PSICANÁLISE DA ARTE

No plano natural dos seres não encontramos dois indivíduos perfeitamente iguais. Esta realidade se verifica tanto no reino vegetal como no animal. Na vegetação constatamos que não somente as árvores se diferenciam, mas nem mesmo encontramos duas folhas perfeitamente idênticas.

No reino animal esta diferença aparece bem Marcada entre os seres humanos. Poderíamos percorrer os quadrantes da terra e jamais encontraríamos duas pessoas totalmente iguais. Mesmo os gêmeos univitelinos apresentam diferenças profundas.

Se já é impossível encontrar duas pessoas iguais no aspecto exterior, mais difícil ainda se torna encontrar dois indivíduos psiquicamente idênticos. Esta individuação psicológica oferece campo vastíssimo para pesquisas. Constitui-se no fator primordial para a originalidade artística. No ser humano existe uma energia que o impele a querer progredir. Em alguns esta energia é mais intensa do que em outros. Em muitos nem chega a despertar. Pois, para que ela desperte, exigem-se condições e estímulos mínimos favoráveis.

Três fatores da Arte

Analisando o campo vastíssimo das produções artísticas, descobrem-se as condições básicas que ocasionam o surgimento das obras artísticas. A natureza humana é a mesma em todos os homens, mas o meio-ambiente, a educação e a hereditariedade formam a individuação psicológica de cada um. Estes três fatores são as bitolas pelas quais a natureza revela as suas principais capacidades. Não ensinamos aqui o determinismo, pois é dado ao homem também o livre arbítrio, pelo qual pode bloquear seus impulsos irracionais. Mesmo assim, é pelas realizações de cada um que podemos chegar a seu complexo mundo interior. O escritor, o escultor, o pintor e o músico revelam algo de seu subconsciente através da arte que realizam. O artista projeta para o mundo real o que povoa o seu mundo psicológico. Uma psicanálise da arte pode desvelar os estímulos que impeliram, e impelem, os artistas a produzir suas obras. Com certeza o poder econômico não foi o principal impulso artístico na história. Nunca a riqueza simplesmente promoveu, ou a pobreza barrou as iniciativas artísticas. Grande número de artistas do passado preferiram viver pobres a deixar de realizar suas obras.

A genialidade artística

Acreditamos que os artistas já nascem com suas potencialidades. Mas estas potencialidades devem ser atuadas. Para atuar estas potencialidades é exigida do artista, em geral, muita dedicação e força de vontade. Sem o desgaste de energias psíquicas, as potencialidades artísticas permanecem como que adormecidas. Por isto, muitos passam pela vida sem nunca atuarem o artista que dormia neles. Para que o artista desperte devem existir condições favoráveis, e se apresentar estímulos condizentes. Mas, quais os estímulos que incentivam os artistas para a ação? Muitas vezes são energias inconscientes que impelem o indivíduo a objetivar o que dorme no mais íntimo de seu ser. É interessante encontrar entre os artistas um bom número que apresenta deficiências físicas ou angústias psíquicas. Nestes casos, provavelmente, o subconsciente, para compensar as dificuldades, cumula estas pessoas com energias especiais para a realização de sua arte. A partir desta hipótese, talvez nunca teríamos tido o grande Machado de Assis se ele não tivesse sido epiléptico. Tolstoi, em sua obra “A Adolescência e a Juventude” coloca na boca de Nicolás, herói autobiográfico, esta frase: “Pareço-me feio, e como isto me desagrada trato de aparecer sempre original”. O próprio nome de “Aleijadinho” já revela o seu defeito. Os sofrimentos psíquicos também são considerados poderosos estímulos para as produções artísticas. O poeta Fagundes Varela morreu bêbado; Miguelangelo nunca se casou, pois considerava-se muito feio; Leonardo Da Vinci considerava uma tragédia ter nascido como filho ilegítimo; Schopenhauer e Nietzsche eram grandes introvertidos. Aliás, certo grau de introversão e solidão é necessário a qualquer artista.

Com estas considerações não quero generalizar, afirmando que todos os artistas são diferentes ou deslocados na vida real. Na vida prática, contudo, quase todos os grandes artistas demonstram uma certa genialidade, potencializada por dificuldades físicas ou cargas psíquicas. Em todos os campos artísticos constatamos a presença de muitas energias geniais, diferentes do homem vulgar. Por isto, estou inclinado a crer que energias especiais movem os artistas. E o uso destas energias representa um desgaste psíquico muito grande, transformando os artistas, muitas vezes, em personalidades um tanto difíceis na convivência. E assim, muitos gênios artísticos não são compreendidos em vida. A sua genialidade só se impõe depois de muito tempo, e mesmo apenas após a sua morte.

A intuição artística

As produções artísticas, geralmente, não se reduzem às leis da razão e da lógica. Movimentam-se no campo da imaginação e da vida afetiva. Antes de o artista objetivar sua obra de arte, o seu subconsciente já a havia chocado durante muito tempo. Por isto, muitas vezes, no mundo da arte nos confrontamos com fenômenos inexplicáveis, somente explicáveis se buscarmos sua raiz no subconsciente. A intuição do artista se aperfeiçoa no subconsciente e pode aflorar repentinamente no consciente. É a intuição. Conhecem-se fatos em que poetas, à noite, deixaram inacabadas poesias, por falta de inspiração. Pela manhã, ao acordarem, sem dificuldades terminavam a sua obra. Isto prova que o subconsciente trabalha durante o sono.

Sonho e Arte

Os psicanalistas, comparando as produções artísticas, afirmam que os dois fenômenos da arte e dos sonhos se regem pelas mesmas leis. Tanto o sonho como a arte procede do subconsciente. Desta forma, Dante Alleghieri é considerado um grande poeta porque conseguiu expressar o mundo do sonho com toda a realidade. Assim, um grande poeta seria aquele que consegue fazer em estado de vigília o que o homem comum faz durante o sonho. O filósofo Kant denomina o sonho de “poesia involuntária”.

Tanto os sonhos como as realizações artísticas satisfazem o íntimo do ser humano. Causam um prazer, uma satisfação. A produção estética é a satisfação dos desejos íntimos do artista. O sonho, por sua vez, é a satisfação imaginária dos desejos. No sonho as imagens provocam as reações afetivas que a realidade provocaria. A diferença está nisto: no sonho há introversão, na arte extroversão.

Narcisismo na Arte

A atividade artística encerra algo de misterioso. Os artistas, geralmente, gostam de ser admirados. Isto não significa uma anormalidade, pois quem se ama e admira, também gosta de ser admirado. A originalidade do artista, justamente, faz com que seja admirado, que falem dele. E isto é muito prazeroso ao autor. Este narcisismo e “complexo de espetáculo”, que acompanha o mundo da arte, teve uma gloriosa exceção na Idade Média, quando grandes artistas escolheram permanecer noanonimato.

Funções da arte

A Arte não é apenas um alívio para as tensões psíquicas dos artistas. Torna-se também um gozo estético para seus contempladores. A arte possui o dom de fazer sonhar. Sugere, orienta o espírito, e abre nele caminhos cheios de promessas. Especialmente a música possui o poder de provocar uma rica fluorescência de sonhos e imagens. Por isto, por exemplo, a música clássica nunca perderá seu encanto. Muitos ainda se deleitarão com suas harmonias através dos séculos, pois alivia o espírito, produz sensações agradáveis na alma, e expulsa ideias sombrias. A arte possui uma espécie de poder hipnótico. Cativa e imobiliza a atenção dos contempladores. Na dança artística, por exemplo, a excitação contínua inebria completamente os sentidos.

Por causa do grande poder da arte sobre a psique humana, os gabinetes dos psicanalistas, geralmente, oferecem ambientes artisticamente planejados: música agradável, luzes e cores que provocam uma sensação de bemestar nos clientes.

Como descobrir o artístico numa obra?

Existe no ser humano uma espécie de censor universal, capaz de classificar o valor das obras artísticas. Mas este critério universal varia muito conforme a cultura, o meio ambiente e o momento histórico. Por isto sucede que pessoas se sintam totalmente indiferentes ante obras de indiscutível valor estético. O gozo estético depende da beleza do objeto e da atitude subjetiva do sujeito que o contempla. As obras que, sob o pretexto de arte, se detém em explorar os desejos e os instintos irracionais do homem, nem sempre merecem o nome de arte.

A arte possui a função primordial de unir o “homem animal” ao “homem espiritual”. E, na harmonia desta dualidade humana, elevar o nosso ser até a contemplação do Artista do Universo. O Artista das estrelas, dos pássaros, das flores, da brisa suave, do murmúrio das águas, ou das forças rebeldes e trágicas da natureza. Desta forma, a arte revela a beleza das almas puras, e alerta para as paixões indomáveis do homem animal. A Arte nos situa frente a necessidade de construirmos a estética da vida. Se uma obra possui alguns destes atributos ela provavelmente é uma obra de arte.

Inácio Strieder é Professor de Filosofia – Recife/PE