Arte que passa

Arte que passa

Hélio Delmiro. Tem um solo do Hélio, na música Rancho Fundo (de Lamartine Babo), que é, sem tirar nem por, linguagem de ET. Isso tá registrado em disco, na inesquecível data de 1982, foi o presente intergaláctico que César Camargo Mariano recebeu, para amenizar um pouco a dor da perda. César lançou na praça, em maio de 82, o disco Samambaia, um duo dele e do Hélio, respectivamente piano e violão. Em janeiro do mesmo ano o país inteiro sentira visceralmente o passamento de uma de suas maiores intérpretes, Elis Regina. César e Elis foram companheiros, grandes companheiros de jornada.

Linguagem de ET é apenas uma maneira tosca de falar sobre o solo do Hélio, mas ainda assim preferível a qualquer elucubração técnica sobre o assunto. Arte está profundamente vinculada ao gosto do observador. Ponto. Mas é algo que parte do artista e, no caso do Hélio, ou nesse caso específico, está profundamente ligada a um saber adquirido, além de tudo aquilo que se possa chamar de talento inato.

Em 1980 Delmiro lotou o Cultura Artística para uma platéia de músicos. Ele sozinho no palco, violão em punho, mais o apetrecho em que se apóia o pé esquerdo, no caso do músico ser destro, e, marcando o tempo com o pé direito, mostrou a quantas andava o instrumentista brasileiro.

Que se diga a bem de filosofias ocultas que o Cultura Artística esteve, naquele(s) ido(s), todinho impregnado com moléculas de altíssima vibração. Trigueirinho dava suas palestras por lá, por lá também se viu o Antonio Fagundes num desempenho antológico de Nostradamus.

Em 82 sai o solo de ET, e César Mariano explica, na contra capa do disco, que eles gravaram aquilo tudo de uma tacada só, sentaram e tocaram, bebendo água mineral.

Mostrei essa gravação do Delmiro para um rapaz, estudante da ULM, ser vivente na casa dos 20 e poucos anos e ele pediu pra ouvir de novo, e de novo, e de novo. Enquanto ele ouvia, um novo mundo se abria na sua consciência. Estava escrito na cara dele. Já tinha ouvido falar do Hélio, porém, aquilo, nunca tinha ouvido.

Um amigo meu, Osvaldo Gigueto, professor de música e guitarrista, me contou que quando Os Paralamas do Sucesso lançaram aquele disco que foi produzido em Londres, um crítico de grande jornal desceu a lenha. Osvaldo não deixou barato. Além de músico ele tem formação acadêmica em produção de áudio, leia-se I.A.V., e mandou uma carta para o jornal exigindo uma explicação convincente por parte do critico. A argumentação do Osvaldo era pura e simples: enquanto músico, o que de fato você está criticando no disco? Porque eu sei que deu um baita trabalho para os caras chegarem naquela sonoridade. Resumo da história, o crítico mandou uma carta dizendo alhos e bugalhos e confessou não ser músico.

Aí é que está.

Muita gente pensava que a “desconstrução” de Picasso, que viria a ser chamada de Cubismo, era um tapa buraco para uma suposta falta de técnica do artista. Demorou um pouco para que o grande público descobrisse que Picasso pintava o naturalismo como um mestre, que ele se empenhava seriamente nessa “desconstrução”, que ele temia um vale tudo nas artes, e que seu quadro “Les demoiselles d'Avignon” – até onde se possa provar, é a obra com mais estudos feitos até hoje – 1.500.

Todavia, gostar ou não da obra são outros 500.

Para, digamos, em março de 82, o Hélio chutar o pau da barraca e fazer um solo como aquele, de bate pronto, genialidade é pouco para exprimir em palavras. Entra em campo o fator esforço, um equívoco que durante anos e anos singrou nosso país de ponta a ponta com relação a música – basta ter talento. Desculpe dizer, basta o cacete. Para o cara sentar ali e enfiar a mão no instrumento daquele jeito, saiba, ele antes teve de passar anos e anos sentado num banquinho subindo e descendo escalas. Entretanto, para que sua performance não se torne uma mera repetição de notas, mas sim, e sobretudo, uma elaboração genial de possibilidades melódicas em 63 segundos cravados, aí então, faça o favor, o fator talento entra com as duas pernas.

Vale lembrar aos incautos e aos esquecidos que o violão de 82, um bom violão, difere um tanto da super tecnologia de hoje aplicada a esse instrumento.

Agora entram algumas palavras chaves, que no fundo não passam de pinceladas que podem ser aplicadas sobre arte e gosto artístico: Lógica paralela/ Não ilusionismo radical/A subjetividade distorce a realidade/ O discurso nunca dá conta do objeto da discussão.

Lembrando que palavras são pensamentos, salientando que quanto mais palavras você conhece, melhor você vai conhecer seus pensamentos, reiterando que palavras chave podem ajudar a embaralhar ou a clarear as idéias no contato com novos horizontes. Arte tem que abrir horizonte. Senão vira um negócio de demente.

As palavras chave acima foram muito usadas, durante décadas, entre zilhares de outras palavras, para debater o surgimento do Expressionismo, movimento que nasceu com o nome Der Brucke (A ponte), em 1905, em Dresden, Alemanha, e durou até 1913. Costuma-se dizer, sem floreio, que o expressionismo foi criado a partir da necessidade de uma renovação da linguagem. Ponto.

Indague honestamente com seus botões, ou com os botões dos outros, em termos de arte - cadê a renovação?

Em 1982 o solo do Hélio não estava inovando nada, daquela época Deus te livre, Heraldo Do Monte tocava nas rádios, sim, parece filme de ficção, Joe Pass estava vivo e rodando o mundo, muito embora, desde que inventaram o gravador, ninguém morre no mundo da música, os desenvolvedores da técnica super rápida - Paco De Lucia, John Mclaughlin e Al Di Meola extasiavam platéias em dois hemisférios, era o principio dos 80, Madona suspirava na estufa e Michael Jackson prestes a saltar do seu próprio e vertiginoso trampolim de sucesso alucinante, mesmo considerando que esses dois estilos diferem bastante do ponto de partida desse texto, ninguém pode dizer que o trabalho deles não seja artístico.

Se o Hélio não inova, qual o motivo da referência?

Bom, aí é que está. Primeiro, na vertente que engloba ponto de vista pessoal, eu acho que inova e muito, seja na praia música instrumental brasileira, seja na praia universal. Simplesmente pela quantidade de expressões que ele utiliza ali. Depois pela técnica. Para começo de conversa aquela técnica é para pouquíssimos, e digo isso de cadeira. Posso dizer isso para qualquer escrevinhador de revista musical sem me apoiar em nenhum livro ou teoria. Palavra de escotério, perdão, escoteiro.

Essa discussão para dois leitores, todavia, parte unicamente da mesma questão que os senhores Ernst Kirchner e Erich Heckel, (expressionistas), travaram nalguma noite friorenta na Dresden que nem sonhava em ser o local mais bombardeado da história planetária, 30 anos mais tarde.

Cadê a renovação da linguagem?

Se você me falar em arte digital peço, humildemente, para voltar no tempo e ver o labor do rival de Serguei Mikhailovitch Eisenstein. E depois, ainda no tempo, ver o que realizou Klaus KPT, o idealizador de grande parte do que se chama arte digital. Pois é...

Porque se hoje o resultado das expressões de Kirchner, Kandinsky, Franz Marc, Max Beckmann, ou antes, se hoje “O Dia Vítreo” de Heckel parece banal perante uma cultura soterrada pelo incrível Photoshop, o incrível Photoshop só se tornou crível graças ao trabalho deles, deles e de muitos outros (vide Dadaístas, Futuristas e Surrealistas), o Manifesto Futurista foi redigido pelo ensandecido Marinetti em 20 de janeiro de 1909, tudo gerado mais ou menos no mesmo período, 1905 aqui, 1908 ali, e mesmo eles tiveram precursores, vide Van Gogh e Matisse, e por fim, o próprio Delmiro ouviu primeiro antes de fazer. Evidente.

Te digo, sem nunca ter falado com ele ou lido qualquer coisa a seu respeito, que ele escutou atentamente os senhores Charlie Christian e Django Reinhardt. Esses guitarristas, o primeiro, negro norte americano dos anos 20 e o segundo, cigano francês poupado pelos nazistas, que discordavam de sua raça, mas gostavam de seus acordes, e de seus solos, aposto todas as minhas fichas como o Hélio os ouviu com reverência. Do nada, nada se cria, óbvio como ovo de galinha. Agora, vai fazer um ovo de galinha... Ou peça para um profissional tentar tirar um solo do guitarrista Delmiro, seja em Night and Day ou no baião Pro Zeca. Depois me conta como anda a arte hoje.

Uau, em 2010 comemora-se 40 anos do passamento do, abre aspas, Maior Guitarrista de Todos os Tempos, Jimi Hendrix. Pela madrugada. Gostaria de apertar a mão do gênio que criou a máxima: o papel aceita tudo, o ouvido não.

Hendrix tem aficcionados e em geral, quando ocorre esse fenômeno, as mentes se estreitam e a argumentação escasseia. Ok, Jimi inovou, mas Arrigo Barnabé também, (uma inovação que começou na década de 20 com Shoemberg), e mesmo que relativamente uma coisa não tenha a ver com a outra, te garanto que você não mostra dodecafonia pra sua namorada, nem mesmo no último encontro. Duchamp inovou barbaridade, a mesma crítica que não aceitava o Dadaísmo considerou-o “o artista do século”, paradoxos... Pinçando outro exemplo da cartola, somente no hemisfério norte e nalgumas escolas de comunicação, alguém citará o nome de Robert BrownJohn, designer e criador fenomenal.

Arte para muitos, arte para poucos, talvez Delmiro e BrownJohn sejam para poucos, impossível afirmar em definitivo, sei que os ismos aqui citados plasmaram-se quando o mundo estava na iminência de uma guerra terrível, ademais, falava-se em nacionalismos, totalitarismos, ora com repúdio, ora teciam elogios velados ou até abertamente, o caso é que estavam cutucando a coisa com um bastão, a fim de transformar. Estavam buscando.

Hélio abre o solo com uma chamada country, daí desembesta num carrossel de modos e cromatismos com cada acento, qual o que, na América dos 80 eles tinham um prêmio para melhor solo executado ao vivo (não sei se ainda existe), Larry Carlton levou o troféu de 87 com sua versão do clássico So What (de Miles Davis), vi muito músico gabaritado torcer o nariz para essa performance, não vi ninguém falar meia vírgula de Delmiro.

Com pouca ou muita inovação, o Rancho Fundo de Hélio e o So What de Carlton tem um artigo em comum, num mundo de arte sem inovações: excelência.

A excelência deles, e lógico que de incontáveis outros, mantinha o circo em pé e se tornava referência para quem estava no caminho. Hoje o caminho parece estreito. Ainda existem guardiões, poucos em face de mares e mares de boçalidades em qualquer área: cinema, música, artes plásticas, teatro, literatura...

É de se perguntar, em meio a tanta arte que passa, o que de fato vem com o brilho da excelência, pois, ao que parece, estamos mais que locupletados de porcarias e invencionices debilóides.

Alguma coisa pode até surgir com uma embalagem modernosa, mas se esvazia numa fração e não deixa nada para a posteridade. Sequer passa.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 26/11/2010
Reeditado em 11/06/2014
Código do texto: T2638074
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