Viver é lidar com representações

Em pleno século XVIII, o Século das Luzes, um filósofo colocaria em dúvida as convicções obtidas a partir da filosofia cartesiana e dos ideais iluministas. Esse filósofo é o empirista escocês David Hume, elaborador de uma intrigante filosofia que colocou em estado de suspeição muitas afirmações tidas como inquestionáveis. David Hume foi, antes de tudo, um anti-dogmático, ao rejeitar a validade das afirmações que não tinham como base a experiência sensível. Hume dividiu as nossas percepções em duas classes distintas e usou como critério de distinção o grau de força e vivacidade de cada uma delas. À primeira dessas classes de percepção, Hume deu o nome de “impressões” e à segunda, denominou “ideias”. Na primeira classe, estão as percepções mais fortes e mais vivazes, uma vez que se constituem no momento da experiência; na segunda classe, estão as percepções mais fracas e menos vivazes, pois derivam das primeiras, de maneira que não há ideia na mente, que não dependa da experiência. Isso implica na impossibilidade de afirmamos a existência de ideias inatas e dos conceitos da metafísica.

Hume, no entanto, não se limitou a criticar a metafísica, colocou em dúvida também as nossas relações causais, por intermédio das quais formamos o nosso conhecimento, o que faz dele, além de empirista, também cético. Isso quer dizer que quando pensamos ou agimos, não estamos, necessariamente, agindo devido a um processo racional e elaborado, geralmente estamos apenas reproduzindo hábitos arraigados que, ao invés de controlarmos, nos controlam. Por exemplo, quando percebemos que o tempo fora de nossa casa está frio e colocamos um agasalho antes de sair, o fazemos mecanicamente, sem uma reflexão consciente sobre a nossa atitude. Isto não representa, a princípio, nenhum problema. No entanto, nos faz viver sempre de forma mecânica, em função de nossas expectativas, o que torna difícil perceber algo com um novo olhar.

As conclusões de Hume provocaram um profundo mal estar em outro filósofo de sua época, o pensador alemão Immanuel Kant, que, provocado pelo ceticismo do primeiro, produziu o mais importante sistema filosófico da modernidade.

Kant, depois de ler as conclusões céticas de Hume, afirmou que as mesmas o haviam despertado do “sono dogmático” ou “sono metafísico”: a crença, sem uma análise mais profunda, nos fundamentos do pensamento filosófico antigo, tais como a “Teoria da ideias”, de Platão e a noção de “substância”, no pensamento aristotélico. Kant entendeu a profundidade da crítica de Hume, que colocara dois dos maiores filósofos da antiguidade na condição de dogmáticos, pois não demonstraram as suas afirmações. Kant vislumbrou uma grande tarefa, pois, mesmo reconhecendo o alto valor da crítica humeana, estava convicto da existência de elementos capazes de sustentar uma filosofia não empírica e, ao mesmo tempo, não dogmática, ou seja, que pudesse ser racionalmente demonstrada. Esse é, portanto, o tema de sua principal obra, a Crítica da Razão Pura.

Kant denominou “revolução copernicana na filosofia” o ponto de partida de sua crítica, que é uma inversão na ordem do conhecimento, pois passa a tomar como ponto central não mais o objeto – não necessariamente o objeto no sentido material do termo, mas o objeto do conhecimento – e sim o sujeito. Kant se serviu da expressão devido à mudança proposta na física e na astronomia por Copérnico, que substituiu o modelo geocêntrico, de Ptolomeu, pelo heliocêntrico, causando uma mudança sem precedentes na nossa percepção do Universo e de nós mesmos.

Apesar da importância e profundidade da crítica feita por Kant, ela não recebeu, fora dos limites acadêmicos, o devido reconhecimento. A compreensão do alcance da crítica kantiana bastaria para mudar toda a nossa maneira de interpretar o mundo e não seria exagero afirmar que ela mereceria um lugar entre aquelas que Freud chamou de “grandes feridas narcisistas na cultura ocidental”, como evidencia a citação abaixo, de Foucault: “Segundo Freud, há três grandes feridas narcisistas na cultura ocidental: a ferida imposta por Copérnico; a feita por Darwin (...); e a ferida ocasionada por Freud quando ele mesmo, por sua vez, descobriu que a consciência nasce da inconsciência”.*

Não seria exagero afirmar que não são apenas três as feridas, mas quatro e uma delas foi imposta por Kant, ao afirmar que jamais poderemos, com as nossas faculdades fundamentais, conhecer o mundo como ele realmente é, mas sim como ele “parece” ser. Em outras palavras: o que nos afeta só pode ser conhecido a partir de representações que são o resultado do contato da realidade com as limitações impostas pela nossa própria capacidade de conhecer. O nosso mundo é, portanto, um mundo de representações, nas quais procuramos uma ordem e às quais buscamos acrescentar algum sentido. A este processo, denominamos Vida.

* FOUCAULT. M., Nietzsche, Freud e Marx.

Citações pertinentes:

A Faculdade do desejo é a faculdade de mediante as próprias representações ser a causa dos objetos dessas representações. A faculdade de um ser atuar em conformidade com suas representações é denominada vida. (Immanuel Kant, A Metafísica dos Costumes)

É como se a vida do organismo se movimentasse num ritmo vacilante. Certo grupo de instintos se precipita como que para atingir o objetivo final da vida tão rapidamente quanto possível, mas, quando determinada etapa no avanço foi alcançada, o outro grupo atira-se para trás até um certo ponto, a fim de efetuar nova saída e prolongar assim a jornada. (Sigmund Freud, Além do princípio de prazer)

Paulo Irineu Barreto
Enviado por Paulo Irineu Barreto em 27/08/2011
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