A “BENÇA”, MESTRE BULE BULE

Era o inverno de 2002, por volta de 1h da madrugada. Estava seguindo do bairro do Inoocop, para o Gravatá, na “onze” (não é mentira não, nessa época andávamos a pé pelas ruas de “Camaça”, sem muitas preocupações quanto à segurança pública). Já tinha vencido, com alguns ziguezagues, a Rua Francisco Drumond, a Praça Abrantes e estava no final da Radial B (pensei em tomar a “saidera” no Castelinho, mas, graças a Abba Pai, fui contido pela falta de chelpa), quando, logo após o posto BR, num pequeno boteco antes do Tambor Lascado, passei a ouvi uma viola muito familiar, até então apenas aos ouvidos. Pensei estar tendo alucinações em decorrência da breja que havia ajudado a dar cabo no aniversário de uma saudosa colega, mas os meus olhos me convenceram que não, quando cheguei à frente do pequeno bar.

Viola por entre as pernas, barba e chapéu de couro característicos, platéia miúda e de gente simples. Lá estava o Mestre Bule Bule e seu fiel escudeiro Antônio Queiroz. Mal podia acreditar que o estava vendo pessoalmente, pois eu sempre imaginei, não sei por que cargas d´água, que este fosse uma personalidade televisiva, que só poderíamos vê-lo de longe, nos palcos. Lembro-me que o tinha assistido poucos dias antes, num programa da TV Educativa da Bahia e que já o admirava dos cordéis, cocos, forrós e sambas, os quais aprendi, desde cedo, em minhas andanças pelo sertão baiano.

Sentei-me à mesa, em frente à dupla, e apenas passei a admirar os cantadores, com um sorriso no canto da boca e um agradecimento no peito aos deuses da cultura por ter-me proporcionado tal graça. Foi-me oferecida uma cerveja – o que aceitei prontamente –, mas logo me lembrei da falta do dinheiro e recusei, em seguida. Nesse momento, Bule já estava pegando o gancho e mandando seu recado para mim, em forma de repente muito bem improvisado, como é de sua magistral característica. A “dona” do bar retornou e me disse: “só por que você gosta de meu compadre Bule Bule, não vai pagar no meu bar”. Coisa dos deuses mesmo! Deve ter sido um acordo entre Orfeu e Baco, só posso crer nisso – risos!

Pouco antes das 3h, o Mestre se despediu de todos e saiu por uma porta que ficava nos fundos do bar, onde iria descansar. Vendo aquela cena, passei a meditar sobre o verdadeiro propósito dos mestres de cultura popular, tal qual o velho menestrel. A riqueza produzida por aquele espetáculo estava em apenas abrir seu peito para a arte e pessoas simples que o estavam a aplaudir, depois de cada rima. Simples e maravilhoso assim! Como sinto por todos aqueles que não conseguem se emocionar com uma cena como esta. Pena!

Bom, desde então, passei a cultivar um carinho especial pelo Mestre. Tinha em meu bojo de amigos algumas pessoas que o conhecia e que, mais tarde, se encarregariam de nos apresentar formalmente. Nesta época, a “galera da cultura” se reunia em minha singela casa, na Rua Terra II. Lá tivemos momentos ímpares de puro prazer em nos encontrarmos e reunirmos as nossas utopias (coisa de quem queria mudar a nossa cidade. Quiçá o mundo!).

Meu encontro ritual com Bule Bule se deu logo em seguida, em uma apresentação realizada em Camaçari. Desde então, tive o privilégio de estar ao seu lado em diversos outros espetáculos, tanto em Camaça, quanto em Salvador, Santo Amaro, Feira de Santana e, um dos momentos mais sublimes, Antônio Cardoso, sua cidade natal, quando também conheci a sua mãe, a finada Dona Isabel.

Nos tornamos amigos. Um verdadeiro privilégio, pois não é para qualquer um ter alguém como ídolo e referência e fazer parte do círculo de amizades deste.

Falar sobre suas qualidades, citar algum pensamento, ou poema marcante, cantarolar uma de suas pérolas musicais é chover em terra molhada, pois eu digo, sem medo de me equivocar, que Bule Bule é uma das maiores referências em cultura popular do Brasil. Tão ou mais importante quanto os mais “letrados” imortais.

Em 2010, o Grupo de Capoeira Regional Porto da Barra, através das Crianças Cabeludas do Parque das Mangabas, realizou uma justíssima homenagem a ele, por reconhecimento ao imenso valor cultural que este representa para o nosso estado e país (pouco, se comparado ao muito feito por ele, é verdade). Em minha fala, no momento da entrega da placa, eu dizia que “a maior homenagem que poderia prestá-lo, era perpetuar a obra do Mestre entre todas aquelas crianças ali presentes”. Acho que é assim que quero homenageá-lo enquanto eu viver, levando um pouco de sua sabedoria em todos os lugares que for, falando sobre sua importância, divulgando a sua obra, ensinando as minhas – nossas – crianças que nosso país é muito rico em cultura, mas que temos que zelar por ela, para que não se perca no fio do aço das “novas ondas”.

Neste Brasil velho, cheio de ladeiras e buracos, aprendi que não podemos, jamais, pisar no futuro, esquecendo do passado. Em se tratando de Bule Bule, ele é bem mais que presente, é futuro! Ele está ali na Piaçaveira, está nos mais diversificados palcos de cidadezinha, ou metrópoles brasileiras, está no vai e vem do Lapão, nas Ruas de Camaçari, pois ele é cultura viva!

Como é bom poder homenageá-lo, olhando nos olhos!

Vida longa, Mestre!

Salve,

Caio Marcel Simões Souza (admcaio@gmail.com) é Administrador de Empresas e formado em Capoeira Regional, pelo Grupo de Capoeira Regional Porto da Barra. Também é responsável e mantenedor do Projeto Social Crianças Cabeludas, no bairro do Parque das Mangabas, Camaçari.

Artigo publicado no Portal Eletrônico Camaçari Agora: http://www.camacariagora.com.br/colunista.php?cod_colunista=17