Hexaemeron - Os seis dias da Criação SERMO CXI
HEXAEMERON
Os seis dias da criação
Prof. Dr. Antônio Mesquita Galvão
No princípio criou Deus os céus e a terra
Berešit bará Elohim het ašamayim we-ha’aretz
Tudo tem seu começo com o grande anúncio criacional, que funciona como a explosão do poder de Deus. Há alguma divergência de tradução, entre as Bíblias cristãs, no que se refere à expressão “Deus criou os céus...”. Esta é uma questão que via-de-regra é levantada pelos participantes dos “cursos de iniciação ao estudo da Bíblia” que tenho assessorado pelo país. Se de um lado, quase totalidade das Bíblias católicas afirma que Deus criou “o céu e a terra...”, de outro, as protestante falam, quase todas em “criou os céus e a terra”.
Se olharmos o original hebraico, utilizado na maioria das nossas escolas bíblicas, veremos que o verbete ašamayin está no plural, portanto o correto seria, de fato, criou os céus. Us judeu tinham como que uma “hierarquia” no céu; imaginavam-no em diversas “camadas” ou pavimentos, resultando daí sua menção primitiva de céu no plural. Na verdade, ašamayim, atestado pela terminação im, é uma palavra no plural, o que não autoriza, de forma alguma, a especulação da existência de mais de um céu. São Jerônimo, que é base para as edições ocidentais, como vimos, verteu a Bíblia para o latim, e nesse mistér deve ter-se mantido fiel ao gênero, traduzindo ašamayin como os céus. Trata-se apenas de uma questão semântica.
Antes de dissecar os seis dias da Criação, é imperioso um comentário a respeito de seu gênero literário. A arquitetura do texto nos revela que não se trata de uma crônica do passado, mas é como um hino, talvez para justificar o sábado. As diversas obras são descritas mediante sete elementos literários constantes:
• Palavra de Deus: “Disse Deus: faça-se”;
• Cumprimento da Palavra: “E fez-se”;
• Execução (a mais precisa descrição do efeito): “E Deus
fez...”;
• Aprovação da obra: “Deus viu que era bom”;
• Imposição do nome aos animais;
• A Benção divina;
• Conclusão: “Houve tarde e manhã...”.
O esquema de sete dias (6+1) é mais ou menos freqüente nas narrações do Oriente Antigo, mesmo em textos profanos. Acredita-se que seja um padrão literário da época. O uso dos jargões técnicos, seja na filosofia, nas áreas médicas, jurídicas ou econômicas, às vezes deixam confusos os estudantes ou pessoas leigas, alheias ao métier. A Teologia e as Ciências Bíblicas não fogem desse quadro, e seus termos, suas nomenclaturas e suas pedras de tropeço às vezes geram algumas armadilhas contra os neófitos. Quando se ministra uma conferência ou assessora um workshop sobre Criação, os tropeços surgem na chegada: “hexaemeron, o que é?”.
Vamos decompor a palavra: hexa (seis) iméra (dia) érgon (obra). Acho que agora ficou mais claro. Trata-se de uma obra feita em seis dias. Por esta razão a Criação, visto ter sido feita em seis dias, ganhou o nome de hexaemeron. O verbete teria sido criado, provavelmente por Filon († 40 d.C.), um filósofo judeu de Alexandria.
O hexaemeron, conforme vimos é oriundo da tradição P, priesterkodex, (sacerdotal). Seu texto final, literária, teológica e politicamente estruturado foi concluído depois do exílio (séc. VI a.C.), quando os deportados voltaram à Palestina e começaram a reconstruir sua nacionalidade, a partir do reerguimento das muralhas de Jerusalém. No entanto, sabe-se que existem muitos séculos de reflexão teológica e sociopolítica por detrás do texto hoje conhecido. A distribuição um tanto quanto forçada das obras em seis dias, revela que tudo deveria caber nesse período, para justificar o sábado, o dia do descanso. Embora refira-se a um período ágrafo, o hexaemeron nos chega permeado de mitos, história política e apologia religiosa.
Definida a questão da nomenclatura, surge outro obstáculo: como interpretar o hexaemeron? Como em todo texto, há uma forma Literal de interpretar, uma outra, que vamos chamar de Concordista, e uma terceira, a qual daremos o nome de Independente.
a) a interpretação literal
Foi muito utilizada até o século passado, até a formulação das teorias de C. R. Darwin († 1882); ela é falsa porque não leva em conta o gênero literário do texto, que é um hino, uma poesia e não um relato científico; a interpretação dita literal dá margem às indesejáveis leituras fundamentalistas;
b) a visão concordista
Depois que Darwin formulou sua teoria da evolução, começou a surgir, por parte de muitos autores católicos, um sentimento de concordância. Essa visão é baseada no yom (dia, em hebraico), mas que pode também referir-se a um período de eras, de modo que o texto estaria de acordo com as últimas descobertas científicas; tal interpretação é viável, mas não condizente com o sentido do texto, pois supõe que o texto quer mostrar como surgiu o mundo cientificamente, o que não é o caso.
c) a interpretação independente
Trata-se de uma forma de estabelecer uma hermenêutica liberal, fugindo do literal e do oficial, baseada na observação mística, teológica, filosófica, científica e lógica; a Escritura, por sua riqueza, está aberta a vários tipos de interpretação; mesmo assim, é uma pretensão assaz pedante, chamar qualquer um deles, como querem alguns, de autêntico, ou perfilado à sã ortodoxia.
Teria Deus, de fato, criado o mundo e os seres vivos, em seis dias e no sétimo descansado? Seis dias é pouco? É muito? Não poderia Deus, num estalar de Deus completar toda a Criação? A ordenação da Criação em seis dias, se nos parece uma preparação para o descanso sabático. A narrativa pode ter seu embasamento numa “questão trabalhista”, onde o direito ao descanso, negado ao povo judeu durante o cativeiro babilônico, iria surgir como uma imposição religiosa: “nosso Deus descansou após seis dias; nós também temos que descansar!”. Pode ter sido um protesto contra a exploração. Hoje são muitos os biblistas, que afastando a idéia da Criação em seis dias de vinte e quatro horas, desposa essa teoria.
O hexaemeron, ou “seis dia da Criação”, é uma figura metafórica, onde tudo vai num crescendo, como o fixar os alicerces, erguer as paredes, colocar o reboco (6 dias) à espera da conclusão, o telhado (o sábado). Tudo fica enfeixado por uma imagem simbólica, como uma grande pirâmide que se vai sedimentando aos poucos. Começa pela base (material mais grosseiro, coisas primárias), até o cume (material mais sofisticado, os grandes animais e o homem).
Para começo de conversa, sabemos que o mundo (primeiro dia), foi criado há cerca de mais ou menos seis bilhões de anos atrás. Há quem fale até em 12 bilhões. As bibliografias não apresentam data exatas, mas tudo gira em torno dessa cronologia. No primeiro momento, o clima seria inadequado, pela quantidade de gases que envolviam atmosfera, tornando o ar irrespirável.
A vida, segundo os biólogos, surgiu, em forma primária de bactérias, há três bilhões de anos. Nessa seqüência, surgem os vertebrados, os seres primários e o homem, mais ou menos como é hoje, há 200 mil anos. Ora, cotejando essas duas cronologias, há que se chegar a algumas conclusões, mais ou menos lógicas:
a) A terra foi criada há cerca de 12 bilhões de anos
b) O homem foi criado há “apenas” 200 mil anos.
Logo, chegamos à conclusão que entre a) e b) existe um lapso de tempo um pouco maior que cinco dias. Tal constatação pode chocar certas pessoas, aquelas cuja formação religiosa continua iluminada pela tênue luz da catequese pré-eucarística,que em geral é fundamentalista. Mas é bom que se note que, o que vale na mensagem criacional, é proclamar Deus como “Criador de todas as coisas visíveis e invisíveis”. Agora, o como e o onde, isso fica por conta do estudo, da interpretação e da pesquisa.
A criação do mundo não é uma doutrina do tipo “Era uma vez...”, nem um acontecimento isolado num passado distante. A Criação é algo que Deus continua fazendo. Deus, cuja natureza é criativa, continua criando. A Criação não é nenhuma exposição em um museu de teologia, mas sim uma obra permanente e dinâmica de Deus. Precisamos entender os quatro tempos da Criação: Passado, Presente, Imperfeito e Futuro. Criação no passado nos fala do momento em que Deus criou todas as coisas.
No presente, fala dele sustentando todas as coisas pelo seu poder (Deus não abandonou o universo, mas controla todos os eventos). Criação no tempo imperfeito é mais difícil de entender, pois em nossa língua não temos este tempo verbal existente na língua original do Novo Testamento, o grego. Falar da criação no imperfeito é falar de uma criação contínua, de Deus criando constantemente... Já criação no futuro nos demonstra o ato final de Deus, solenemente descrito em Ap 21,1: “... um Novo Céu e uma Nova Terra”.
Quantos anos tem a terra? As ciências, com base nos testes de radiocarbono e na arqueologia tem encontrado evidências que nos levam à acreditar que nosso planeta é antiqüíssimo. Os judeus, por exemplo, festejam a cada ano, seu Rosh Hashanah (princípio do ano). Em 2010, celebraram o ano 5771, ou seja, para a simbologia hebraica o mundo tem apenas aquela idade. Ora, sabendo-se que Abraão saiu de Ur, na Caldéia, em direção à Palestina há 3810 anos (1800 a.C.), se fôssemos buscar cálculos matemáticos exatos, dir-se-ia que quando sua migração ocorreu, o mundo tinha poço mais de 1900 anos. A Bíblia está errada? Ou há enganos nas descobertas da arqueologia? Como podemos resolver esse conflito?
Deus deixou dois registros de sua criação, nas Sagradas Escrituras, e na arqueologia. A Bíblia não foi escrita para ser um tratado científico. Um dos problemas iniciais é sobre a idade da terra. Quantos anos ela tem? Através da geologia chegou à conclusão de que a terra tem cerca de 12 bilhões de anos! O problema não resulta em erro, nem da Bíblia e nem da ciência. É tudo uma questão de interpretar o que está escrito.
A grande verdade é que os escritores de Gn 1-11 não tinham a pretensão, nem de escrever um livro de história nem compor uma narrativa científica. De acordo com a necessidade religiosa e social daquele povo que voltava do exílio, importava transmitir algo, teologicamente profundo, que falasse no poder, na presença e na misericórdia de Deus. Foi pensando nisto que a Berešit foi escrita.
Os eventos da criação são descritos do ponto de vista de um observador que estaria vendo a criação realizar-se ao seu redor. A ordem não é necessariamente cronológica. Por exemplo, a luz e as trevas são descritas antes do sol e das estrelas. O hagiógrafo não escreveu um tratado de geologia ou de astronomia ou de qualquer outra ciência. O texto nunca nos diz o quando da criação, nem nos explica em detalhes como Deus fez existir a terra e a vida, nem sequer o “tempo” que ele gastou. Há que se ver aí um estimo nitidamente mitológico.
O conhecido “big bang”, a grande explosão teria, de acordo com algumas teorias mais recentes, dado início a tudo, cosmo, eras e idades e o surgimento do ser humano. Esperamos dissipar dúvidas, idéias errôneas, mal iluminadas por teorias arcaicas, e visões fundamentalistas. Tudo sem entrar em choque com a nossa fé cristã. É imperioso que se tire dos relatos, a essência da fé, abstraindo o detalhe, o acidente, o pano-de-fundo. O contexto do Antigo Testamento é todo ele nitidamente antropomórfico, ou seja, ali se atribui à divindade, em muitos momentos, formas, atitudes e caracteres humanos. Chamo a atenção nesse detalhe, pois a linguagem antropomórfica é comparativa, simbólica e restrita a um momento cultural, por isto nunca é exata. Vamos, pois, à análise do hexaemeron, os seis dia da Criação:
O primeiro dia
1 No princípio, Deus criou o céu e a terra. 2 A terra estava sem forma e vazia; as trevas cobriam o abismo e um vento impetuoso soprava sobre as águas. 3 Deus disse: “Que exista a luz!” E a luz começou a existir. 4 Deus viu que a luz era boa. E Deus separou a luz das trevas: 5 à luz Deus chamou “dia”, e às trevas chamou “noite”. Houve uma tarde e uma manhã: foi o primeiro dia.
O ponto alto, indubitavelmente, do primeiro dia da Criação, é o surgimento da luz. A partir de agora, todas as coisas que forem sendo criados, serão como que uma conseqüência dessa luz inicial. Ao separar a luz das trevas (v. 4), Deus estabelece uma ordem, implanta seu modo de organização dissipando o caos e iluminando o abismo. Ele separa para organizar, para dar formas ao que era tōhu, hê-wabōhu, informe e vazio. Sem nenhum elemento anterior, exceto o caos (e dele não seria possível extrair luz), Deus ordena que surja a luz, e luz imediatamente se faz presente naquele concerto que ora se iniciava.
Em trechos posteriores da Escritura, seja proféticos, sapienciais ou legislativos, há menção dessa luz que foi criada a partir do nada (cf. Dt 32,47; Sl 33,9; Is 55,11). Sempre que há um reporte a esse primeiro evento, surge, seja em sala de aula, em catequese, retiro ou pregação, a pergunta: “Mas Deus criou a luz antes do sol? Como é possível?”. De fato, se formos observar, o sol como astro maior da luz física, só vai ser criado no quarto dia (cf. vv. 14-18). Depois, que nunca se perca de vista que “para Deus nada é impossível” (cf. Lc 1,37).
O Criador tinha que começar pela luz para dissipar as trevas, que até aquele momento, era o elemento mais ativo e ameaçador. Essa luz, criada naquela circunstância revela a proeminência do bem sobre o mal, uma vez que revela a luz de Deus, cheia de amor, paz, benevolência. Se de um lado, como na mitologia védica, as trevas (Shiwa) são destruidoras, a luz (Vishnu) faz o contraponto, reconstruindo o que a outra corrompeu. Aqui também surge essa característica dialética (e ele aparece, de forma acentuada, no IV Evangelho) entre o bem (a luz que Deus cria) e o mal (as trevas que ameaçam). Nos proféticos há uma menção, talvez a única, das trevas como “criaturas” de Deus (cf. Is 45,7).
O começo da Criação tendo a luz como ponto inicial é para dizer que Elohim criou essa luz, ao invés dos deuses do Egito e da Mesopotâmia., que a luz é criatura e não divindade ou emanação da divindade. A complacência de Deus em sua obra não se refere à luz e às trevas, mas somente à luz. As trevas, como ausência da luz, existiam sem necessidade do Criador, simplesmente porque ele ainda não havia criado a luz. Nesse primeiro contexto já para discernir que a luz de Deus dissipa o medo que o ser humano tem das trevas, razão pela qual, no Apocalipse (21,25) é proclamado que no céu jamais haverá noite. Há outro detalhe importante, que às vezes, pela leitura apressada pode ter passado despercebido:
...à luz Deus chamou “dia”, e às trevas chamou “noite”
(v. 5).
Colocar nome em alguma coisa significa o domínio absoluto sobre essa coisa. As temíveis trevas são como que amansadas, passando a chamar-se simplesmente “noite”. A luz é uma criatura tão importante, que o autor do texto atribui a ela todo o primeiro dia. De fato, Deus contempla sua primeira criatura e atribui-lhe um valor. E fez mais: separou a luz das trevas:
viu o Senhor que a luz [era] boa (v. 4)
waiá Elohim het ahôr kitôv
e separou o Senhor (entre) a luz e (entre) as trevas (v. 4b).
vaiabdêl Elohim bein ahôr bein ahôšê
Tudo que Deus cria é bom, proveitoso e perfeito. A ahôr, luz, como o primeiro elemento criado, é kitov, boa, porque bane a escuridão, ao mesmo tempo em que coloca às claras tudo o que Deus faz. É por isto que no IV Evangelho, conforme já nos referimos aqui, surge uma premissa iniludível, na qual nos é dito que Jesus, como filho do Pai (e Criador como ele), é “luz do mundo” (cf. Jo 8,12). Em outro trecho joanino, vemos que Deus é luz e nele não há trevas (cf. 1Jo 1,5). Os seguidores do Ressuscitado, pelo batismo e pela adesão totalizante a ele, tornam-se igualmente “luz do mundo” (cf. Mt 5,14). A luz para ser boa precisa ser diferente das trevas: tem que superá-las. Há outras referências bíblicas à luz de Deus: Sl 43,3; 112,4; 118,27; Rm 13,2; 2Cor 4,6; 1Ts 5,5; Ef 5,14; Ap 21,23; 22,5).
No final do bloco relativo ao primeiro dia, a Escritura diz que “houve uma tarde e uma manhã...” (v. 5b). Essa referência, aliás, surge no final de cada etapa da Criação. Trata-se do modo semita de marcar o dia, que para eles não começava à meia-noite, mas à tarde-noite (no crepúsculo). Tanto assim que o shabath, o sábado dos judeus (e das Igrejas que os acompanham) começa no entardecer da sexta-feira. Para os semitas da Palestina, no tempo em que foi redigido o texto, o dia era composto de tarde/noite/manhã. É por isto que se lê
...houve uma tarde e uma manhã,
pois a contagem dos dias, na antigüidade judaica era de tarde-a-tarde (cf. Lv 23,32). Esse conjunto, de tarde e manhã, com uma noite no meio, faz referências – diz o Talmude – a um tempo incomensurável, um espaço temporal útil para o desenvolvimento das coisas, elementos e seres criados.
O segundo dia
6 Deus disse: “Que exista um firmamento no meio das águas
para separar águas de águas!”. 7 Deus fez o firmamento para
separar as águas que estão acima do firmamento das águas que
estão abaixo do firmamento. E assim se fez. 8 E Deus chamou
ao firmamento “céu”. Houve uma tarde e uma manhã: foi o
segundo dia.
Há pouco tempo escutei, em uma conferência universitária, um conceituado biblista e teólogo espanhol (Trata-se do jesuíta ANDRÉS TORRES QUEIRUGA, que ministrou uma Conferência na Unisinos – Universidade do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, em julho de 2004) afirmar que a Criação é uma obra de “separação”. De fato, se a gente for observar, verá que o céu é “levantado” sobre a terra, e separado dela; a terra firme é igualmente separada do mar.
Nesse corpo expositivo do autor P, o “firmamento” é referido como uma lâmina, fina, porém resistente (em hebraico é rakya), que forma uma abóbada que “separa” as duas águas, em cima, na “piscina superior”, as águas da chuva, e abaixo, os mares e os oceanos. Os antigos acreditavam que as chuvas ficavam armazenadas num reservatório, as chamadas “águas superiores”. Nessa mecânica, o firmamento possuía duas funções:
a) Separar as águas superiores das inferiores;
b) Servir de suporte para os astros;
A figura de um teto acima de nossas cabeças, como uma marquise que delimita uma piscina, é uma figura não só palestina, mas que aparece também na cultura caldéia e até mesmo na grega (na Ilíada, 5,504). Por ocasião do dilúvio, o autor informa que Deus abriu fez “arrebentar as fontes do oceano” e abrirem-se “as comportas do céu” (cf. Gn 7,11). Na abóbada celeste, o escritor sagrado imaginou que eram fixados os astros, como móbiles pendurados com arame chumbado no teto. Fiel a essa idéia, o salmista convida o universo todo a louvar a Deus, por haver fixado os astros no firmamento.
Louvem a Javé, sol e lua, louvem a ele astros de luz! Louvem a Javé céus dos céus. e águas acima dos céus! Louvem o nome de Javé, pois ele mandou e foram criados. Fixou-os eternamente, para sempre, deu-lhes uma lei que jamais passará (Sl 148, 3-6).
Num texto paralelo, o profeta Daniel compara (cf. 12,3) o brilho do firmamento com a glória dos sábios. Nas visões apocalípticas de Ezequiel há outra idéia a respeito do firmamento, agora não como o teto da terra, mas como o assoalho do céu, onde Deus firmou seu trono (cf. 1,22-26; 10,1). No Livro do Apocalipse, o firmamento é substituído por um mar de cristal (4,2-8).
No firmamento Deus colocou os luminares do céu (sol, lua e estrelas: Gn 1, 14-18). Conforme o autor sacerdotal há no firmamento janelas ou diques (7,11; 8,2); encontra-se a mesma concepção na Babilônia (Enûma êliš, 4, 138s). No dilúvio Deus abriu esses diques, fazendo assim confluir novamente as águas de cima com as águas debaixo, ocasionando novo caos (7,11).
Na divisão das águas, observa-se uma polarização de energias. Nas águas superiores, a maioria dos exegetas vêem o elemento masculino, o pólo positivo, o que na filosofia oriental, no I-Ching chinês chama-se princípio do yang (masculino, positivo ou ativo), e nas inferiores, o yng (feminino, negativo ou passivo). Na etiologia semita, encontra-se a figura dos mares e das águas profundas como a morada dos maus espíritos, enquanto o céu reporta-se à morada da divindade. O fato de criar primeiro o firmamento (o princípio masculino) demonstra a nítida concepção androcêntrica (para não dizer machista) do hagiógrafo em relação à sociedade humana.
Desconhecendo as leis físicas da evaporação da água, da formação das chuvas, e apenas vendo-as cair, o autor sacerdotal de Gn 1 supunha que as águas do céu eram as mesmas que existiam nos mares, tal como se "vê" a olho nu, único instrumento disponível que ele dispunha. É preciso, como foi dito, dar aquele “desconto cultural” ao autor e às condições de entendimento das coisas, no tempo em que o texto foi escrito. Mas a situação das águas ainda era indefinida. Havia ainda mais separações a fazer, e elas só iriam acontecer naquele momento que se convencionou chamar de “terceiro dia”. É por essa razão que no segundo dia não tem o “viu que era bom”, porque a obra iniciada não estava acabada; ela só vai ficar completa no dia seguinte.
O terceiro dia
9 Deus disse: “Que as águas que estão debaixo do céu se
ajuntem num só lugar, e apareça o chão seco”. E assim se fez.
10 E Deus chamou ao chão seco “terra”, e ao conjunto das
águas “mar”. E Deus viu que era bom. 11 Deus disse: “Que a
terra produza relva, ervas que produzam semente, e árvores
que dêem frutos sobre a terra, frutos que contenham
semente, cada uma segundo a sua espécie”. E assim se fez.
12 E a terra produziu relva, ervas que produzem semente,
cada uma segundo a sua espécie, e árvores que dão fruto
com a semente, cada uma segundo a sua espécie. E Deus viu
que era bom. 13 Houve uma tarde e uma manhã: foi o terceiro
dia.
Aqui vemos o Criador completando o que havia começado no dia anterior. Encoberta pelas águas, a terra não tinha ainda condições de produzir alimentos para os seres (animais e homens) que seriam criados dali para a frente. Por esta razão, Deus resolve estabelecer nova etapa de sua Criação, fazendo surgir, por separação, das águas, a terra firme. As “águas inferiores” ainda inundavam a terra. Sob a voz de Deus, as águas fugiram (cf. Sl 104,6-9). A partir daí, Deus juntou as águas, mayim, em só lugar, a que chamou de mar. À porção seca ele deu o nome de eretz, terra. Dirigindo-se aos injustos de seu tempo, o profeta do exílio vê nessa separação uma demonstração do poder do Criador e uma razão para temê-lo e adorá-lo.
Ouçam isto, povo sem bom senso e sem inteligência. Eles têm olhos mas não vêem, têm ouvidos mas não ouvem. Nem a mim vocês temem? – oráculo de Javé. Vocês não tremem na minha presença? Fui eu quem fez a areia como limite do mar, uma fronteira eterna que ele não ultrapassa; suas ondas se agitam, mas nada conseguem: elas estrondam, mas não conseguem ultrapassar (Jr 5, 21s).
No ato grandioso de separar a água da terra, o hagiógrafo vê um desafio da grandeza criadora de Deus à pequenez humana. Se o homem não pode compreender as leis da Criação, como pode questionar as ações do Criador? Em Jó (38, 4-11) há uma crítica de Deus à arrogância do mar, cujo destinatário não é bem o mar, mas o ser humano, em sua atitude de questionar seu Criador pelos sofrimentos do exílio. Nunca esquecendo que o livro de Jó é uma lenda, uma parábola, que retrata a relação entre o homem e Deus. As perdas de Jó são tipo bíblico das perdas do povo no exílio. Perdeu tudo e depois conseguir reaver tudo...
Ao dizer que a terra “produziu relva, ervas que produzem semente, cada uma segundo a sua espécie, e árvores que dão fruto com a semente, cada uma segundo a sua espécie...” (v. 12), o autor sagrado está fazendo menção à perfeição da natureza, onde cada elemento deve cumprir seu papel. Não produzir é não-vida, tornando-se uma oposição ao projeto do Criador.
Na Vulgata e na “História Sagrada” os Pais da Igreja escreveram que Deus coegit aquas in unum locum, ou seja, separou os dois elementos, água e terra, juntando as águas num só lugar, para que a terra emergisse e pudesse, desta forma dar início ao ciclo produtivo das sementes, dos frutos e das ervas.
O ato de produzir os alimentos (sementes e frutos), mostra que nesse ciclo é que a vida e a Criação, materialmente se perenizam. No Novo Testamento, Jesus mandar cortar uma figueira, que podia ser muito bonita e ter folhas muito vistosas, mas não conseguiu dar frutos (cf. Mt 21, 18-22). Mais adiante, o Mestre refere-se ao grão de trigo. Se ele cair na terra, ficar enterrado e não der fruto, morre (cf. Jo 12, 24). No contexto do terceiro dia, Deus é o Criador, o soberano que dá ordens e as coisas acontecem como ele preconiza. Ele é o artesão que modela, e modelando contempla, satisfeito, a boa obra que realizou; como poeta, ele realiza a poesia do cosmos, quando pronuncia os nomes primigênios, que significam e trazem vida.
Hoje, coisas e atitudes que ameaçam a vida, como o aborto, a violência, o desrespeito ao ser humano, a clonagem, o comércio de órgãos, a modificação genética dos alimentos e a destruição da natureza, tornam-se atos contrários ao trabalho divino, em especial ao esforço deste terceiro dia. O certo é que, nesse terceiro dia, das águas do abismo surge a porção seca. Assim como ocorreu no primeiro dia, entre trevas e luz, aqui ocorre a separação entre a morte e a vida. Coroando essa etapa, no final do terceiro dia, olhando o que havia feito,
... Deus viu que era bom... (v.12).
Na conclusão dessa etapa parcial, lê-se, mais uma vez, que “houve uma tarde e uma manhã: foi o terceiro dia (v. 13), a mostrar-nos que, conforme se viu, esse chavão refere-se a um tempo incomensurável, um espaço temporal útil para o desenvolvimento das coisas, elementos e seres criados. Concluído o terceiro dia, resta-nos refletir e louvar a sabedoria de Deus, preparando-nos para o estágio seguinte, o quarto dia, quando a Criação avança para seu final. Os luzeiros celestes vão separar o dia da noite, e indicar meses e anos, estações e períodos cíclicos do plantio e das colheitas.
O quarto dia
14 Deus disse: “Que existam luzeiros no firmamento do céu,
para separar o dia da noite e para marcar festas, dias e anos;
15 e sirvam de luzeiros no firmamento do céu para iluminar a
terra”. E assim se fez. 16 E Deus fez os dois grandes luzeiros:
o luzeiro maior para regular o dia, o luzeiro menor para regular
a noite, e as estrelas. 17 Deus os colocou no firmamento do
céu para iluminar a terra, 18 para regular o dia e a noite e
para separar a luz das trevas. E Deus viu que era bom. 19
Houve uma tarde e uma manhã: foi o quarto dia.
A composição do quarto dia traz consigo um caráter programático: os luzeiros (sol, lua e estrelas) vão marcar os eventos da vida dos seres, suas fases de vida, de reprodução, bem como regular os demais ciclos da natureza. Para não dar mais argumentos aos pagãos, adoradores de corpos celestes, e também não valorizar as divindades babilônicas, de quem Israel era escravo, o autor P suprime os nomes característicos. Nessa missão, sol, lua e estrelas, são chamados apenas de luzeiros. Desta forma, fica consumando seu rebaixamento, como coisas criadas pelo Deus de Israel. Conforme ensina Ruiz de La Peña,
A extensão concedida ao relato da origem dos astros é compreensível quando recordamos sobre as qualidades sacras a eles atribuídas, inclusive através dos cultos pagãos. Israel também padeceu repetidamente do fascínio que exerciam esses corpos celestes (cf. 2Rs 23,5.11; Jr 8,2; Dt 4,10). A versão de P (vv. 14-15) conserva duas das funções que o relato mítico atribui aos astros: “iluminar” e “separar o dia da noite”, mas suprime a terceira (“dominar”).
A função exclusiva dos luzeiros criados por Deus é separar (a noite do dia) e iluminar. Para evitar deslizes religiosos, ou idolatria (que existia, em face da inculturação) o autor não fala em sol (mas em “luzeiro maior”) nem em lua (“luzeiro menor”). Como características dos luzeiros, o autor sagrado emprega três verbos:
• iluminar
determinar quando é dia e quanto é noite;
• regular
servir de sinal, mostrar pela alternativa do dia e da noite, os
meses do ano e suas estações; em algumas traduções
bíblicas aparece como governar;
• separar
as horas de trabalho, sono e descanso (cf. Sl 104, 19-23);
As divindades da Babilônia, lá mesmo onde os israelitas estiveram exilados, eram o sol, a lua, as estrelas, a ventania, o trovão, as águas do mar e dos rios, entre outros. E pior: subjugado militar, econômica e psicologicamente por seus captores, o povo aos poucos foi aderindo às crenças dos babilônios. Contra esses desvios, o hagiógrafo faz questão de mostrar que a luz dos corpos celestes é diferente da luz do primeiro dia.
Teológica e biblicamente, a luz é superior à luminosidade dos astros. A luz do primeiro dia é o poder organizador de Deus, que no encabeçamento (berešit) – para usar uma expressão do biblista Isidoro Mazzarolo – inicia seu trabalho.
No Oriente Médio, da Mesopotâmia ao Egito, bem como na Índia, Anatólia e Grécia, os astros eram vistos como divindades, a quem se atribuía poderes criativos, de mediação ou impetração. Ao relatar, ao povo exilado ou em processo de volta, bem como a seus opressores, a criação do sol, da lua e das estrelas, o autor sacerdotal (Tradição P), com muita sutileza, está declarando a superveniência do Deus-Elohim sobre as demais deidades. O sol (Marduk) e a lua (Sin ou Yarih) eram deuses babilônicos. As relatar a Criação levada a efeito por Deus, o autor afirma: o nosso Deus criou os deuses de vocês!
O panteão babilônico não possuía apenas Marduk e Sin como divindades. Havia no Oriente Médio um teocrasia (fusão) de deuses, onde alguns povos acresciam à sua galeria outras divindades estrangeiras, gregas, egípcias e cananéias, como Anät, Asklépios, Ašera, Aštarte, Aton, Baal, Isis, Ištar, Moloc, Môt, etc. Como eram os mais importantes (sol e lua), damos uma panorâmica abaixo de Marduk e Sin:
Marduk era uma divindade sumeriana que ocupou importante posição no panteão babilônico. Filho de Enki, recebeu de Enlil o poder de derrotar as forças do caos. A partir do século XVII a.C. tornou-se o deus supremo da região. É visto com “o deus-sol”.
Sin era a deusa-lua (representada por uma lua crescente); divindade (uns dizem que masculina outros feminina) acádica de Ur, Arã, Assíria e da Babilônia, de característica lunar , responsável pela fertilidade das lavouras, dos animais e dos homens.
Ao rebaixar os deuses babilônicos ao nível de meras criaturas, o autor está declarando – a fim de que se evite idolatrias – que os corpos celestes, embora importantes, são meros elementos ou criaturas, não sendo merecedores de reverência ou adoração. Fiel ao estilo e ao gênero narrativo, o autor fecha seu texto do mesmo jeito dos anteriores:
E Deus viu que era bom. Houve uma tarde e uma manhã: foi o quarto dia (vv. 18-19)
O quinto dia
20 Deus disse: “Que as águas fiquem cheias de seres vivos e
os pássaros voem sobre a terra, sob o firmamento do céu”. 21
E Deus criou as baleias e os seres vivos que deslizam e vivem
na água, conforme a espécie de cada um, e as aves de asas
conforme a espécie de cada uma. E Deus viu que era bom. 22 E
Deus os abençoou e disse: “Sejam fecundos, multipliquem-se e
encham as águas do mar; e que as aves se multipliquem sobre
a terra”. 23 Houve uma tarde e uma manhã: foi o quinto dia.
Ao ingressar no quinto dia da Criação, observamos que a obra de Deus vai se estruturando como a construção de uma pirâmide. A base (o primeiro e segundo dia) já está feita, o corpo está igualmente montado e tudo aponta para o ápice, onde no sexto dia o Criador vai chamar à vida o homem e a mulher. Na quinta etapa do projeto de Deus, começa a Criação dos seres vivos. Os mares, vistos até então como uma ameaça, vão mudar de papel, tornando-se o lar dos peixes (idéia de alimento). O mar, hoje, ainda é sinônimo de muitas ameaças (naufrágios, afogamentos, maremotos, ataques de tubarões, etc.). Imaginem a visão do mar no século VI a.C.
Por causa de tantas ameaças (físicas e metafísicas), o mar era considerado como “morada dos maus espíritos”. Mesmo depois de escrita a Criação, inclusive no tempo de Jesus, o mar da antigüidade era visto como “refúgio dos anjos decaídos” (demônios), etc. A finalidade do texto criacional é estabelecer uma harmonia entre pássaros, peixes e os seres humanos, plena de fecundidade e beleza. O ato de exercer domínio sobre os animais, significa cuidar deles. O hábito de matar os animais, alimentando-se de sua carne, seria adotado muito depois, por causa do pecado, após o dilúvio.
A tônica do quinto dia é o povoamento, com peixes e aves, das águas e do ar. No v. 21 reaparece o verbo barah, criar alguma coisa maravilhosa, como só Deus é capaz de fazer. Mesmo dirigindo-se a criaturas primárias (os grandes animais só irão aparecer no sexto dia), Deus recomenda-lhes fecundidade e multiplicação (v. 22). Aqui aparece como uma curiosidade do narrador P, onde a fecundidade torna-se uma constante em seus textos.
Essa tendência vai infletir diretamente na realidade pós-exílica. Depois da drástica redução populacional de Israel, por causa das guerras e do exílio, a ênfase voltou-se para a fecundidade, para que o povo tivesse mais filhos, contribuindo assim para o povoamento das cidades e dos campos da Palestina. Chama-nos a atenção a referência feita no v. 21, onde é relatada a criação dos animais (baleias, monstros?) marinhos, vistos pelas culturas míticas como senhores ou encarnações do caos primordial. Lá eles eram divindade, aqui, criaturas como as demais.
Houve uma tarde e uma manhã, e esses dois espaços de tempo foram extremamente importantes para a vida e a sobrevivência da humanidade. Um novo conjunto de seres estava criado. E Deus viu que a forma como haviam sido criados e colocados era boa. E assim ele fez no quinto dia.
O sexto dia
24 Deus disse: “Que a terra produza seres vivos conforme a
espécie de cada um: animais domésticos, répteis e feras, cada
um conforme a sua espécie”. E assim se fez. 25 E Deus fez as
feras da terra, cada uma conforme a sua espécie; os animais
domésticos, cada um conforme a sua espécie; e os répteis do
solo, cada um conforme a sua espécie. E Deus viu que era bom.
26 Então Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem e
semelhança. Que ele domine os peixes do mar, as aves do céu,
os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que
rastejam sobre a terra”. 27 E Deus criou o homem à sua
imagem; à imagem de Deus ele o criou; e os criou homem e
mulher. 28 E Deus os abençoou e lhes disse: “Sejam fecundos,
multipliquem-se, encham e submetam a terra; dominem os
peixes do mar, as aves do céu e todos os seres vivos que
rastejam sobre a terra”. 29 E Deus disse: “Vejam! Eu entrego a
vocês todas as ervas que produzem semente e estão sobre
toda a terra, e todas as árvores em que há frutos que dão
semente: tudo isso será alimento para vocês. 30 E para todas
as feras, para todas as aves do céu e para todos os seres que
rastejam sobre a terra e nos quais há respiração de vida, eu
dou a relva como alimento”. E assim se fez. 31 E Deus viu tudo
o que havia feito, e tudo era muito bom. Houve uma tarde e
uma manhã: foi o sexto dia.
O fecho dos seis dias
Gn 2, 1 Assim foram concluídos o céu e a terra com todo o seu exército. 2 No sétimo dia, Deus terminou todo o seu trabalho; e no sétimo dia, ele descansou de todo o seu trabalho. 3 Deus então abençoou e santificou o sétimo dia, porque foi nesse dia que Deus descansou de todo o seu trabalho como criador. 4a Essa é a história da criação do céu e da terra.
Sábado: o descanso de Deus e do homem
Gn 2, 2 No sétimo dia, Deus terminou todo o seu trabalho; e no sétimo dia, ele descansou de todo o seu trabalho. 3 Deus então abençoou e santificou o sétimo dia, porque foi nesse dia que Deus descansou de todo o seu trabalho como criador.
No exílio o povo está sem o Templo, sem ritual, sem sacrifícios, etc., e então a fidelidade de Israel é marcada pela circuncisão e a observância do sábado. O Código P, que elabora esta peça literária, faz com que Deus apareça como um trabalhador, que descansa no sábado. E no texto nós vemos que há oito obras em seis dias. Por que não oito dias de trabalho e descanso no nono? Porque o autor quer colocar tudo o que conhece no esquema de seis dias, para firmar a questão do descanso sabático.
Na Bíblia, existem diversas expressões de antropomorfismo (Deus com formas humanas) e antropopatia (com sentimentos ou defeitos humanos). Deus, se sabe, não tem necessidade de descansar tal como o homem. Ele é perfeito, e em sua perfeição não se cansa. O profeta Isaías pergunta: “Vocês não sabem, não ouviram que o Eterno Deus, o Senhor, o Criador dos confins da terra, não se cansa e nem se fatiga ?” (Is 40,28). O verbo Shâbat tem o sentido de interromper, ou deixar de... ou ainda descansar. A finalidade do Shabat era lembrar a humanidade da necessidade de dedicar um dia ao Senhor. O Sábado foi criado por causa do homem, frisou Jesus. O Shabat nada tem haver com o dia após a sexta-feira, mas sim um dia santificado, reservado ao Criador. Shabat quer dizer “repouso” e o número sete aponta para a perfeição. Porém, isto serias modificado no cristianismo, pois Cristo ressuscitou no domingo (cf. 1Cor, 16,2; At 20,7; Ap 1,9s).
Teólogo leigo, doutor em Teologia Moral,conferencista, assessor de cursos de teologia e pregador de retiros de espiritualidade. O presente texto faz arte de um conjunto de duas aulas que o autor ministrou em um “Curso de Teologia Popular” no Vicariato de Guaíba, RS.