DOM HELDER PSICOGRAFADO
Quando se tenta codificar as potencialidades mentais, psicológicas e espirituais do ser humano misturam-se, muitas vezes, as manifestações fenomênicas que brotam das raízes mais profundas da razão, do subconsciente e das dimensões de transcendência. Principalmente as ideologias e os sistemas religiosos criam elaborações filosóficas e doutrinárias que se baseiam em argumentos supostamente racionais, em desejos, emoções e paixões psíquicas, e em considerações imaginativas referentes a um mundo com valores e entidades espirituais. Pode-se até considerar que toda a vida humana se articula a partir do intercâmbio e da valoração do racional, do psíquico e do espiritual. E nestes níveis o ser humano possui potencialidades, até hoje, não harmoniosamente explicadas pelas ciências,, pelas filosofias e pelos sistemas religiosos. Uma destas possíveis manifestações potenciais é a psicografia.
Na psicologia o fenômeno da psicografia se explica simplesmente como uma habilidade do psiquismo humano. O escritor entra num estado de concentração e tensão interior tal que o seu subconsciente assume o comando de seus atos. Dá a impressão de que se encontra em transe. A sua escrita se torna automática, sem passar pela consciência racional. Os movimentos da mão são rápidos, e o que registra vem diretamente do subconsciente. A pessoa neste estado, depois de voltar à normalidade, às vezes, não reconhece como seu o que escreveu. Muitas vezes tem o sentimento de que um poder estranho a conduziu a escrever. Isto a leva a acreditar que sua psicografia foi fruto da presença de uma outra entidade, que o utilizou como instrumento para se expressar. Segundo Alan Kardec, o codificador da doutrina do espiritismo, na psicografia o espírito de alguém já desencarnado se aproveita de um médium para transmitir mensagens aos vivos. O médium, que psicografa, simplesmente seria um instrumento nas mãos de algum espírito do além. Na literatura mundial encontram-se diversos autores que, ao que tudo indica, psicografaram algumas de suas obras. Por exemplo, Camilo Castelo Branco. Nesta rota estão muitos poetas, cujos poemas são tipicamente frutos diretos de seus subconscientes. Por isto, não como negar a psicografia como um fenômeno humano real na literatura. A polêmica está na interpretação deste fenômeno. Para a filosofia, a psicologia, e uma teologia cristã acadêmica a psicografia não passa da manifestação de uma potencialidade existente no psiquismo humano. Para a sua manifestação dispensa-se qualquer intervenção transcendente do mundo dos espíritos. Os adeptos da doutrina de Alan Kardec lhe atribuem outra origem.
Bem. Por que estou fazendo estes considerandos? Aqui no Recife, um autor, com grandes dotes espirituais, já publicou diversas obras psicografadas. Algumas delas ele atribui à presença do espírito de Dom Helder Câmara. Quando preparou seu primeiro livro psicografado, atribuído a Dom Helder Câmara, já falecido, solicitou-me o prefácio, e a apresentação ao Monge escritor Marcelo Barros. Ecumenicamente aceitamos, explicando ao autor que nossa interpretação não seria kardecista. O Autor, pessoa culta, espiritual, religiosamente ecumênica, me disse: “não importa, pode interpretar como quiser”. E isto aconteceu. Nem eu, nem Marcelo Barros julgamos necessária a presença real do espírito de Dom Helder para que o Autor do livro, “Novas Utopias”, o psicografasse. O que a mim muito admirou foi a capacidade espiritual do Autor em produzir um tal livro referente a Dom Helder. O seu subconsciente deveria estar pleno de conteúdos e admiração pelo grande Dom Helder. Com certeza tinha muito mais de Dom Helder em seu interior do que a maioria dos que se consideram herderianos. Por isto, é espantoso que, agora, apareçam tantas lamentações e espantos, principalmente na internet, diante do fato de um teólogo e um monge católicos terem aceito prefaciar e apresentar um livro mediúnico. Todos estes espantados parecem-me desonestos, pois, com certeza, não leram nem o prefácio, nem a apresentação do livro, e muito menos o próprio livro para nos criticarem e condenarem.
Inácio Strieder é professor de filosofia-Recife-PE