Homossexualismo e homofobia nas Igrejas: por uma hermenêutica sensata
De início, um esclarecimento: não sou homossexual. O tema, portanto, será abordado do ponto de vista da hermenêutica bíblica, e nada tem a ver com qualquer tipo de "defesa de minorias".
Literalmente falando, a palavra "homossexualismo" não foi sequer mencionada em nenhum lugar da Bíblia. A homofobia, se defendida por religiosos, não passa de ilação ou no máximo interpretação particular, que se tornou prevalente após a vitória de uma facção cristã, responsável pela "proto-ortodoxia" no século II d.C.,, ou seja, forjadora da fundamentação que viria a fazer parte do chamado pensamento ortodoxo ("correto") que impôs suas teses às corrrentes outrora propagadas pelos "perdedores" (os "hereges") e, vitoriosa, ainda vige na atualidade. Um dos motivos para essa dominação é o fragoroso desconhecimento do laicato quanto a termos e expressões de fato contidos na bíblia.
A seguir, iremos direto ao assunto.
Em Levítico (18,22 e 20,13), considera-se uma "abominação" o homem que se deita com outro, "como se fosse mulher", referindo-se aqui ao coito anal. Não comenta sobre outras formas de relacionamento homoafetivo entre homens. Tampouco menciona uma linha sequer sobre a contrapartida feminina: refiro-me ao hipotético caso da mulher que se deita com outra como se fosse homem.
Ao que parece, apenas "deitar com o amigo" não representa necessariamente um pecado, na ausência de penetração. No livro Eclesiastes (4,11), inclusive, não se considera problema algum o fato de dois amigos "dormirem" juntinhos. Ao contrário, haveria até a vantagem de um aquecer o outro.
A expressão "sodomita", conforme traduções em línguas modernas, é puro anacronismo: não está nas Escrituras, e representa uma alusão indireta ao episódio de Sodoma, que envolveu Ló e sua família (Gn 19).
Convenhamos: se analisarmos esse relato, veremos que ele não parece enaltecer as virtudes humanas, e tem pouco a ver com o tema do homossexualismo, mas estupro e incesto envolvendo homens e mulheres. Ali, não somente Ló teria oferecido as filhas para serem violentadas no lugar dos “convidados” masculinos, mas elas próprias, posteriormente, teriam inebriado o pai e, cada uma, tido relações incestuosas com o ancião, que levariam à gravidez.
Nunca seria demais destacar que os textos bíblicos não devem ser lidos ao pé da letra, à maneira dos fundamentalistas. Costuma-se mencionar o texto em que Jesus teria afirmado não vir para destruir o Antigo Testamento, pois "nem um jota ou til se omitirá da Lei, até que tudo esteja cumprido" (Mateus 5,17-19). Há diversos exemplos adicionais, nesse sentido. Porém, se cumpríssemos literalmente todos os mandamentos veterotestamentários (mais de 600!), estaríamos submetidos a situações altamente insólitas, tais como beber águas amargas para descobrir se a mulher adulterou, consultar o destino através do urim e tumim (espécie de jogo de combinações ao azar) e preparar cinzas de uma novilha vermelha, a fim de purificar o ambiente e as pessoas, limpando os pecados!
No cânone neotestamentário, os termos gregos se referem a dois tipos de atitudes (1 Co 6,9): o "homem que pratica coito com outro homem" (arsenokóitês), e o "pervertido efeminado" (malakós). Em Mateus 11,8 e Lucas 7,25 a palavra "malakós" aparece para contrastar com o oposto da rusticidade de João Batista, e a tradução abranda para "homem vestido em roupas finas". A Bíblia de Jerusalém preferiu o termo "pederasta" para "arsenokóitês", lingüisticamente apropriado, mas que, imagino, os brasileiros não sabem exatamente o significado original ("prática sexual entre um homem e um rapaz mais jovem", de acordo com o Houaiss). A Bíblia dos Capuchinhos preferiu recorrer ao insatisfatório termo "sodomitas". De todo modo, parece que as traduções de maior respeitabilidade não trazem a palavra "homossexual".
Um importante princípio evangélico é "resistir à tentação". Ora, se o homem e a mulher têm de resistir à concupiscência para se tornarem puros e livres de pecado, por que não o homossexual?
O catecismo católico, prudentemente, informa que o problema crucial não está no homossexualismo, mas na prática de atos considerados “impuros”, hetero ou homossexuais. Por conseguinte, aquele que resiste plenamente à tentação, independente do que seja, poderia santificar-se. Impressionante, a constatação: praticamente ninguém comenta esse aspecto do "problema"...
Mas então, por que a celeuma e as demonstrações (veladas ou nem tanto) de homofobia da parte de religiosos? Afinal, se não quisermos homossexuais nas igrejas, por serem “impuros”, teremos que afastar boa fração dos demais seres humanos, posto que, comprovadamente, há muitos dentre eles que praticam atividades (sexuais ou não) consideradas “impuras” segundo os cânones das próprias igrejas, como por exemplo o adúltero, o caluniador, o que faz juízo precipitado, o que não pratica a caridade, o mentiroso etc.
Além disso, reza a bíblia, se você, caro (a) leitor (a) olhar para uma pessoa e desejá-la, mesmo que virtualmente, isso já é considerado pecado! Confira a frase atribuída a Jesus em Mateus (5,27): "Todo aquele que olha para uma mulher com desejo libidinoso já cometeu adultério com ela em seu coração". Cá entre nós, seres humanos, depois dos estudos psicológicos acerca da sexualidade, nenhuma pessoa poderia dizer que escapa a esse "pecado". Ninguém mesmo, nem o maior de todos os sacerdotes, nem a "santa mãezinha"...
Diante dessas premissas, quem seria capaz de, pretensamente com base nas escrituras, em sã consciência, e sem o risco de parecer o maior dos hipócritas, contestar a igual dignidade dos homossexuais, rechaçar-lhes os direitos de cidadania, ou até mesmo
obstaculizar sua presença nas igrejas?