Antenor Sales: “Deus é um sozinho que tem”
O sertanejo Antenor Sales é dono de uma trajetória que, apesar de construída na dureza do dia-a-dia de sua terra, não carrega a fisionomia da rudeza. Seu semblante, ao contrário, exterioriza uma ternura que o seu interior faz toda questão de dividir com aqueles que lhe cercam. Antenor tem os olhos da lucidez e da sensibilidade bem aguçados para enxergar e perceber o que e quem está à sua volta. “A gente nunca quer as coisas pra gente só. Cê deve fazer também para o proveito do povo, bem pra si só não adianta. É fazer pra gente e para o povo”, diz. Compartilhar seu bom êxito nas difíceis empreitadas da vida, para ele, não é apenas uma atitude generosa, mas o reconhecimento da importância do outro em suas conquistas: “Eu plantei com o povo, se eu não plantasse nada com o povo, não tinha nada”.
Nascido na zona rural de Berilo (Médio Jequitinhonha – MG), no ano de 1917, Antenor começou a trabalhar aos sete anos de idade. Além de tropeiro, já foi negociador de ouro, agricultor, fabricante de cachaça, criador de gado e, hoje, é vendeiro. “De tudo um pouquinho eu mexia”, conta. Dos seus ofícios, não só extraía o sustento, mas também pôde exercitar uma capacidade que considera fundamental nesse mundo: o traquejo para lidar com as confusões do ser humano. “Qualquer pessoa agravou a gente, deixa aquilo passar”, aconselha.
Antenorinho, como é chamado em Berilo, se mantém brando em um mundo que nem sempre o trata com a mesma brandura: “Quando uma pessoa me faz o mal, quando ela me procura, eu faço ela o bem. Eu vou dar escola pra ela. Não vou falar que eu vou matar, eu vou ajudar ela. A morte é pra Deus fazer ela, não é nós não”. O diminutivo, no seu caso, não indica fraqueza, tampouco é uma maneira de diminui-lo. Foi bem novinho, aos 12 anos de idade, que comprou sua primeira fazenda. Forte o suficiente para não ser duro, sua postura serena perante uma realidade conflitante não é reflexo de um modo de ver ingênuo. Antenor está atento às contradições que lhe cercam: “O mundo é muito cheio de confusão, muito cheio de história, ninguém sabe entender ele não. Ninguém nunca fala tudo o que é preciso, uma coisa falta, não tem jeito”. É que, no seu pensar, as contrariedades dessa vida não anulam a satisfação em viver. “O mundo é muito bom, você não deve é acompanhar as confusões de ninguém. Deve mexer no coração seu bom, limpo, não querer nada dos outros. Quem faz a pessoa é ela mesma”, diz.
Mas não foi só com sensibilidade e lucidez que Antenor construiu seu caminho. Com uma criança, é com ternura e sensatez que prefere agir: “Nunca gostei de bater em menino na vida, nunca. Se ele estiver errado, a gente está junto mais ele. No menino, a gente dá um beijo e um conselho, que de fato é mesmo. Não deve bater não, porque o menino sente. O que resolve você bater? Nada! Ele fez errado, chama ele à atenção”. Perante, porém, a necessidade do sustento era a bravura que precisava falar mais alto. Sua ternura, sozinha, não seria capaz de enfrentar a intransigência da realidade do sertão. Como tropeiro, não era nada fácil percorrer outras cidades, em cima de lombo de burro, mata adentro, para vender a cachaça e a rapadura que produzia na lavoura e trazer outras mercadorias. “A vida minha era difícil, nem todo mundo topava ela. Viajava muito com a tropa, dormia mal dormido”, lembra. Brigar com os obstáculos físicos na luta pelo sustento não era o suficiente. Antenor sempre precisou, também, agir com firmeza para não deixar que as complicações do mundo humano roubassem suas conquistas: “Eu quero o meu, o que é dos outros pra mim não serve. Agora: eu ganhei, eu quero. É meu, Deus me olha”.
As vontades da natureza e as imposições da vida ditavam as regras que deveria cumprir no dever de ganhar o pão. Em vez de patrão, era à mata bruta e à sequidão que precisava se curvar: “Nunca fui empregado de ninguém, trabalho por conta própria até hoje”. Mas, mais do que ser o dono do seu serviço, é dele a autoridade que traça o seu caminho. “O jeito meu é o seguinte: eu acompanho o meu modo de vida”, diz. Agindo de acordo com o que pensa, ele peleja, por conta própria também, para servir quem está à sua volta. “Cê não deve abusar de um pobre. Quando eu vejo um rico abusar de um pobre eu não gosto, pra mim é doença. A pobreza já é sofrida e você vai ajudar a sofrer mais? Não pode. Cê tem que caçar um lado de melhora para eles”, diz.
Poder servir o outro, para Antenor, longe de ser uma escravidão, dá mais gosto ao viver. E é servindo sem ser escravizado que ele vai acompanhando o seu modo de ser: “Com todo o sofrer, a vida é boa. Toda vida eu gostei da vida. Toda vida só caçando jeito da vida melhorar cada vez mais pra frente, só caçando melhora. Esmorecer com a vida é que não pode”. Viúvo desde 2009, seu casamento de 70 anos lhe gerou cinco filhos, mas um deles faleceu. Se por um lado ele não se deixa esmagar pelos dissabores desse mundo, por outro se curva à impossibilidade de dominar a realidade. “Quando morre uma pessoa minha, eu não faço barulho, não sou chorador. Eu sinto calado, não apavoro. Cê apavorar, cê chorar não adianta, cê tem que caçar jeito de acertar a vida daquele que morreu”, ensina.
Antenor peleja para “andar direito” e “servir o povo”, mas sem a intenção de, com esse modo de agir, conquistar o altar. “Deus é um sozinho que tem”, observa. Morador de uma região que sabe partilhar seus saberes, ele reprova quem usa de sua vasta instrução como meio de subir no outro para ficar mais alto: “A sabedoria dele põe os outros pra trás. É coisa malfeita”. Porém, quem não deseja ser senhor não aceita, por outro lado, ser escravo: “O povo sai dele, o povo hoje é ativo: acabou! Hoje tem estudo, não está no granfino, mas hoje você pensa que um é tolo e ele é mais ativo que a gente”.
Sem fazer questão de ter a sabedoria que põe os outros para trás, porém sabido o suficiente para se proteger dela, Antenor enxerga na reunião das forças de cada um a única autoridade realizadora. “A gente sozinho não faz nada. Toda coisa só nasce da união”, diz. Uma realidade melhor seria, no seu modo de pensar, a garantia do “pão a todo mundo” e “uma vida mais igual para todo mundo”. Quando fala em igualdade, entretanto, não desconsidera as diferenças da singularidade humana. Ele observa: “Tem nascimento que traz uns de um jeito e outros de outro. Cada um tem uma natureza, ninguém é igual ao outro”.
A garantia de “uma vida mais igual para todo mundo”, longe de desrespeitar as diferenças de cada um, é justamente uma maneira de assegurá-las. “Cada um tem uma natureza”, mas todos têm uma semelhança da qual não se pode escapar: ninguém gosta de ser usurpado. “A raiva é o seguinte: aquilo já vem de natureza. Não tem ninguém mansinho demais. Na hora do abuso, se tem raiva”, diz. A possibilidade de “uma vida mais igual” permite, inclusive, que outras vozes com vontades diferentes se façam valer, o que, ele lembra, não ocorria antes: “A justiça, hoje, tá bem melhor. Antigamente quando um falava era só ele e hoje tem outro pra desmanchar”.
Para Antenor, conquistamos uma relação de mais igualdade com a nossa vida depois de uma certa idade. “O juízo chega mesmo é com 40 anos em diante”, diz. Até lá, a pessoa “quebra muito a cabeça, apanha”. A experiência ensina e aprimora valores: “Escola boa é a do mundo”. Com mais de nove décadas de vida, ele aprendeu que, ao mesmo tempo em que “o homem deve ser uma palavra certa” precisa também fazer valer “justiça certa”. Esse é Antenorinho: por ser grande, sabe ser diminutivo.