O IMAGINÁRIO RELIGIOSO

Desde que o ser humano começou a deixar registros de sua existência, através de sinais e inscrições rupestres, sempre testemunhou sua rica capacidade de imaginação. Já antes da escrita, deixou desenhos de búfalos e outros animais, por ele caçados, em grutas. Em paredões rochosos pelo mundo a fora esculpiu múltiplos símbolos e figuras antropomórficas. Uma vez inventada a escrita, o homem registra o seu imaginário em relatos míticos sobre o mundo, os homens e suas divindades. Além do mundo visível, imagina um mundo invisível repleto de entidades, espíritos, forças e poderes misteriosos, que interferem em seu dia-a-dia. Para conviver pacificamente com este mundo oculto, no qual ele também imagina entrar depois de sua vida terrena, cria rituais religiosos. Imagina poder interferir neste mundo invisível, por cima de sua cabeça, acalmando ou tornando as entidades daquele mundo benéficas, ou, ao menos, neutralizando seus poderes maléficos. O imaginário do homem, em sua vida terrena sofrida, se sente rompido, e mesmo expulso do mundo invisível das entidades espirituais, que atormentam seus sonhos, alimentam suas esperanças, o induzem à prática do bem ou o arrastam ao mal. Frente a tais compreensões, até alguns filósofos imaginam que o homem entrou neste mundo tendo sido expulso do mundo espiritual perfeito. Por algum malfeito, o espírito do homem teria sido expulso do mundo espiritual, e obrigado a se encarnar neste mundo de maldades. Assim, o homem entende que esta vida encarnada é um castigo. Se sente expulso dum paraíso, para o qual sua alma almeja voltar depois de cumprida a pena que lhe foi imposta. Através de ritos, cultos, rezas, sacrifícios imagina poder estabelecer uma ponte entre seu mundo real físico e o mundo espiritual perdido. Busca já agora religar-se ao mundo que o espera depois da morte. Para isto reúne suas crenças, suas superstições, seus ritos, suas rezas, seus feitiços em um sistema, que é sua religião (sua re-ligação, sua re-leitura, sua interpretação dos fatos do mundo de sua vida). E como cada cultura, e cada época histórica, nas diversas regiões da terra, fazem experiências de vida diferentes, surgem as múltiplas formas religiosas. Estudando este mundo religioso, constata-se a prodigiosa capacidade imaginativa do homem. Aparecem mil mitos e mil ritos. O mundo do imaginário humano é riquíssimo. A nossa linguagem, mesmo a tecnológica, se alimenta dele, os poetas se inspiram nele. E alguns linguistas nos garantem que mais de 50% do conteúdo das palavras que usamos no dia-a-dia provém do mundo imaginado. Muitos imaginam que seus discursos, suas conversas retratam o mundo real, quando, na verdade, mais da metade do que dizem é ficção, fruto de sua imaginação. E especialmente fértil em imaginação é a linguagem dos poetas e dos religiosos. Mas o homem comum não é um ser que se orienta simplesmente por uma linguagem e por uma ação totalmente objetiva e racional. Ele precisa de se articular imaginativamente. Precisa de poesia e religião. Interessante que a tecnologia de hoje, especialmente a eletrônica, está alimentando fartamente o imaginário humano, através de tudo que oferece no mundo virtual. Talvez, por isto, tantos homens de hoje estejam deixando os ambientes da linguagem e dos ritos religiosos tradicionais, substituindo estes espaços sagrados pelos novos “templos” do imaginário virtual, onde também se constroem mundos imaginários, com gestos rituais diante das telas virtuais. Será que isto não é a substituição das religiões pré-virtuais?

Inácio Strieder é professor de filosofia- Recife-PE.