Sobre Cultura e Escravidão
Etimologicamente o termo cultura deriva do latim Cultus que nos remete ao ato de mexer a terra, sacudir, plantar. Para a antropologia cultura é o mesmo que trabalhar, formar e transformar as ações humanas. No vulgo chama-se de culto o homem dotado de cultura, ou seja, de polidez, de fineza, de espírito. Com efeito, não existe humanização sem cultura.
O mundo que conhecemos, resulta da ação humana e é um mundo que não mais podemos chamar de natural, pois se encontra cada vez mais humanizado, transformado pelo homem. A cultura, ao mesmo tempo que transforma a natureza, adaptando-a as necessidades humanas, altera o próprio homem, construindo e destruindo sua liberdade.
Pela cultura, o homem se diferencia dos animais. Enquanto o animal permanece sempre o mesmo na sua essência, quando repete os gestos comuns à sua espécie, o homem muda as maneiras pelas quais age sobre o mundo, estabelecendo relações também mutáveis, que por sua vez alteram sua maneira de perceber, de pensar, de sentir e de agir.
Por ser uma atividade especificamente humana, a cultura, permite que a convivência entre os homens, estabeleça princípios e fomente aprendizagens. Os avanços culturais enriquecem a razão dos humanos. É experimentado que a cultura norteia e dirime os efeitos naturais do homem. Segundo Ernest Cassirre, é pelas formas simbólicas que o homem produz a civilização e se define como um ser de cultura.
A condição da cultura humana fragiliza o homem, pois ele perde a segurança característica da vida animal, em harmonia com a natureza. Contudo, podemos afirmar que a cultura no homem é uma atividade que modifica o próprio homem sem melhorar sua natureza. Para os teólogos do século XX a cultura é condição de transcendência e, portanto, é a expressão máxima do poder de Deus na razão humana. Mas, porém, foi por compreender a importância da cultura que o homem inventou a escravidão para atingir lucro e poder.
Ao contrário do trabalho, a escravidão é uma atividade não remunerada e baseada no castigo, na ausência de direitos e desumanização. No contexto social de nossos tempos, não temos mais a escravidão que norteou todos os séculos da história humana, desde sua invenção na antiguidade. Mas, algo semelhante ocorre nos sistemas onde a divisão social privilegia alguns e submete a maioria a um trabalho imposto, rotineiro e nada criativo, sem rentabilidade, nem liberdade. Esse tipo de trabalho, ao invés de promover os direitos humanos do homem, destrói sua liberdade natural. A esse trabalho Karl Marx chamou de alienação em sua obra magistral: O Capital.
A escravidão antecede os cativeiros e as prisões. Os egípcios de todos os povos são pioneiros em manter sob custódia seus escravos. Quem não conseguisse pagar os impostos ao faraó, deveria como escravo, trabalhar na construção de obras de irrigação e armazenamento de cereais. Ainda no Egito os delitos considerados dignos de escravidão eram o endividamento, a inadimplência de impostos, o ser desobediente, o ser estrangeiro e o prisioneiro de guerra. Tais delitos custavam a liberdade do condenado ou conquistado e a pena para este ser humano era o estado de escravidão.
Assim como no Egito, na Grécia, na Pérsia, na Babilônia, o ato de escravizar, tinha como finalidade conter, manter sob custódia e tortura em regime de trabalho pesado os que cometiam dívidas, ou praticavam o que para a antiga civilização fosse considerado delito de escravidão. Do Oriente Médio veio a ideia de manter sob escravidão a prole do escravo, a estes deu-se o nome de filhos da servidão eterna.
Cultura e escravidão é um paradoxo da situação do homem na sociedade. Desde os primórdios do império romano estes dois temas implicam uma causa infinita ao conceito de justiça. A escravidão sob o aspecto de poder, sempre refletiu o monumento máximo de exclusão social, onde as realidades ocorridas em seu interior escondiam tratamentos cruéis, bestiais e desumanos. Normalmente situada em condições completamente desfavoráveis ao escravo, a escravidão deveria representar o símbolo do direito de punição de um Estado.
Contudo, a história do sistema escravocrata, foi tatuada pelo descaso, tanto com os que são escravos, como para com sua própria família. Hoje em dia não existe escravidão. Existe alienação. Mas não como sanção penal, mesmo porque não existe nenhum código que regulamenta essa ação social. O ato de escravizar hoje em dia não tem mais caráter de prisão e sim de pena, da perda de garantias e direitos pela ausência de capital. Não se submeter ao domínio físico dos impostos, das taxas, das leis de consumo e alienação, ainda hoje, nos bane da sociedade e nos faz perder a condição de escravos, o que é culturalmente útil para a sociedade e entrarmos para a condição de foras da lei, o que é punível.
Os Evangelhos não colocam na boca de Jesus Cristo nem uma só palavra que lembre ao gênero humano como se deve tratar os escravos. Nada é dito pelos apóstolos, nem pelos primeiros padres da Igreja. Nos dias de hoje discute-se muito a situação do trabalho escravo e seus direitos humanos. Por outro lado discute-se também o lado dos lucros, do poder e da cultura que é a origem da eterna escravidão. Quando o Brasil entrou no mundo do escravismo em fins do século XVI, o padre Antônio Vieira, exortou aos Portugueses, como viviam os negros no doce inferno dos engenhos de açúcar do Brasil. Assim termino este artigo, citando Padre Antônio Vieira, que dispensa comentários, ele assim diz em seu sermão sobre a Paixão de Cristo:
“A vida do escravo semelha-se a Paixão de Cristo. Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado, porque padeceis em um modo muito semelhante o que o mesmo Senhor padeceu na sua cruz, e em toda a sua paixão. A sua cruz foi composta de dois madeiros, e a vossa em um engenho é de três. Também ali não faltaram as canas, porque duas vezes entraram na Paixão: uma vez servindo para o cetro de escárnio, e outra vez para a esponja em que lhe deram fel. A paixão de Cristo parte foi de noite sem dormir, parte foi de dia sem descansar, e tais são as vossas noites e os vossos dias. Cristo despido, e vós despidos. Cristo sem comer, e vós maltratados em tudo (...) Eles (os senhores) mandam e vós servis; eles gozam o fruto de vossos trabalhos e o que vós colheis deles é um trabalho sobre outro. Não há trabalhos mais doces que a das vossas oficinas (o açúcar); mas toda essa doçura para quem é. Sois como abelhas, de quem disse o poeta. Sic vos non vobis mellificates apes .”
Durval Baranowske, Filósofo e Escritor