PRIMALEÓN: LITERATURA MEDIEVAL E OS GIGANTES DA PATAGÔNIA
Durante a preparação de um simples exercício literário, terminei entrelaçada nas grandes novelas de cavalarias luso-espanhola do sec. XVI.
Realizei uma viagem até o ano de 1500. Cruzei os caminhos do Estreito de Magalhães. Encontrei-me frente a frente com gigantes, e incessantemente procurei a resposta para aquela “desconhecida figura” no mesmo livro que tanto interesse despertava em Fernão de Magalhães:Primaleón.
Por que uma literatura escrita em 1512, cuja narrativa se trata das grandes batalhas européias, reis, monstros e seres mitológicos, todavia seria tão vigente para as investigações por parte de Antropólogos, Historiadores e Lingüistas? A razão é simples: este livro foi apreciado por esse estrategista e explorador, e nele é possível encontrar relevantes pistas que identificaram a identidade cultural do nome da Patagônia.
Tudo começou com uma instrução objetiva: o exercício literário consistia em escolher uma etnia indígena pertencente ao território chileno, investigar uma palavra que fizesse parte do dialeto de dito grupo e elaborar um texto inferior a quinze linhas contanto sobre a história desse povo.
Para este trabalho, meu interesse voltou-se para os Selk’nam, também conhecidos pelo nome de Onas, etnia indígena que habitou esse território no extremo da América do Sul.
A partir de tudo que pude ler e investigar, nasceu meu texto:
VENTRE DE “Nah”
“Nah”(1), assim te chamavam porque era filha legitima da entranha sul-americana.
No teu ventre engendravas sementes de “Selk’nam”(2), homens gigantes para os olhos europeus, que surpreendidos deram o nome deste solo da Patagônia.(7)
Com tuas mãos de “Nah”, transformaste os guanacos(3) na principal proteção para o corpo e os pés do teu povo. No entanto, foi um frágil escudo para a cobiça dos navegantes, vorazes por conquistar todos os cantos do mundo.
Pro teu povo, maldito foi o dia que Fernão de Magalhães descobriu os caminhos do estreito (4) e avistou vossas fogueiras, transformando a fumaça em sangramento. Nascia assim a Terra do Fogo. (5)
“Nah”, nada pudeste fazer para que não tivesse que entregar a cabeça dos teus filhos ao genocídio. Grande foi esta dor, mas como tu já não estás, nós estamos esquecendo do teu choro. (6)
(1)Nah, ou Naa, significa “MULHER”, palavra de origem indígena do grupo dos Selk’nam (Onas).
(2)O primeiro contato (indireto) entre os Selk’nam e os colonizadores da expedição de Fernão de Magalhães ocorreu em 1520.
(3)O guanaco é um animal que representa e sintetiza o modo de viver desses grupos indígenas da zona austral. A carne era uma das principais fontes de alimento. Dada as baixas temperaturas da região, a pele era usada para a confecção de mantas e calçados.
(4)Há interessantes registros narrando as aventuras e os percalços que enfrentou Fernão de Magalhães durante a travessia pelo estreito que une o mar Atlântico ao Pacifico.
(5)Em 1520, durante a travessia das embarcações dirigidas por Fernão de Magalhães, estando os grupos dos Selk’nam nas Ilhas, eles acenderam muitas fogueiras como forma de dar um sinal de alerta e emergência entre as tribos. Desde as caravelas, os exploradores não tiveram contato direto com os nativos, mas sim ficaram observando aquela grande quantidade de fumaça, associando-a logicamente ao fogo. Daí a origem do nome de uma parte dessa região: Terra do Fogo.
(6)As últimas mulheres de origem pura de sangue Selk’nam, Lola Kispja e Angela Luij, faleceram respectivamente em 1966 e 1974.
(7)Há varias hipóteses que justificam o nome da região da Patagônia, porem especificarei somente as duas que tem respaldo dos estudos dos antropólogos, historiadores e lingüistas. Uma delas, a última que vem sendo defendida por alguns antropólogos, tem relação com um profundo estudo da língua dos Selk’nam. Mas prefiro deixar a etimologia de lado. O que verdadeiramente saboreei foi a linha de investigação sobre o livro Primaleón. Os Palmerines foram um ciclo de livros escritos com a participação de autores espanhóis e posteriormente deu-se a continuidade com os autores portugueses. Trata-se de uma narração do gênero “livros de cavalarias” cujos protagonistas são heróis perfeitos, donzelas e lutas contra seres mitológicos. Um desses livros foi conhecido pelo nome de Primaleón. Há interessantes investigações quanto a verdadeira origem de todos esses livros (quantos foram obras originais e quantos foram simplesmente traduções de textos gregos; escritoras que se esconderam detrás de pseudônimos masculinos, etc.) , mas por tempo do leitor não me deterei nisso. Meu interesse estava em encontrar a descrição especifica desse ser “O GIGANTE PATAGON”, personagem dessa obra literária. Finalmente pude encontrá-lo: “la pieza más exótica de este catálogo de prodigios y maravillas primaleoniano la constituye sin duda el Gran Patagón, un monstruo salvaje combinación de diferentes animales”. Nesse mesmo livro há outras referencias de outros gigantes, todos seres antropófagos e antropomorfos.
Voltemos ao tempo. Imaginemos o que pensou Fernão de Magalhães no preciso momento em que estando na região da Patagônia quando ele se encontra frente a frente por primeira vez com as tribos dos Selk’nam, homens extremamente fortes, robustos, muito altos, com uma altura média de 1.80, vestidos com pesadas mantas de pele de guanaco e com rostos pintados da cor vermelha. Essa é a linha de investigação de reconhecidos antropólogos: Fernão de Magalhães, aficionado pela leitura dos Palmerines, teria realizado uma comparação do GIGANTE PATAGON (do livro Primaleon) com aqueles grandes nativos, chamando-os de PATAGONES.
O desejo de recriar essa passagem da história não é assunto de interesse coletivo. Ao terminar de ler essas linhas, quiçá, o caro leitor estará pensando que talvez eu tenha entrado num estado de puro delírio. Mas pra tudo nessa vida há uma explicação psicológica (freudiana, junguiana...). Respondo-lhe a tamanha infâmia, aproveitarei o dito popular que magistralmente foi recriado no livro “Cinqüenta e uma crônicas”, pelo escritor Gilberto Dantas: hoje eu me levantei da cama e me bateu “O Estalo de Vieira”.
Biografia:
Bridges, Lucas. El último confín de la tierra.
Chapman, Anne. Los selk'nam: la vida de los onas.
MARÍN PINA, Mª Carmen, Introduccion a Primaleón, edición (1998)