MIM, JANE. YOU, TARZAN. (VIVE LA DIFFÉRENCE)
Durante tantos anos de ensino e uma fileira interminável de salas de aula, os assuntos que mais observei não serem perfeitamente assimilados pelos estudantes do ensino médio e universitários foram: coesão e coerência; e conceito de certo e errado em língua. O mesmo acontece, inclusive, entre muitos professores, especialmente aqueles adeptos ferrenhos, verdadeiros fanáticos da norma gramatical.
Em se tratando do certo e do errado, o que mais complica a questão é o fato de que muitos esperam da língua um comportamento exato, no sentido de “dois mais dois são quatro” em qualquer parte do planeta Terra. A língua e a linguagem não têm em si tal compromisso ainda que sejam frutos de uma lógica.
As variantes linguísticas são os diferentes usos que se faz de uma mesma língua. Essas maneiras como uma língua se apresenta têm direta ligação com a região onde é utilizada, a situação, a condição social de quem a utiliza, seu grau de escolaridade. Depende ainda do contexto onde essa língua é utilizada, da intenção do usuário, daquele com quem se fala ou para quem se envia uma mensagem escrita. Fatores de ordem psicológica também influenciam sobre o falante ou escrevente.
A linguagem formal ou padrão (modelo) é artificial e própria das formalidades circunstanciais técnico-científicas, é cuidada e não admite uso de expressões chulas e gírias, salvo se se estiver realizando uma análise onde essas estejam sendo examinadas, como ocorre em estudos linguísticos. O uso formal da língua surge no texto oral ou escrito, em prosa ou naquele em verso. Frise-se, entretanto, a especialidade e a liberdade que cabem ao texto poético.
Por sua vez, a linguagem coloquial ou informal, é natural e, como o diz a própria designação, não está necessariamente subjugada aos ditames da linguagem padrão oficial. Isto não quer dizer que indivíduos economicamente bem posicionados, escolarizados e até de alto grau de formação não utilizem tal variante. Em casa, na praia, no quarto, namorando ou brincando, o usuário, quer fale ou escreva, tem total liberdade de manifestar-se na variante simples, informal. E pode e usa as gírias e até os termos classificados na categoria de baixo calão.
A variedade coloquial é natural e não precisa ser ensinada, enquanto que, a formalidade só se aprende na escola e na prática, principalmente. Em qualquer uma de suas variantes, a língua pertence a todos, apesar de que alguns artifícios sejam criados pelas classes sociais mais altas para que só elas tenham acesso a esse saber elitizado. Houve épocas na Espanha, por exemplo, quando somente filhos de reis podiam estudar, ler e escrever. O domínio do conhecimento é esclarecedor e promove a conscientização de indivíduos que passam a buscar mais os seus direitos. Esse fato incomoda aos que apreciam dispor de massa de manobra e dominação.
Conheço pessoas que viajam à Europa, no mínimo, três vezes ao ano. São apaixonados pelo continente europeu, mas declaram que vão até lá apenas para passear e retornam para o querido Brasil. Nem sei se seria tão querido assim. Pensando mais um pouco sobre as entrelinhas nas conversas informais com esses amigos, cheguei à conclusão de que eles voltam porque, por mais dinheiro que tenham em moeda brasileira, lá não conseguiriam manter o exército de serviçais de que dispõem em suas mansões ou apartamentos de alta categoria. Ficariam logo pobres.
A língua é viva (quantos repetem isto!) e se movimenta. A língua pensa, canta, dança, nada e faz tudo o que um ser humano é capaz de fazer, até mesmo sexo. A língua é o ser humano, seja ela de qualquer tipo ou modalidade. Somos seres socioculturais. As sociedades e as culturas são múltiplas e diversificadas entre si.
As sociedades se formam, a civilização cria as regulamentações. Mesmo quando a forma de governo é democrática e não consegue atender ao verdadeiro e puro sentido da Democracia, pois há sempre interesses em jogo. Por exemplo, no que diz respeito à língua, a classe pobre constitui a maior parte da sociedade que é capaz de escolher um governante, mas, em contrapartida, não consegue impor como modelo a ser seguido o seu jeito de falar e de escrever. Uma vez representando a maioria, o mesmo poder cria leis que regem a língua, tanto a falada quanto a escrita e consegue quase que transformá-la em uma língua estrangeira, intraduzível e inacessível para as camadas miseráveis da nação.
As lutas sociais ao longo dos séculos de opressão, pouco ou mais ou menos, logram êxito em desenhar novos perfis, moldar mentalidades.
Para esclarecer este ponto, vale lembrar que época houve quando só eram consideradas belas as pessoas loiras e portadoras de outros traços do tipo europeu, considerado modelar. Somente eram certos os alunos que não fossem portadores de necessidades especiais.
Nos anos 70, em Aracaju, capital de um estado do nordeste brasileiro, universitários se envergonhavam de gostar de Luiz Gonzaga, o rei do baião, por que isto era tido como péssimo gosto, coisa “errada”. Sempre havia alguém dizendo o que era certo ou errado em todos os cantos e por todos os lados. Esses ditadores deixaram crias.
Crianças que não aprendiam no mesmo ritmo das CDFs eram proclamadas erradas. Quem não professasse a religião católica, errado. Se alguém gostasse de pessoas do mesmo sexo, errado. Caso apresentasse uma deficiência física, errado. Cabelo de carapinha, errado. Os da roça falavam errado e escreviam mais errado ainda. Os da cidade e escolarizados eram sempre os certos. Não passou no vestibular? Errado! Não vai ser “doutor”? Errado e errado!
Ainda temos muito e muito desses costumes, agora vestidos com outros trajes, pois não falta quem invente padrão, mão e contramão. Criou-se dessa forma a cultura do certo e do errado.
Professora, afinal qual é o certo? Não há uma resposta ideal para tal pergunta no que tange ao uso da língua, tendo em vista as inúmeras regras e exceções criadas pelos que estão autorizados a fazê-lo.
Para escrever este texto, tento usar a variedade padrão da língua. Se o estivesse lendo em um evento, a formalidade imperaria até mesmo no que concerne à correta pronúncia e entonação das palavras.
Olhaí, professora, então é o certo! Não seria exatamente isto. Melhor será o falante e escrevente da língua portuguesa, principalmente o professor, ser um indivíduo versátil, democrático e plausível para não correr o risco de excluir do convívio social e do mercado de trabalho criaturas humanas tão somente porque esqueceram um S do plural ou porque escreveram na redação “A gente vamos”.
Não se deve, em momento algum promover constrangimento aos nossos semelhantes pela língua que falam ou pelo pouco que escrevem. Dessa forma criaremos traumas indissolúveis e faremos com que os estudantes criem horror ao estudo da Língua Portuguesa assim como um filho se torna acabrunhado por repetidos maus tratos da mãe. Não me refiro ao pai porque há essa coisa antiga de chamar a língua de mãe (mãe solteira), o que faz das línguas estrangeiras madrastas. O pai não é Camões, mas o soldado romano acampado no território hoje Portugal.
Não temos o direito de pensar assim, anacronicamente, em plena era da mundialização.Há casos em que madrastas são superiores em muitas coisas a determinados tipos de mães biológicas. E que não me contestem os amantes de “ser mãe é padecer no paraíso”. A polícia e a justiça que digam sobre casos de mães que matam filhos e avós que ensinam maus costumes aos netos.
O que tentei passar nas aulas foi o amor pela diversidade da língua, seja em sua variante padrão ou na coloquial. Esta, de uma beleza, naturalidade e gosto de beijo na boca. Esse ministério equivale a conscientizar os alunos de que o seu semelhante não é errado pelo simples fato de que tem a pele negra, de que é magro, gordo, fala e escreve deste ou de outro jeito. E nem é totalmente certo o que se diz certo.
Tentei sempre dizer aos meus alunos que temos várias ferramentas a serem utilizadas para sermos aceitos em determinados locais, empregos, etc. Precisamos disto, mas jamais de exaltar uma forma de falar e de escrever e desmoralizar outra. Tudo é humano e tem toda a magnitude e beleza. Igualmente honrosos, artísticos e dignos de toda a admiração são a literatura parnasianos e a românticos; o romance regionalista com suas representações das falas dos personagens do campo; o romance de costumes com as suas expressões francesas de requinte de estilo; o cordel e tantos e tantos. Como diriam os queridos baianos, toda forma de se comunicar com o semelhante é linda, tudo é lindo. Como o diriam os franceses, três jolie.