Em busca da identidade

EM BUSCA DA IDENTIDADE

Antônio Mesquita Galvão

Eu o consagrei para fazer de você um profeta das nações (Jr 1, 5).

Há tempos eu programei uma viagem a Buenos Aires, Argentina. Ao chegar ao balcão da Polícia Federal, no Aeroporto de Porto Alegre, fui barrado pelo agente, sob a informação que a minha Carteira de Identidade (o popular RG) era falsa. Na verdade, não se tratava de um documento “falso”, mas de uma cópia xerográfica que tirei da cédula original, para preservá-la. Mas na hora da conferência a carteira não passou na análise do fiscal.

Resultado: tive que voltar em casa, numa disparada, para buscar a “verdadeira”, ou seja: o documento original. Ainda bem que minha casa ficava próxima ao aeroporto, senão teria perdido o vôo. Às vezes, por problemas de identidade a gente acaba se perdendo, ou perdendo o bonde da história...

Tempos depois, fui convidado a assessorar um grupo de pessoas, agrupado em um tipo de “movimento” ou “conselho” cujo papel era dar uma assistência leiga à hierarquia religiosa da Igreja. Esta relação, por uma questão de identidade, estava desgastada por conflitos e desencontros e não logrando atingir a eficácia desejada pelos participantes.

Recordo que durante a maior parte do tempo da conferência falei com as minhas duas carteiras de identidade na mão: a original e a cópia, para me reportar à identidade social verdadeira e à indevida, no trato da questão da assistência que o grupo desejava prestar à Igreja e aos padres. A tônica da minha alocução esteve focada na necessidade da descoberta da finalidade do grupo, descoberta essa que deveria passar invariavelmente pela busca de uma identidade, do tipo “quem somos?” e mais precisamente “o que queremos?”. Na prática, tentei deixar claro que identidade é um valor impar que não admite meios-termos: ou vale ou não vale. Ou é verdadeiro ou é falso.

No “princípio da identidade” da filosofia aprendemos, a partir do que preconizou a lógica de Aristóteles que “o que é, é; o que não é, não é”. Embora pareça um jogo de palavras, a coisa, no que tange à identidade, a partir do postulado do estagirita, é tão simples que chega a parecer simplório. Ou é, ou não é. Dentro desse princípio, identidade – e os dicionários de filosofia no-lo revelam – aponta para o caráter do que é idêntico, ou seja único, embora percebido ou designado de várias maneiras.

Sob esse aspecto, conceitualmente falando, identidade é o conjunto de caracteres próprios e exclusivos com os quais se podem diferenciar pessoas, animais, plantas e objetos inanimados uns dos outros, quer diante do conjunto das diversidades, quer ante seus semelhantes, ou conjunto de características e circunstâncias que distinguem uma pessoa ou uma coisa e graças às quais é possível individualizá-la.

Sua conceituação interessa a vários ramos do conhecimento (filosofia, história, sociologia, antropologia, direito, etc.), e tem portanto diversas definições, conforme o enfoque que se lhe dê, podendo ainda haver uma identidade individual ou coletiva, falsa ou verdadeira, presumida ou ideal, perdida ou resgatada. Identidade ainda pode ser uma construção legal, e portanto traduzida em sinais, papéis e documentos formais, que acompanham o indivíduo. É nesse campo que ela se torna o diferencial da personalidade de cada um.

O verbete identidade, surge na psicologia como um juízo que designa a unidade do indivíduo que tem o sentimento de permanecer parecido consigo mesmo pela diversidade de estados por que passa em sua existência.

No terreno da filosofia, a identidade constitui objeto de cogitações por variados pensadores e correntes filosóficas, e seu conceito varia, portanto, de acordo com os mesmos, bem como, de acordo com cada época e cultura da sociedade humana. Os filósofos, antigos e modernos sempre tiveram (e têm) enfatizado a necessidade (e a importância) de que as relações humanas sejam pautadas por uma definição do papel de cada grupo ou escola de pensamento. A identidade sempre pressupõe um objetivo, uma práxis definida.

Para a sociologia, possuir identidade é compartilhar das várias idéias e ideais de um determinado grupo social. Alguns autores da matéria em questão, como o sociólogo húngaro-judeu Carl Mannhein († 1947), elaboraram um conceito em que o indivíduo forma sua personalidade, mas também recebe influências do meio, onde realiza sua interação social.

Nesse contexto vemos a identidade social como aquela sensação de descobrimento do que é e o que faz cada indivíduo, quando se realiza a partir do momento que é dotado de cultura.. Esta afirmação de identidade social sempre parte da memória de cada indivíduo onde e quando faz uma análise sobre si.

Quais as implicações políticas de conceitos como diferença, identidade, diversidade, alteridade? O que está em jogo em um processo de identidade? Como se configuraria uma pedagogia e um currículo que estivessem centrados não na diversidade, mas na diferença, concebida como processo, uma pedagogia e um currículo que não se limitassem a celebrar a identidade e a diferença, mas que buscassem problematizá-las?

Quando o ser humano, homem ou mulher, nasce, passa a interagir com diferentes grupos sociais e instituições que lhe exprimem valores e padrões de comportamento. A este processo, damos o nome de socialização, onde cada ser humano realiza de uma forma diferente e assimila as informações a sua maneira. A identidade social (coletiva) se associa com a identificação pessoal do indivíduo a um grupo particular e a diferenciação dos demais.

No caso específico que hoje nos propomos a tratar, podemos perquirir a qualidade da identidade de nossa vocação pessoal, social, familiar ou religiosa. Como nos identificamos com os ideais que norteiam nossas opções de vida? É a partir desse questionamento que vamos colher argumentos para avaliar nossa caminhada e rever etapas do nosso agir.

Com o que nos identificamos? Com alguma vocação específica? Com um desejo de superação? Com necessidades de sobrevivência? Identidade para nós é uma ocasião de crescimento ou apenas uma rotina massificante? Quais as ferramentas que empregamos para alicerçar a idenificação com os nossos objetivos? O saber? O carisma? A doação? Ou, quem sabe, a persistência? É interessante observar que, na mecânica das relizações humanas, todos estes fatores são importantes e, agrupados podem nos conduzir ao projeto inicialmente sonhado. É salutar lembrar que arrogância, prepotência e vaidade não constroem identidade.

Como pastores, professores, evangelizadores e multiplicadores da moral do Reino, precisamos estar identificados com o profetismo que organiza nosso ser e nosso agir. Nessa conjuntura, porém, é salutar que cada um de nós busque uma identificação com a tarefa missionária para a qual fomos vocacionados. É impossível seguir uma vocação se não houver uma identidade com o objetivo pastroral de cada um. Essa identificação como meta de cada um serve como o elemento que caracteriza e explicita o sentido que cada indivíduo confere à sua vida, à sua missão e ao modo de se conduzir.

Nós sabemos, pela filosofia, que a identidade e a diferença são o resultado de um processo de produção simbólica e discursiva. O processo de adiamento e diferenciação lingüísticos por meio do qual elas são produzidas está longe, entretanto, de ser simétrico. A identidade, tal como a diferença, é uma relação social. Isso significa que sua definição – discursiva e lingüística – está sujeita a vetores de força, a relações de poder e a outros esquemas das estruturas sociais.

Essas características não são simplesmente definidas; elas são impostas. Elas não convivem harmoniosamente, lado a lado, em um campo sem hierarquias; elas são disputadas. Mais que um símbolo – que não se explica – a identidade aponta para uma realidade integrada ao que é próprio do ser.

Sêneca, um filósofo romano do século I de nossa era, afirmou que “não existe vento favorável para o barco que desconhece seu porto de destino”. Isto equivale a dizer que quem não sabe para onde quer ir, que ignora seus objetivos de vida, quem não se identifica com seus propósitos, dificilmente irá a lugar algum.

Sob esse enfoque ressalta-se a necessidade de estipular nossas metas e fortificar o planejamento para que o previsto se realize. Ora, se eu tenho um objetivo de vida, mas não aloco recursos para atingi-lo, ou não me identifico com suas exigências, eu sou candidato a não ir a lugar nenhum.

Moisés e Pedro são dois expoentes do projeto de Deus, cada um ao seu tempo. O primeiro, na função de libertador do povo, na operação de resgate da escravidão do Egito, quando arrancou os hebreus das garras do imperialismo do faraó. O segundo, como alguém a quem ficou afeta a missão de coordenar a Igreja de Cristo que se iniciava, de forma ainda vacilante, após Pentecostes.

Há nestes dois chamamentos o vigor das vocações de Deus, de onde se destacam algumas atitudes e tipos bíblicos comuns a ambos os casos, indispensáveis ao discipulado e à caminhada: a) colocar-se de pé; b) rins cingidos; c) sandálias aos pés; d) vestir o manto; e) cajado na mão.

As mesmas coisas que o Senhor ordenou ao povo escolhido, antes da saída do Egito são praticamente os mesmos fatores recomendados pelo anjo a Pedro. O ato de colocar-se de pé, requerido aos dois, denota uma posição de disponibilidade, de em marcha. Igualmente, ter os rins cingidos revela uma atitude de prontidão. O povo do Oriente Médio tinha o cinto como um adereço estratégico. Ali pendurava uma bolsa com as moedas, um sabre ou punhal para a defesa e outras utilidades. Ninguém saia sem um cinto com essas utilidades.

A sandália aos pés era igualmente um indicativo de prontidão, bem como uma proteção para a jornada. A sandália era o calçado básico do povo, empregado para resguardar os pés em qualquer atividade. O cajado na mão funcionava às vezes como uma arma, e era o distintivo do caminhante, especialmente quem, como o povo que ia para o deserto em busca da liberdade. Tudo concorria para a consolidação da imagem do homem de Deus. Nada ali era simbólico ou pictórico, mas absolutamente real.

Enquanto o povo do êxodo tinha o cajado, Pedro usava um manto. Ambos significam proteção para quem vai dar início a uma caminhada: o povo pelo deserto, em direção à Terra Prometida; Pedro ia começar uma caminhada – que culminaria numa cruz em Roma – pelas trilhas do evangelho, que precisava ser anunciado a qualquer preço.

Quem se identifica com a missão para a qual foi chamado, se torna alguém que pode ser considerado, como os grandes homens (e mulheres) da Bíblia, alguém acima da média. Dentro desse raciocínio, a Bíblia fala (cf. Ez 14,13s) em três homens que se destacaram por estarem identificados com o desígnio de Deus: Noé, Jó e Daniel. O profeta Daniel dá a receita para viver acima da média.

 ser um homem justo;

 ter retidão (integridade) de caráter;

 demonstrar fidelidade ao projeto de Deus;

 construir relacionamentos;

 conviver com os opositores.

Aquele que é identificado com a vocação e a missão que Deus lhe confiou, não se deixa vencer pela preguiça, pelo desânimo, pela corrupção, pelo desespero e pela falta de fé. O homem justo, fiel aos princípios de sua missão é quem obedece e se submete a Deus. Ele cumpre aquilo a que se comprometeu.

Nas atividades mais simples da vida humana, vemos a importância dessa identificação. No esporte, por exemplo, o time busca uma identificação com a torcida; o padrão de jogo ainda não possui uma identidade que possa entusiasmar a direção e a torcida. Um cronista perguntou: “depois de um ano de experiências, onde está a identidade da nossa seleção?”.

No campo do drama pessoal, vi uma mulher que chorava porque considerava que a cirurgia que realizou para a retirada de uma mama prejudicou a identidade de sua feminilidade. Em tudo aparece a identidade emblematicamente como um fator de equilíbrio e de segurança.

Já sabemos que a identidade e a diferença estão estreitamente ligadas a sistemas de significação. A identidade possui um significado cultural, pragmático e socialmente atribuído. A teoria cultural recente expressa essa mesma idéia por meio do conceito de representação. Para a cultura contemporânea, a identidade e a diferença estão estreitamente associadas a sistemas de representação. A identidade, como a teoria dos símbolos, contemplada pelos postulados da semiótica, sempre tende a representar alguma coisa, no indivíduo ou na sociedade humana.

Por conta dessa representação no campo social, sempre cabem algumas questões, como, por exemplo: Quem é você? Você está identificado com a sua missão? Onde seus sonhos e ideais são capazes de conduzi-lo?

Sabendo-se que a identificação produz alguém que partilha necessidades, expectativas, ideais, lutas e vitórias, é de se perguntar no que é possível enxergar algum tipo de compromisso em nosso modo de desenvolver uma vocação? As outras pessoas são capazes de enxergar esse diferencial em nós? Nossa vocação é convincente e comunicante? É capaz de motivar e entusiasmar alguém?

O chamado de Jesus aos apóstolos de todos os tempos requer a observação de algumas exigências, pois sempre há certos cuidados que não podem ser esquecidos para o sucesso e a eficácia da missão. Um desses cuidados se refere ao compromisso. Para partir em missão a pessoa deve estar comprometida com a causa do Reino. Uma caminhada, baseada em vocação e identidade sempre começa com um primeiro passo; um vigoroso e discernido primeiro passo.

O Senhor escolheu outros setenta e dois discípulos, e os enviou dois a dois, na sua frente, para toda cidade e lugar aonde ele próprio devia ir. E lhes dizia: “A colheita é grande, mas os trabalhadores são poucos. Por isso peçam ao dono da colheita que mande trabalhadores para a colheita. Vão! Estou enviando vocês como cordeiros para o meio de lobos. Não levem bolsa, nem sacola...” (Lc 10,1-4).

Questões para orientar debate em grupo

1. Quais as características que identificam minha vocação?

2. Por que a eficácia da missão se subordina à identidade?

3. O que vale mais no processo de identidade? A sabedoria ou o

carisma?

4. Em que podemos enriquecer nossa busca de identidade

vocacional?

5 Qual a forma de corrigir uma trajetória onde a identidade ainda

não esteja bem clara?

No aspecto pastoral, no que se refere ao vocacionado, o processo de produção da identidade oscila entre dois movimentos: de um lado, estão aqueles processos que tendem a fixar e a estabilizar a identidade; de outro, os processos que tendem a subvertê-Ia e a desgastá-Ia. O grande inimigo de nossa caminhada está na perda dos referenciais da identidade. Sem eles nos tornamos presas fáceis de todas as ameaças e perigosamente tendentes a quaisquer descaminhos.

O autor é Filósofo, Escritor e Doutor em Teologia Moral. Este texto é um excerto de um retiro pregado em novembro/2011 a um grupo de padres, no Mato Grosso do Sul.