A oração e o canto {SERMO CXVII)
A ORAÇÃO E O CANTO
Prof. Dr. Antônio Mesquita Galvão
Celebrem a Javé com a cítara,
Toquem para ele a harpa de dez cordas.
Cantem para ele um cântico novo,
Cantai-lhe com arte e com alma.
(Salmo 32).
Para começo de conversa é bom que se diga que a música litúrgica deve expressar um sentido puro de oração e louvor. Sendo chamada de “alma da liturgia” a música deve estar ligada à ação litúrgica e ao momento ao qual ela se destina.
O rei Davi era um músico ungido para louvar o poder de Deus. Desde a Antigüidade ele introduziu, através de seus salmos, a oração cantada. A palavra “salmo” vem de psalm (grego) e psalmus (latim), que é um louvor cantado ao som de um instrumento. Historicamente, psalm tem origem em mizmor (hebr.) que significa oração cantada, acompanhada de algum instrumento (em geral harpa). Por oração-cantada os salmos são a base por excelência do canto litúrgico.
Desde os remotos tempos do judaísmo, nossas origens religiosas, nós somos chamados a “cantar a glória de Deus”. Bento XVI recordou, em sua última visita à França, que o canto litúrgico deve estar à altura da Palavra que lhe foi confiada, afirmando que, desde sua origem, os mosteiros se configuraram como os lugares onde “sobreviviam tesouros da velha cultura e onde, a partir deles, ia-se formando pouco a pouco uma nova cultura”.
Os monges buscavam a Deus. Queriam passar do secundário ao essencial, ao que é apenas e verdadeiramente importante e confiável. Foi dito que sua orientação era “escatológica”. Que não há que entender em sentido cronológico do termo, como se mirassem ao fim do mundo ou à própria morte, mas existencialmente: detrás do provisório, buscavam o definitivo. Segundo Bento XVI, como eram cristãos, os monges não trilhavam uma expedição “por um deserto sem caminhos, uma busca para o vazio absoluto. Deus mesmo havia colocado sinais pelo caminho, inclusive havia traçado um caminho, tratava-se de encontrá-lo e segui-lo”.
Para captar plenamente a cultura da palavra, que pertence à essência da busca de Deus, temos de dar outro passo. A Palavra que abre o caminho da busca de Deus é ela própria o caminho, é uma Palavra que mira à comunidade. A Palavra não é um caminho apenas individual de uma imersão mística, mas introduz na comunhão com quantos caminham na fé. Há ainda outro passo importante: a Palavra de Deus nos introduz em conversação com Deus. O Deus que fala na Bíblia nos ensina como podemos falar com Ele.
Segundo alguns especialistas, o canto terá as mesmas características que tem a ação litúrgica, quando for a) memorial; b) orante; c) contemplativo; d) trinitário; e) cristológico; f) pascal; g) eclesial; h) eucarístico; i) narrativo; j) profético; k) histórico-salvífico.
A Palavra de Deus nos alcança, dentre tantas maneiras, através das palavras humanas. Deus nos fala através dos homens, mediante suas palavras e sua história. Nesse sentido, o Papa recordou que, para orar com a Palavra de Deus, “apenas pronunciar não é suficiente, requer-se a música”. Em São Bento, para a pregação e para o canto dos monges, a regra determinante é o que diz o Salmo: Coram angelis psallam Tibi, Domine – “Na presença dos anjos eu vos cantarei”. (cf. 138, 1).
Aqui se expressa a consciência de cantar na oração comunitária na presença de toda a corte celestial e, portanto, de estar expostos ao critério supremo: orar e cantar de modo que se possa estar unidos com a música dos espíritos sublimes que eram tidos como autores da harmonia do cosmos, da música das esferas. Os monges, com sua pregação e seu canto, hão de estar à altura da Palavra que lhes foi confiada, a sua exigência de verdadeira beleza. Deste modo,o canto só será litúrgico de fato quando expressar as características litúrgicas do ritual e do tempo litúrgico.
É dessa exigência intrínseca de falar e cantar a Deus com as palavras dadas por Ele que nasceu a grande música ocidental. Não se tratava de uma “criatividade” privada, na que o indivíduo ergue a si mesmo como um monumento, tomando como critério essencialmente a representação do próprio eu.
Tratava-se de reconhecer atentamente com os “ouvidos do coração” as leis intrínsecas da música da própria criação, das formas essenciais da música, postas pelo Criador em seu mundo e no homem, e encontrar assim a música digna de Deus, que, ao mesmo tempo, é verdadeiramente digna do homem e indica de maneira pura sua dignidade.
No ato de orar devemos falar, mas também calar e ouvir. Quanto aos bens materiais, pedimos saúde, defesa diante dos perigos, bem-estar pessoal, e harmonia familiar, capacidade de praticar a justiça e de perdoar. No campo dos bens espirituais devemos pedir perdão dos pecados, dons (fé, amor e esperança), senso de vida comunitária, luzes, discernimento e salvação.
A fé vem do que se ouve; ela nasce pelo que entra em nossos ouvidos; brota da escuta (cf. Rm 16,7). Ouvir e atender é a resposta à iniciativa de Deus que bate à nossa porta. É escutar seu chamado, abrir a porta do coração, estar em condições de conversar com ele. Como em toda a atitude de diálogo, ouvir é mostrar-se atento e – mais que isto – tornar-se disponível. Como ensina J. Loew em “A oração do povo”,
Orar é aceitar a noite da fé, das contradições e dos sofrimentos. Cuidemos para não querer nos desvencilhar delas depressa demais. Lembremo-nos do que diz São João da Cruz: “Muitos não progridem; iniciando o caminho da virtude e querendo nosso Senhor colocá-los nesta noite escura, a fim de fazê-los daí passar à união divina, não chegam além porque se detêm nas trevas”.
Quando subiu aos céus, Jesus deixou bem claro que estaria com a humanidade “todos os dias, até o fim dos tempos” (cf. Mt 28,20). Existem várias maneiras de ele estar conosco: pelos pobres e sofridos, pelos sacramentos, por sua Igreja viva e também pela oração. Esse desígnio, um verdadeiro mistério de comunhão, não nos é escondido, mas revelado. Mostra-se nas Escrituras e prossegue na história, no ensinamento da Igreja e através dos “sinais dos tempos”.
Muitos se refugiam dos problemas da vida em um tipo meio alienado de oração, mais uma “reza”, repetitiva, amorfa e inconsistente que os impede de uma verdadeira experiência de espiritualidade e vida. Conheci uma senhora que, para fugir de dificuldades da vida familiar rezava (vejam bem, eu disse rezava, não orava) oito a dez terços por dia, na busca de esquecer a indiferença do marido, os graves problemas dos filhos e sua incapacidade de enfrentar a situação.
Acredito – sem querer entrar em julgamento – que um pouco ela rezava para mudar a situação, que era crítica, mas uma significativa dose dessa prática era alienante, para fugir, esquecer-se e omitir-se de tomar decisões no terreno prático. Trata-se, em alguns casos, de abusar de Deus para não enfrentar as vicissitudes da vida. É refugiar-se num sentimentalismo religioso por não quererem se expor à vida concreta. Nessas circunstâncias a oração não é um ato de espiritualidade, mas de fuga. E assim retorna a questão: por que oramos?
Oramos para entrar em sintonia com Deus, para nos mostrarmos disponíveis ao seu projeto e dar graças por sua infinita misericórdia. Oramos para nos tornar melhores do que somos. A oração nos afasta do mal, conduz à disciplina interior e à santidade. A esse respeito, Santo Agostinho, em “A verdadeira religião” oportunamente escreve:
Contra homens crentes e santificados pela oração, o demônio não pode causar dano algum.
A nossa oração precisa ter finalidades bem claras e distintas. Oramos para agradecer, para nos colocarmos docilmente sob a proteção de Deus, para louvar, pedir perdão e suplicar graças. Como veremos adiante, podemos orar de forma mental ou oral, de joelhos, de pé, sentados, deitados ou prostrados. Nossa oração pode ser formal (orações conhecidas) ou espontânea (criadas na hora), e também individual ou comunitária. Falaremos mais disto lá adiante. Para orar bem o cristão precisa estar aberto à inspiração de Deus. É aquilo que os místicos chamam de “colocar-se em espírito de oração”, ou seja, criar silêncios e espaços interiores onde Deus possa penetrar e se fazer ouvir.
Ensinando-nos a buscar a santidade disponibilizada por Jesus (cf. Mt 5,48), o apóstolo Paulo recomenda “orem sem cessar” (cf. 1Ts 5,17). É salutar orar em qualquer momento e circunstância da vida, nas alegrias e tristezas, nas dúvidas e angústias, nas horas vagas e nas expectativas, ao acordar e ao deitar, bem como às refeições, em visitas ao sacrário e na Santa Missa. Tudo deve ser motivo para a oração. Os antigos rabinos judeus ensinavam: “Ore a Deus em qualquer lugar, mas o lugar mais importante para a oração é o templo”.
Para ter a eficácia preconizada pelos mestres da oração, esta deve vir revestida de fé, confiança, insistência e convicção naquilo que desejamos e pedimos. O objeto de nossa prece deve ser lícito. A oração deve ser simples porém objetiva, sabendo que o Pai dará, nem sempre o que pedirmos, mas aquilo que é útil para nós. Em se tratando de pedido, pedir o quê? Devemos pedir pelas necessidades, nossas e dos outros:
• físicas
Alimento, saúde, vestuário, moradia, defesa nos perigos, trabalho, etc.;
• espirituais
Comunhão com Deus, perdão dos pecados, salvação, etc.;
• psíquicas
Aceitação pelo grupo social, vida em comunidade, reconhecimento, etc.
Muitas vezes se escuta alguém dizer: “eu não sei rezar”. Isto se deve a vários fatores, como deficiência da catequese, evangelização superficial, inadequada formação religiosa da família, etc. Quando escuto alguém dizer que não sabe orar, costumo responder que, enquanto não aprimoramos sua evangelização, faça somente o Sinal da cruz e recite o Glória. Trata-se de um gesto de louvor trinitário, de ação de graças e um vigoroso pedido de proteção. Toda a oração começa com o Sinal da Cruz e da Trindade. Nele há ternura e vigor.
Muitos deixam de orar porque, de fato, não conhecem bem as orações. Outros porque duvidam da eficácia de uma súplica dirigida a Deus. Alguns não rezam porque não têm fé, enquanto outros acham a oração maçante e repetitiva, têm preguiça, se cansam da verdadeira espiritualidade. Nesse aspecto ocorre aquela “piedade regressiva” que alude o teólogo alemão Peter Schellembaum:
Sempre mais a vida de certas pessoas se dissolve tragicamente na desfiguração do caos, por conta das práticas de uma espiritualidade oca.
Quem não sabe orar de forma sistêmica e ordenada e, sobretudo espiritualizada, é incapaz de imprimir um sentido cristão em sua vida. A imagem que essas pessoas têm de Deus não se harmoniza com as lições de Jesus, que o Pai é o Deus da vida. Orar exige coerência, compromisso e disponibilidade. Há três fórmulas fáceis de estabelecer uma sintonia com Deus:
a) Fazer o Sinal da Cruz
“Em nome do Pai †, do Filho † e do Espírito Santo †, amém!”. Este sinal é feito pelos cristãos desde o século III d.C.
b) Persignar-se
“Pelo sinal da santa cruz †, livrai-nos Deus Nosso Senhor † dos nossos inimigos †” (séc. IV).
c) Recitar o Glória
“Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo”. Teria sido criado no século IV d.C. por São Basílio.
Há também uma oração bem simples, ensinada às crianças que estão na catequese que, com algumas variações, pode ser rezada ao levantar e ao deitar:
“Com Deus, me deito, com Deus me levanto; com o Pai, o Filho e o Espírito Santo”.
Ainda no terreno das questões, outros costumam indagar: quando orar? È interessante que para muitas dessas perguntas as pessoas conhecem as respostas, mas as formulam apenas como que para ganhar tempo ou se eximir de uma vida sem oração. Quando orar? Ora, conforme ensina São Paulo, devemos orar sempre, sem cessar (cf. 1Ts 5,17).
Faz bem à nossa vida espiritual fazer orações de ação-de-graças nos momentos alegres, de ternura, conquista, vitória e regozijo. Nas horas tristes, de dor e angústia cabe buscar na oração o vigor de presença do Senhor ao nosso lado. Mas, sobretudo, o momento de oração por excelência, conforme já falamos, é aquele que ocorre durante a celebração da Eucaristia. É ali que se situa o cimo referencial de nossa fé cristã.
A oração – já foi dito – se faz necessária para dialogarmos com o Deus da vida. Dialogar e assim conhecer melhor a sua vontade. É pelo caminho da oração que chegamos à nascente de nossa espiritualidade. Santa Teresa, desde a juventude, de formas diferentes, colocou diante de si um ideal de vida: “Quero ver Deus”. Foi esta profunda convicção e desejo que orientaram toda a sua vida. Tudo renuncia, de tudo se despoja, tudo abandona. Nada que possa se converter em obstáculo ao seu encontro com Deus terá o direito de estar presente em sua vida.
Certa vez, Santa Teresa estava em oração, no Carmelo de Ávila. Era uma noite bem fria (em Ávila chega a cair neve no inverno) e alguém bateu à porta do convento. Era um menino maltrapilho pedindo comida. A religiosa incorporou a caridade às suas orações, e deu-lhe comida quente e algumas roupas. Ao sair ele perguntou à religiosa: “Quem é você?”. Ela respondeu: “Eu sou Teresa de Jesus, e você quem é?”. O garoto respondeu: “Eu sou Jesus, de Teresa”. Ela não achou que o ato de atender a um pedinte fosse interrupção de sua oração, mas uma continuação dela. Por essa razão, conforme era seu desejo, ela viu a Deus.
Quanto à questão que muitos levantam “como orar?” há vários caminhos e alternativas. Cada pessoa, no desenvolvimento de sua fé e de sua espiritualidade, pode e deve criar formas próprias para desenvolver seu modo de orar. Gosto de indicar, entre outras maneiras, os exercícios espirituais de Santo Antônio de Pádua, constantes de três movimentos:
1. com o coração
a oração que brota de um coração humilde vai além das nuvens;
2. com a boca
é preciso externar, orar com os lábios tudo aquilo que queima em nosso coração: “Que meus clamores cheguem a ti!” (Sl 88,2s; 102,2);
3. com as mãos
manifestar-se disponível (com as mãos abertas em sinal de acolhida), colocando-se integralmente a serviço dos outros.
Quanto à eficácia da oração, Jesus nos atesta que basta pedir com fé que o atendimento ocorre com certeza. Santo Agostinho afirma que quando estamos orando, podemos estar certos que Deus já está nos atendendo . São dignas de crédito e reflexão as palavras do Ressuscitado a respeito dessa eficácia:
Peçam e receberão (Mt 7,7).
Tudo o que pedirem em meu nome o Pai dará a vocês (Jo 16,23).
O conjunto de promessas bíblicas indica que Deus nos dá o que precisamos. Ora, um bom pai não dá coisas más aos seus filhos, uma cobra no lugar de um peixe, ou um escorpião ao invés de um ovo (cf. Lc 11,12). Ou, nos tempos atuais, qual o pai responsável que daria uma arma na mão de uma criança? Deus nem sempre nos dá o que pedimos, mas sempre nos dá aquilo que precisamos.
Ele fornece aqueles dons necessários à nossa felicidade e construção interior. Muitas vezes a gente pede coisas que no futuro podem causar a nossa ruína. É melhor permanecer pobre e feliz , do que rico e cheio de inimigos, com a família desestruturada. Repito: Deus nem sempre dá o que pedimos, mas aquilo que precisamos.
O cristão deve orar para que a vontade salvífica de Deus se realize em benefícios igualitários para todos. O Pai tem um projeto amoroso em favor de todos nós. A oração move Deus no sentido de que todo esse projeto aconteça. Sempre que oramos “seja feita a vossa vontade...” estamos pedindo a instauração do Reino, com a ternura e o vigor da sua graça, no meio da humanidade.
Assim, o céu, a terra e nós seremos contemplados pelo gesto libertador do Ressuscitado, e todos seremos então como vivemos todo o sempre, no plano e na vontade de Deus. Por isso é preciso discernimento nas coisas que pedimos ao Pai.
Pedes e não recebes, porque tua oração foi mal feita ou sem fé, sem devoção ou com desejo; ou porque pediste alguma coisa que não se referia à tua salvação eterna, ou pediste sem perseverança. (São Basílio, in: “Carta de exortação a um adolescente”, ano 377).
Aqui nos vem à mente a lição de que a oração é uma busca, uma autêntica experiência de vida, e que como tal deve ser cultivada, desenvolvida e enriquecida. Às vezes a missão do teólogo, bispo, pastor, pregador ou catequista está difícil, parece travada e não é possível detectar a causa. Talvez seja porque está faltando oração em todo o processo de evangelização, catequese e pastoreio. Com oração, nossa espiritualidade se torna fecunda. Sem ela, assola-nos uma ponderável aridez espiritual. Ao encerramento deste primeiro capítulo vemos que sabendo-nos “crianças” Deus não nos dá tudo o que pedimos, mas concede tudo o que necessitamos.
O canto serve para que se louve a Deus, bendizendo suas maravilhas. Ao mesmo tempo em que louvamos o Deus Trinitário, construímos a nossa santificação. O canto não serve apenas para enfeitar um determinado ato litúrgico, como por exemplo a Missa, mas para que interiorizemos a espiritualidade de cada momento. A música religiosa será tanto mais santa quanto mais intimamente estiver ligada à ação litúrgica.
O canto litúrgico brota do fato fundante da fé cristã: o Mistério Pascal do Senhor (Música litúrgica no Brasil, no. 350).
O canto litúrgico é a imagem viva da vida espiritual, fundada sobre o mistério pascal. É de Santo Agostinho a afirmação que “cantar é próprio de quem ama”. Igualmente, diz-se que “uma Igreja que não canta, não encanta ninguém”. Cantar é testemunhar, de forma solene, a confissão pública de que o Senhor é o único Deus verdadeiro, o único que merece ser louvado, bendito e adorado. O canto de louvor a Deus é bíblico. Encontramo-lo em várias passagens da Sagrada Escritura (cf. Ex 15; Lc 1, 46-55; 68-79; 2, 29-32; Fl 2, 6-11; Cl 1, 12-20; Ef 1, 3-14; 5, 14; 1Tm 6, 15-18; Ap 5, 9; 14, 3; 15, 3, etc.).
Há diversos tipos de música, mas só a litúrgica é apropriada à celebração. Existem músicas religiosas, chamadas sacras, que tratam de temas espirituais, mas que no entanto não são litúrgicas, isto é, não se adaptam aos momentos da liturgia da Missa (procissão de entrada, aclamação do Evangelho, procissão das ofertas, Santo e canto de Comunhão). Elas podem ser muito bonitas mas não devem ser cantadas na Missa, cuja liturgia requer temas apropriados.
Um exemplo disto está na “aclamação do Evangelho”, que deve ser saudado com o “aleluia”. Outra música ou canção que fale da Palavra pode ser muito bonita, mas se torna inadequada se não “aclamar”, empregando o “aleluia”. Só não se usa o “aleluia” na quaresma. De outro lado, a música popular, tradicional ou folclórica, a rigor não tem lugar nas celebrações. Eu já vi, no final de um retiro, cantarem “Eu tenho tanto prá lhe falar... como é grande o meu amor por você” na transladação do Santíssimo Sacramento, da capela da cozinha para a capela central. No caso em questão, a música (popular) de Roberto Carlos pode ser muito bonita, mas não se presta para fins religiosos.
MUSICA LITÚRGICA SIM!
MÚSICA SACRA SIM, COM RESERVAS!
MÚSICA POPULAR, TRADICIONAL OU FOLCLÓRICA NÃO!
Não são poucos os animadores de canto que, por falta de uma formação litúrgica mais apurada, desconhecem os critérios de escolha de cantos para as celebrações. Desta forma, alguns pontos deve ser cuidadosamente observados:
• não inventar (quem inventa é inventor, e não liturgista);
• evitar o uso de música popular;
• atenção ao excesso de ritmo, pratos, batucadas (principalmente no Santo), especialmente em missas de CEBs, grupos de jovens e movimentos eclesiais;
• é vedada a incidência de cantos no meio da Consagração (elevação da hóstia e do cálice);
• privilegiar o silêncio nos momentos indicados.
Há que se observar a dinâmica e a funcionalidade de cada canto, estabelecendo uma relação deles com o momento da celebração. Não se admite a inserção de um canto mariano, por exemplo, na hora da Aclamação, Ofertas ou Comunhão, quando deve ser um canto específico. Abaixo os momentos em que se pode cantar:
• procissão de entrada;
• ato penitencial;
• Glória;
• procissão das ofertas;
• Santo;
• Pai-Nosso;
• Cordeiro de Deus;
• Comunhão;
cantado
instrumental
misto (o refrão cantado)
• na ação de graças (após a bênção).
Há também que se observar – embora não seja pacífica – a existência de uma certa hierarquia dos cantos, sempre adequada a cada tempo litúrgico:
• importantes (ou de primeiro grau)
Aclamação da Palavra;
• acessórios (ou de segundo grau, pode-se usar ou não)
Ofertas, Pai-Nosso, Santo, Cordeiro de Deus e Ação de graças
• dispensáveis (ou de terceiro grau)
os cantos processionais (entrada e comunhão)
O Concílio buscou reavivar a fé do povo a partir de uma nova forma de participação na liturgia, onde o canto é parte integrante e necessária (SC 112). Não é importante cantar na liturgia, mas cantar a liturgia. Nesse particular, o canto litúrgico adequado é aquele que se baseia nas Sagradas Escrituras, nas realidades regionais e culturais de cada povo.
A Missa é um ato memorial de um fato ocorrido há 2000 anos, mas que se firma numa realidade atual, da fé e da busca do povo. O canto litúrgico tem sempre uma função (a funcionalidade já aludida), como, por exemplo:
ENTRADA acolhida
PERDÃO interiorizar
GLÓRIA louvar
SANTO bendizer
Na América Latina, e em especial no Brasil, por conta de raízes indígenas e africanas, se costuma animar as missas com instrumentos musicais (violões, acordeões, teclados, mais ritmo e percussão), fato que na Europa, por exemplo, seria visto como desrespeito. É aquela adaptação, já mencionada aqui, da liturgia à cultura de cada povo.
Um cuidado especial quanto ao canto litúrgico, deve abranger os solistas, coros, corais e grupos de canto. O canto deve ser incentivado para animar as celebrações e fazer com que o povo interiorize o conteúdo da mensagem espiritual. Em muitos casos, se vê animadores cantando as antífonas, fazendo solos (até em momentos inadequados), dando a impressão de querer mostrar seus dotes vocais ou instrumentais. Deve sempre ser lembrado aos cantores que estão em uma igreja e não num palco. O canto, na liturgia, deve ser o termômetro da espiritualidade da assembléia. Como ensina L. Cechinato,
O canto na Missa fica elitizado, quando é cantado só pelos grupinhos especializados (o coral). É mais bonito ouvir toda a assembléia cantar.
Estes fatos, infelizmente, ocorrem nas paróquias: na minha, na sua, na deles... Às vezes há mais ruído e distração do que contemplação, escuta e louvor. Em alguns casos, preferem a música-passatempo, e a missa-show, do que um verdadeiro e consciente ato de liturgia. Nessas distorções, se constata um excesso de microfones (para todos os “artistas”), muita percussão, rebolado (ao invés de dança litúrgica), abuso de volume, excesso de “músicos”, tudo abafando a voz da assembléia, minando o necessário clima de espiritualidade, ressaltando apenas a exibição do individualismo (solistas e virtuoses). Há casos em que os músicos cantam, ao invés de uma forma discreta, onde apenas a voz seja escutada, de frente para a assembléia, como solistas em um palco, quando deveriam estar voltados para o altar, onde cabe a adoração.
Continua-se cantando na liturgia qualquer música religiosa, catequética ou de mensagem, em vez de cantar a liturgia. Este mesmo erro ocorre também quando alguns movimentos e/ou grupos propõem músicas que não estão de acordo com a ação ritual e os tempos litúrgicos. Eu tenho medo quando a “comissão de liturgia” ou a “pastoral da liturgia” se entusiasma pelo “sucesso” e começa a inventar repertórios, símbolos e situações que nada tem a ver com a celebração.
A finalidade do coro ou dos grupos de canto é cantar a liturgia, animar e fazer cantar. O coro serve para enriquecer o canto do povo, criar espaços que fomentem a devoção, a contemplação e a adoração. Sua finalidade, única e maior é animar o canto da assembléia. A instauração de um coral ou grupo de canto, não pode eliminar nem diminuir o canto do povo. Certos grupos parecem que têm prazer, em suas “apresentações”, a adoção de tons diversos dos que o povo sabe/pode cantar, escolher repertórios desconhecidos da maioria, protagonizando, enfim, meras “exibições”.
Ao escolher o tipo de música, seja para o coro seja para os fiéis, levem-se em conta as possibilidades daqueles que devem cantar. A Igreja não exclui das ações litúrgicas nenhum gênero de música sacra, contanto que corresponda ao espírito da ação litúrgica e à natureza de cada uma das partes (SC 28) e não impeça uma justa participação dos fiéis (MS 9).
Considerando, portanto, que o canto de comunhão já deve ter iniciado antes do primeiro fiel comungar, é prudente que os cantores e instrumentistas comunguem no fim, depois de todo o povo, e não antes, como às vezes ocorre. A música litúrgica, conforme ensina o Prof. Almir Macedo (In: “O canto litúrgico”. O Recado, 225, Janeiro/fevereiro 2010), não deve ser composta tendo em mente o mero deleite dos ouvintes, mas de tal maneira que as palavras possam compreendidas por todos, a fim de que os corações de todos sejam arrebatados pelo desejo de harmonias celestes e pela contemplação das alegrias dos bem-aventurados. Nessa perspectiva, o ritmo deve acompanhar a marcha do povo na direção da Sagrada Comunhão..
A dança na liturgia
Outro gesto, digno de destaque, e nem sempre colocado em prática em nossas liturgias é a dança. Na América Latina temos raízes indígenas, negras, ibéricas e de imigrantes (alemães, italianos, poloneses, japoneses, etc.), formando várias atitudes culturais. Um conhecido antropólogo, definiu o latino-americano como “um povo dançante”, ao afirmar que “ninguém dança tanto como o povo da América Latina.
Assim como é exigido para o canto, não se deve dançar na liturgia, mas dançar a liturgia. Nesse aspecto, é salutar unir o fenômeno cultural da dança ao caráter sagrado da celebração, sem cometer desvios e/ou abusos. É permitido dançar, sim, com respeito e no mais absoluto espírito de louvor e comunhão. Fora disto é abuso.
A dança, na liturgia, destaca-se das demais por ser um ato de louvor, ao mesmo tempo em que se converte em oração popular. A liturgia dançada é também uma forma de celebrar os mistérios de Deus, como faz a humanidade desde seus primórdios, quando as antigas civilizações dançavam para seus deuses. Sobre esse assunto, recomendo a leitura do meu livro “As grandes civilizações do Oriente Médio”, Ed. Ave-Maria, 2003.
Como celebrar nossa libertação plena em Jesus Cristo (Gl 5, 1) sem libertar, antes de tudo, nosso corpo, através da dança, na festa da libertação que é nossa liturgia? (in: “A música Litúrgica no Brasil”, no. 217).
Nesse particular, a dança litúrgica não só é permitida como até incentivada, conforme as circunstâncias. A dança pode ser desenvolvida, nas procissões de entrada (da Palavra, dos símbolos a serem ofertados e da água batismal). Nas CEBs, num ressalto à religiosidade popular e à inculturação, observa-se muitas danças, cirandas, ginga rítmica, mãos dadas, etc. Há ali, na simplicidade do povo, toda uma riqueza cultural e litúrgica. Esse tipo de atitude é mais notado no Norte, Nordeste e Centroeste. No Sul-Sudeste, com uma liturgia de trato mais frio e mais germânico, tais práticas, em alguns lugares não são bem vistas.
A dança faz parte da oração comunitária da Igreja, tendo a função própria de ajudar a assembléia a entrar em contato com o mistério celebrado TH. Kane, “Sacred and liturgical dance” 1999)..
Em 2003, em um bairro de Canoas (Região Metropolitana de Porto Alegre), preguei uma noite da novena em louvor ao Sagrado Coração de Jesus, numa paróquia de freis capuchinhos. Lá pude observar, na entrada da Palavra de Deus, umas seis garotas, adolescentes, trazendo a Bíblia, as velas e outros símbolos correlatos, cantando, dançando e jogando pétalas de rosas, numa nítida homenagem à Palavra de Deus que ia ser proclamada dali a instantes, Foi um ato simples, bonito, emocionante, respeitoso e rico em significado.
Em certos povos, o canto é instintivamente acompanhado do bater de mãos, de movimentos ritmados e de passos de dança dos participantes. Tais formas de expressão corporal podem ter lugar na ação litúrgica desses povos, na condição de serem sempre expressão de uma verdadeira e comum oração de adoração, de louvor, de oferta ou de súplica e não de mero espetáculo (ICCD IV, 43).
O conceituado teólogo ítalo-germânico Romano Guardini, referindo-se à alegria do culto, afirma que “liturgia são os filhos de Deus brincando diante do Pai”. A dança de louvor é um gesto bíblico. Miryã, irmã de Moisés e Aarão (cf. Ex 15, 20) dançou, em homenagem ao Deus Javé, ao redor da arca, ao som de cantos e de pandeiros. A dança fazia parte das liturgias hebraicas (cf. Jz 21, 21). O rei Davi também dançava em louvor a Javé, diante da arca (cf. 2Sm 6, 14). Para quem é contra, critica ou não vê com bons olhos a dança litúrgica, é bom frisar que nas celebrações de Israel, nas qahal (assembléias) do deserto, as pessoas dançavam, conforme vimos acima, ao som de ritmos. Mais tarde, o salmista iria incentivar essas práticas:
Louvem ao Senhor com danças; toquem para ele a cítara e o tambor (Sl 149, 3).
Aula inaugural proferida no IV ERCL, Santa Catarina, abril 2011. O autor é Filósofo, Doutor em Teologia Moral e especialista em liturgia. Escritor, com mais de cem livros, entre eles “Liturgia. História, espiritualidade e prática”. Ed. Pallotti, 2002.