Notas Culturais
I
A crítica a prostituta é a ilusão da sociedade que defende o real. A miséria de sua condição (e conseqüentemente a culpa consciente ou inconsciente desta) é canalizada em sua pessoa, para, assim, encobrir de véus o “performismo” abstrato que criamos na sociedade do valor-de-troca. Georg Simmel em “Algumas reflexões sobre a Prostituição” relata: “A indignação moral que a ‘boa sociedade’ manifesta em relação a prostituta é, sob muitos aspectos, matéria de ceticismo. Como se a prostituição não fosse a consequência inevitável de um estado de coisas que essa ‘boa sociedade’, justamente impõe ao conjunto da população!”. A prostituta é o espelho social ambulante. Espelho indesejável. Ela precisa ser culpada, sentir-se inferior, participante de um “sub-mundo”. Miserável, que vende seu corpo por dinheiro e sua força de trabalho para cafetões. “A prostituta é a culpada pela prostituição”, é isto que esta “boa sociedade” grita aos quatro ventos, em tempos onde o valor-de-troca dominou todas as esferas sociais. O dinheiro traz a impessoalidade do equivalente. Ao igualar o corpo as demais mercadorias, a prostituição é o rebaixamento da realidade individual a um valor-de-troca específico. No capitalismo tardio o capital tornou-se imagem (Debord), a prostituição tornou-se um espetáculo, com suas artimanhas. O prazer corporal é o guia desta sociedade, onde é de sua necessidade vital encontrar pessoas dispostas a tratarem seu corpo como uma mercadoria, em forma de imagem na maioria das vezes. A prostituição fragmenta-se. As que vendem o corpo sem mediações continuam como a “geni” dos velhos tempos. As que vendem mediadamente gozam do respeito da “alta prostituição” de outrora (o “bom” casamento por exemplo). O rápido prazer sensível proporcionado pelos espetáculos corporais é proporcional a culpa pelo rebaixamento da condição humana. Assim, esta sociedade para manter o princípio do real transfere a culpa de seu próprio sadismo para a figura da prostituta, obviamente, da baixa prostituta.
II
Normalmente quando se trata de crimes bárbaros com ampla repercussão midiática, a opinião pública e a dos especialistas são contundentes, duras, expressam indignação. O réu não é culpado antes da sentença, mas sim, já antes da investigação. Os mais “religiosos” (ou oportunistas?) como José Luiz Datena convoca sua cruzada contra os que querem tirar Deus do coração da família brasileira; chama de monstros cruéis, animais, dignos de pena de morte, os praticantes de tais crimes. Recentemente, no caso Eliza Samudio, os “comentaristas jurídicos”, a imprensa policialesca, e os famosos que “gostam de dar pitacos” foram tomados por um súbito espírito mediado, clamando pelo “bom” senso. Não se escutou até agora um “animal”, “assassino” ou “monstro” referindo-se aos supostos culpados. No caso em questão, trata-se de um famoso (e obviamente com ligações na melhor das hipóteses afetivas com as pessoas do mundo da fama) que hipoteticamente planejou a morte de uma atriz de filme pornô, considerada indigna, vil e interesseira pela sua condição. A imprensa esportiva ao comentar o assunto é quem mais demonstra seu universo conservador. Podemos observar o discurso criado em torno das “roubadas” que uma “Maria Chuteira” pode ocasionar. Exemplos são dados, assim o singular vira universal como dita as contra-ditas cartilhas da Indústria Cultural. Assim, tentam fazer mediações para nos prevenir sobre os perigos de uma prostituta em sua vida. “Seres indignos e interesseiros”. A indignação perante a morte de um espelho dos dejetos da Sociedade do Espetáculo é quase nula. A puta não é digna de pena, afinal, ela é considerada culpada pela sua sorte, ou seria seu destino? A baixa condição da prostituta é revelada com piadas sádicas, como: “Meu DVD pornô pirata tá vendendo a beça...É pirata, sem uma perna, sem um olho...”. Dejeto tão comprometedor que lidera as vendas de filmes pornôs nas bancas de camelô no país depois de sua morte. Exemplo da sociedade doentia em que vivemos. E por ser a verdade escancarada, escuridão reluzente, a prostituta é massacrada. É a dura condição que ninguém quer olhar por que é mais fácil culpá-las. Ela revala, como figura alegórica, as crueldades do real na estrutura da prostituição, encarnada e estando nas entranhas de nossa sociedade.
III
O galã é a mímesis das aventuras “espetaculares” da Mercadoria. O galã quer conquistar todas as mulheres do mundo para depois negá-las. Prova de superioridade. Desejo de todas, limitado para poucas. Pena, que o pobre galã não saiba que sua condição é pura magia. Condição mimética, que assim como o mundo das Mercadorias, assenta-se na simulação. O resplandescente mundo das mercadorias (representado pelo seu templo: Shopping Center) quer apresentar-se como as luzes do novo. Mundo encantado, fantasmagórico. Mundo da dessublimação repressiva. O sonho transforma-se em mercadoria e a realização vira simulação. Desejo daquilo que você não pode ter. As astúcias viram peripécias. Mas, por detrás do palco iluminado existem as sombras. Este mundo encantado que é vendido 24 horas do dia de todas as maneiras possíveis é vedado. É um mundo para poucos. E os que conseguem, logo angustiam-se, por que este mundo alcançado (domínio para eliminar o caos) não resolveu seus problemas, como prometia o anúncio. Mundo sádico, onde os desejos são inalcançaveis e o prazer é simular a impossibilidade. Assim, a ilusão do homem prometido é a mímesis comprometida e comprometedora da terra dos espetáculos prometidos.
IV
A criança cria seus sonhos ou seus sonhos são criados? Biopolítica? Modulam sua subjetividade, e ela recria-se. Torna-se adulto. Molda seus sonhos ao princípio da realidade. Torna-se velho e sabe que não conseguirá. A morte se aproxima... A sua segunda solidão... Dizem que o consumo resolve tudo, ele sabe que não. Sabe que o mundo que lhe prometeram é uma ilusão. Eis, a decadência. O desespero não está na insuportabilidade da dor, mas no silêncio.
V
O mundo infernal da repetição é um ditame da Indústria Cultural. Nada pode ser mais tautológico do que a “parada de sucesso” estar na parada de sucesso. No Twitter, micro-blog, existe um ranking conhecido como “trending topics” onde aparecem os dez assuntos mais faladas no twitter no mundo ou em um país específico. Acontece que, com certa frequência, os “TT’s” (como ficou conhecida a parada de sucesso do twitter) estão entre os dez assuntos mais ditos. Os usuários discutem sobre quem vai entar no TT, fazem campanha, perguntam o que os que ali estão fizeram, etc. Assim, a “parada de sucesso” virou sucesso e entrou em si própria. Prova assombrosa, escurecedora e clarividente, que por detrás do mundo infernal da repetição biopolítica de uma sociedade administratada ou unidimensional, existe uma dialética carregada de tensões.
VI
O riso tornou-se nosso grande paradigma. Decifra-me ou te devoro. Por que rimos de coisas tão sérias, macabras e trágicas? É impossível assitir “Bastardos Inglórios” no cinema e não notar o riso “pastelônico” da platéia com os banhos de sangue. Tempos do cinismo? Eis uma grande questão. Como avalia Safatle não me resta dúvida que o riso e a ironia são os maiores legitimadores do real na Sociedade do Espetáculo (pastelão). Nisto, consiste o cinismo: rir de si mesmo para ficar tudo como está. Assim, a dessublimação repressiva cumpre seu caminho de esvaziar as insatisfações. “Nudez que não desmascara nada” afirma Safatle. Terry Eagleton é mais contundente, embora não de todo justo: “Em alguns círculos culturais, a política da masturbação exerce fascínio muito maior do que a política do Oriente Médio. O socialismo perdeu lugar para o sadomasoquismo. Entre estudantes da cultura, o corpo é um tópico imensamente chique, na moda, mas é, em geral, o corpo erótico, não o esfomeado”.