 116-119
(21)Cf. Gilberto Freyre. Pessoas, Coisas & Animais, p 11-36
(*) Cabeleira era considerado um bandido monstruoso, e um tanto mítico, que se escondera nos canaviais de Pau d’Alho, no interior de Pernambuco. Mesmo enforcado, e já morto, continuava a inspirar medo em crianças e mulheres, aparecendo como lobisomem e bicho papão.
(22)Cf. Idem, p 14-15
(23)Cf. Idem, p 19-21
(24)Cf. Ibidem, p 22-23
(25)Cf. Gilberto Freyre. Sociologia. Rio de Janeiro, José Olympio, 1957, p 282-283, v.01
(26) Cf. Gilberto Freyre, sua ciência, sua filosofia, sua arte. Rio de Janeiro. Jo´se Olympio, 1962.
______________________________________________________
Inácio Strieder é professor de filosofia - Recife