Pecado e inferno: A ação de Satanás
PECADO E INFERNO: A AÇÃO DE SATANÁS
Prof. Dr. Antônio Mesquita Galvão
PRELIMINARES
Em geral quando se participa de cursos ou palestras de teologia, a respeito de pecado ou inferno, os coordenadores sempre começam os trabalhos com a definição acadêmica de pecado, algo como “ruptura com o plano de Deus”, ou coisa parecida. Os antigos catecismos, hoje condensados no Catecismo da Igreja Católica eram pródigos em definições e conceitos, que nem sempre esclareciam o necessário. Para fugir de alguns desses lugares comuns, vou começar esta meditação sobre o pecado, contando uma história, que talvez nos ajude a refletir melhor sobre a questão.
“Em um país do Oriente Médio havia um rei muito poderoso e protegido de Deus. Ele se chamava Davi. Um dia ele estava em seu palácio quando, olhando as casas ao redor viu uma mulher, muito bonita, que despreocupada, tomava banho. O soberano se encheu de cobiça e desejou aquela mulher. Mandou chamá-la ao palácio e constatou tratar-se da esposa de um de seus comandantes, que estava lutando na guerra. Isto não o impediu de seduzir a mulher e torná-la sua amante. Com o passar do tempo e a continuidade das relações, a mulher engravidou, o que causou um sobressalto e um conseqüente mal-estar no rei. Para tentar resolver a situação, ele mandou buscar o marido da frente de combate, na esperança de que ele dormisse com a esposa e tivesse relações sexuais com ela, assumindo a constrangedora gravidez. O homem veio – seu nome era Urias – e não dormiu com a esposa, pois achava que era injusto ele estar em casa, sob um teto, em contato com uma mulher, enquanto seus soldados passavam agruras na frente de batalha. Ao invés de dormir no quarto, ele dormiu ao relento, na porta da casa. O plano do rei havia falhado. Então ele preparou uma carta e a mandou ao comandante Joab, usando o próprio Urias como portador. Na carta dizia o seguinte: ‘desamparem Urias para que sucumba e morra’. Não deu outra: Urias morreu em combate. Quando a notícia chegou a Jerusalém, Davi, o rei, tomou a mulher, Betsabéia, por esposa. Alguns dias depois veio à corte um profeta, de nome Natã, que se dispôs a fazer uma denúncia ao rei. O homem de Deus começou contando uma história: ‘Havia um homem que possuía uma grande quantidade de bens, entre eles muitas ovelhas. Ele podia dispor delas a hora que quisesse... Ali perto vivia um homem pobre, que só tinha uma ovelha, uma pequena ovelhinha, que ele criava como pessoa da família, dando-lhe de comer na própria mão... Um dia chegou uma visita na casa do rico, e este sem a mínima consideração mandou roubar a ovelha do pobre para servi-la aos seus convidados’. Indignado, Davi falou: ‘Este homem é um canalha! Quem é ele? Ele deve morrer...’. Sem perder a calma o profeta olhou fixamente para o rei e disse: ‘Este homem és tu!’”.
Como é possível que Davi, um homem tão santo, tenha sido vitimado por um pecado tão grave? Eu estive em 2009, em Jerusalém e pude visitar o túmulo de Davi, onde diz “ninguém foi tão santo (kadosh) como o rei Davi”. De fato, ele foi ungido pelo profeta Samuel para ser o rei de Israel, e defender o país dos ataques dos inimigos da nação e da fé judaica. Ninguém foi tão santo como ele, nem tão pecador... Bem, para dar curso à nossa reflexão sobre pecado, cabe perguntar: Qual foi o pecado mais grave de Davi? Vamos ver o itinerário do pecador:
• olhou a mulher tomar banho
• desejou-a em sua concupiscência
• chamou-a ao palácio, e mesmo constatando que ela era
casada com um militar a seu serviço, seduziu-a
• depois da sedução a mulher engravidou e o rei não quis
assumir a criança
• chamou o marido a Jerusalém para dissimular a gravidez
• praticamente o obrigou a ter relações sexuais com a esposa
• como ele – movido pela ética – não aceitou a imposição do
rei, foi – por ordem de Davi – colocado na linha de frente,
e morreu.
Temos aqui sete atitudes de Davi, que vão desde a cobiça, passando pelo adultério, pela mentira, pela dissimulação, desembocando em um assassinato. Qual o pecado mais grave do rei? É claro que cada um vai achar esse ou aquele, e a maioria vai afirmar que o homicídio é o ato mais grave. Não é?
Pois eu vou dizer – e gostaria que analisassem comigo – que o pecado mais grave foi o primeiro; os outros todos foram como que consequências do primeiro. Se não houvesse o primeiro pecado, espiar a vizinha tomando banho – talvez considerado como uma falta de pouca gravidade – quem sabe não aconteceriam os seguintes. Assim, como os alcoólicos aconselham que seja evitado o primeiro gole, também se deve evitar o primeiro pecado, quando às vezes se consente em uma falha banal, mas que pode avolumar-se e chegar a um delito monstruoso.
O PECADO
Entendo que, depois da história de Davi já se possa ingressar no estudo mais aprofundado a respeito do pecado. Para começar vamos falar na graça, que é um dom, uma oferta, um presente do Deus que vem ao nosso encontro, não porque mereçamos, mas porque ele é rico em misericórdia. A graça provoca em nós oito consequências: a) filhos de Deus; b) irmãos de Jesus Cristo; c) irmãos dos homens; d) membros da Igreja; e) herdeiros do Reino; f) cidadãos do céu; g) destinatários das promessas de Cristo; h) templos do Espírito Santo.
A graça divina, vale lembrar, é o amor de Deus, que gratuitamente se derrama sobre a humanidade, representada tipicamente pela salvação, pela amizade fiel com que ele nos distingue e, por fim, pela posse final do Reino dos céus. Mais do que justiça, Graça é bondade.
Em oposição ao “viver a graça” surge a “des-graça”, ou seja, o ato de perder a graça. Será que é possível a perda da graça? Sim, é possível! É possível porque, dotado de liberdade (que também é um dom de Deus), o homem é essencialmente, assustadoramente livre, dono de seu nariz e capaz de qualquer tipo de escolha. Até de rejeitar a oferta de Deus. Há a perda da graça, sim, se for proveniente de um ato consciente, consentido, deliberado. Deus respeita a liberdade do ser humano. É como alguém que bradasse, de forma insensata: “eu não quero a Graça de Deus!”. Essa rejeição àquilo que é missão do Espírito Santo converte-se em uma grave blasfêmia.
Enquanto o homem vive, sempre lhe fica reservada uma chance de salvação. A verdade é que in statu viatoris a perda jamais é definitiva. Ele sempre poderá se arrepender e retomar seu lugar, igual àquele filho que saiu da casa do Pai. E depois? Um projeto de vida se distanciando do plano de Deus, que rejeita os dons, as luzes esclarecedoras do Espírito Santo, pode ser enquadrado, quem sabe, como uma blasfêmia contra o Espírito Santo. E esse pecado, sabemos, não tem perdão, nem agora nem depois (cf. Mt 12, 31).
Quem rejeita o dom do Espírito de Deus, bota fora sua chance de salvação, porque despreza o sacrifício de Cristo na cruz, que morreu para nos salvar. A perda da graça, porém, e é bom que se deixe claro, não é fruto de um único ato mau, ou de um pecado que esquecemos de pedir perdão, ou de alguma dúvida ou vacilação na hora da morte. A perda da graça é resultante de todo um projeto de vida afastado de Deus, ou seja, como diz São Paulo, “a obra de uma vida...” (1Cor 3, 13ss). Agora sim vamos entrar no terreno das definições. Há quem defina o pecado através de quatro palavras:
• sünde
verbete alemão que quer dizer “afastamento”;
• hat’at
No hebraico ha’tat tem um sentido de desvio;
• hamartia
No grego hamartía é algo parecido com quebra;
• peccatum
As duas palavras acima (ha’tat e hamartia) passaram para o latim como peccatum, com um sentido mais grave, aproximado de crime ou delito.
Sem pretender esgotar o aspecto conceitual, podemos dizer, preliminarmente, que pecado é a negativa do amor (Deus é amor, lembram?), é rompimento deliberado com Deus, é dizer-lhe não, é estabelecer uma negativa consciente em aderir ao plano de salvação... e vai por aí. O pecado, na verdade é sempre pessoal, mas suas conseqüências, em geral, podem ir além da pessoa. Perdendo-se o sentido do amor, perde-se o sentido de Deus (ou vice-versa). Perdendo-se o sentido de Deus, cai-se, invariavelmente, em idolatria, quando as coisas de valor nulo ou relativo são absolutizadas. O pecado caracteriza-se por um não, sonoro, consciente e profundo,
- a Deus
rejeitando o projeto de Deus e invertendo valores, o homem cai em idolatria;
- ao outro
quando o homem despreza a comunhão com o próximo, tem lugar o egoísmo; o egoísta rejeita o “nós” em detrimento do,”eu”; não há lugar para a alteridade;
- a si próprio
o ser humano renuncia à filiação divina e ao cultivo de valores mais puros que ornam sua vida, e vai acabar como aquele filho, na parábola, que tendo tudo na casa do pai, resolveu usar mal sua liberdade, e acabou solitário comendo a comida dos porcos (cf. Lc 15, 11-24);
- à natureza
a violência contra a ordem cósmica, movida pelo egoísmo e pela ambição, quebra todas as relações de bom senso do homem com a natureza; o homem destrói, mata, polui, influenciando negativamente as estruturas econômicas, políticas, sociais e ambientais.
A esse conjunto, visto acima, chamamos de “ruptura multidimensional”, não rompemos apenas com um ou outro, mas rompemos com todos, em todas as direções.
Às vezes, algumas pessoas perguntam: Será que ainda existe pecado? De fato, hoje as ciências psicológicas e sociais (o chamado neopsicologismo) tentam afirmar que o pecado não existe mais. Enquanto para muitos o pecado não existe, para as correntes freudianas ele apenas expressa carências e pode gerar complexos de culpa, para outros (as linhas das religiões liberais) ele apenas é caracterizado pelo matar, roubar e cometer adultério (e assim mesmo com alguns atenuantes e excludentes). Para os espiritualistas (kardecistas, esotéricos, religiões animistas orientais) o pecado faz parte de culpas das “vidas passadas”, que se purifica com o carma. Igualmente os postulados do Seicho-no-Iê negam a existência do pecado, do inferno e do demônio.
Por respeito à sua liberdade, Deus pode orientar, sinalizar o caminho humano, mas nunca forçar o homem, sob coação ou violência, a seguir seus projetos. Desde os tempos antigos vige essa sentença: “Eis que ponho diante de ti o bem e o mal! Escolhe o bem e viverás!” (cf. Dt 30, 15-20; Is 1,19ss). Nos evangelhos, esse bem ou mal seria descrito por Jesus como “dois caminhos com duas portas” onde, estreito é aquele que leva à vida, e larga a porta que conduz à perdição (cf. Mt 7, 13s). Modernamente, a hamartiologia (parte da teologia dogmática que estuda o pecado) dividiu o pecado em pessoal (ou individual) e social.
• pecado pessoal é um ato individual, de ação negativa ou de omissão, cometido por uma pessoa sozinha, no gozo de sua plena liberdade, sem coações nem pressões psicológicas irresistíveis. É a falta (ruptura com Deus) cometida pelo pecador, cuja conseqüência atinge a ele próprio, impedindo o crescimento do amor em seu coração. Como homem algum é uma ilha, nossa sociedade se torna melhor ou pior, à medida das virtudes ou dos pecados que praticamos. O homem, por sua natureza, em geral é eticamente solidário, na graça e no pecado com aqueles que o rodeiam. Desta forma, como são raros os pecados cujos efeitos fiquem apenas no pecador e não atinjam o grupo, pode-se dizer que, mesmo cometido individualmente, o pecado tem conseqüências sociais. Desta forma, e sempre seremos obrigados a ver o pecado por seus efeitos, pode-se dizer que estes, em sua maioria, enquadram-se como sociais.
• pecado social é aquele cometido estruturalmente; alguém, pessoa ou grupo comete e os demais apóiam, usufruem de seus resultados ou silenciam sobre seus malefícios. Quem convive num sistema de pecado, seja ele social, político e até religioso, dele tira proveito, e não o denuncia, comete o pecado social.
Chama-se pecado mortal o pecado que faz perder a graça Divina e que leva à condenação do crente; se não for objecto de confissão (admissão da culpa), genuíno arrependimento e penitência (retratação perante Deus). o pecado mortal, que é cometido quando, ao mesmo tempo, há matéria grave, plena consciência e deliberado consentimento. Este pecado destrói a caridade, nos priva da graça santificante e nos conduz à morte eterna no inferno, se dele não nos arrependermos sinceramente. Para os católicos, a tríade que define o pecado mortal é:
• Matéria grave - precisada pelos dez mandamentos;
• Pleno conhecimento de estar cometendo pecado;
• Plena e deliberada adesão da vontade.
Nós chamamos pecado venial aos pecados que são menos graves e que não fazem perder a graça divina. Comete-se um pecado venial quando não se observa, em matéria leve, a medida prescrita pela lei moral, ou então quando se desobedece à lei moral em matéria grave, mas sem pleno conhecimento. No entanto, cabe um “estado de advertência” quanto aos pecados veniais, cuja reiteração podem levar a um pecado grave, mortal.
Os pecados contra o Espírito Santo são chamados de pecados imperdoáveis. Eles subentendem uma renegação contínua e deliberada do perdão Divino, bem como uma violação contínua da Lei Divina por parte do pecador.
1º - Desespero da salvação, ou seja, quando a pessoa perde as esperanças na salvação de Deus, achando que sua vida já está perdida. Julga, assim, que a misericórdia de Deus é mesquinha e por isso não se preocupa em orientar sua vida para o bem. Perdeu as esperanças em Deus; é quando a pessoa, como Judas, não pede perdão porque considera que Deus é incapaz de perdoá-lo. E não pedindo perdão, não é perdoado;
2º - Presunção de salvação sem merecimentos, ou seja, a pessoa cultiva em sua alma uma vaidade egoísta, achando-se já salva, quando na verdade nada fez para que merecesse a salvação. Isso cria uma fácil acomodação a ponto da pessoa não se mover em nenhum aspecto para que melhore. Se já está salva para que melhorar? – pode perguntar-se. Assim, a pessoa torna-se seu próprio juiz, abandonando o Juízo Absoluto que pertence somente a Deus; é quando, por soberba, a pessoa se julga já salva, e, por isso, se recusa a pedir perdão a Deus;
3º - Negar a verdade conhecida como tal, ou seja, quando a pessoa percebe que está errada, mas por uma questão meramente de orgulho, não aceita: prefere persistir no erro a reconhecer-se errada. Nega-se assim à Verdade que é o próprio Deus; é quando o pecador de tal modo se entrega conscientemente à mentira a ponto de acabar acreditando nela e, por isso, recusa até a evidência da verdade. Era o pecado dos fariseus que viam Cristo fazer milagres, e os negavam, apesar de vê-los. Não havia então modo de convertê-los;
4º - Ter inveja das graças que Deus dá aos outros, ou seja, a inveja é um sentimento que consiste primeiramente em entristecer-se porque o outro conseguiu algo de bom, independentemente se eu já possua aquilo ou não. É o não querer que a pessoa fique bem. Ora, se eu tenho inveja da graça que Deus dá a alguém, estou dizendo que aquela pessoa não merece tal graça, me tornando assim o regulador do mundo, inclusive de Deus, determinando a quem deve ser dada tal ou tal coisa; é, ter raiva de que Deus, por amor, tenha dado alguma graça a outros, e não a nós. Desse modo se odeia a bondade de Deus, que é o Espírito Santo;
5º - Obstinação no pecado, ou seja, é aquela teimosia, a firmeza, a relutância de permanecer no erro por qualquer motivo. Como o Papa João Paulo II disse, é quando o homem “reivindica seu pretenso ‘direito’ de perseverar no mal – em qualquer pecado – e recusa por isso mesmo a Redenção”; pecador é aquele a cai em pecado, se arrepende e é reintegrado; o ímpio, obstinadamente não aceita abandonar sua situação de pecado, e se condena por sua própria opção;
6º - Impenitência final, ou seja, é o resultado de toda uma vida que rejeita a ação de Deus: persiste no erro até o final e recusa arrepender-se e penitenciar-se. Configura-se essa impenitência quando a pessoa recusa o perdão de Deus na hora da morte, rejeitando, de forma ímpia, os sacramentos.
Os pecados mortais são aqueles cometidos contra a Lei de Deus:
• não amar a Deus como é devido
• profanar seu nome e blasfemar
• mentir
• desenvolver a avareza, o roubo e a exploração
• não dar aos pais o respeito e amor devidos
• praticar ateísmo e heresias
• ter inveja, cobiçar e criar divisões
• praticar homicídios, aborto e agressões
• viver em embriaguez
• praticar adultério e fornicações
• exercer a idolatria e a feitiçaria (espiritismos)
• praticar o homossexualismo
O Pecado original não é – como alguns afirmam – um “pecado hereditário”, mas uma “tendência” ao desajuste que nasce com todo o ser humano. Ao contrário do que algumas pessoas, no passado e no presente têm afirmado, não se trata de pecado hereditário, ou por causa do pecado do ser humano ser fruto de relações sexuais entre seus pais, nem, muito menos, trata-se de pecados cometidos em vidas passadas.
O pecado original é uma tendência natural que nasce com o ser humano, predispondo-o ao rompimento com o bem. “Pecado original não é um erro de fabricação. O homem não traz em si uma consciência de uma culpa qualquer, cometida anteriormente. Nem traz consigo o pecado dos pais, como se fosse um pecado pessoal. O mal pessoal começa quando o homem, em vez de abrir-se para o infinito e nascer assim de Deus que lhe estende a mão, procura reduzir o infinito ao tamanho de seus próprios limites finitos(...). Existe uma misteriosa solidariedade no mal entre os homens, assim como em todos nós existe uma absoluta necessidade de redenção e de libertação. Pecado original, nessa contingência, é um radical desajuste que nasce com o homem. Desajuste em relação à finalidade para a qual foi criado” (In: C. MESTERS. Paraíso Terrestre, saudade ou esperança?”, Ed. Vozes, 10a. ed., 1985).
Para atuar preventivamente na preservação da graça, o cristão deve conhecer os caminhos que levam ao pecado.
• a mediocridade de nosso modelo social, onde tudo é superficial, inexistem valores autênticos, não há ideais; tudo é futilidade;
• o hedonismo, o valor exagerado aos prazeres e comodidades, a permissividade moral, a falta de autenticidade e pureza dos corações;
• o egoísmo como concepção individualista de vida;
• o materialismo, a desmedida preocupação pelos bens materiais, ostentando, muitas vezes um padrão de vida ofensivo à indigência de tantos;
• a superficialidade, a falta de vida interior, de encontro consigo e com Deus, numa época de pouca espiritualidade ou de uma fé desencarnada, descomprometida; é a filha predileta da mediocridade;
• o fechamento em si, a rejeição ao assédio da graça de Deus, autêntico dom de Deus;
• a presunção: “Sou forte, sou religioso, tenho vida espiritual, isso de pecado é com o pessoal mais fraco...” A esses, São Paulo adverte: “Quem está de pé cuide-se para não cair!” (cf. 1Cor 10,12);
• a timidez demasiada, a falsa humildade e a acomodação nas tomadas de decisão: “sou fraco, sou um pecador, a carne é fraca...”;
• o desleixo, o abandono da vida espiritual, dos atos de piedade cristã, a falta de oração, o afastamento da Santa Missa e dos sacramentos de Cristo.
Como principal conseqüência do pecado encontramos a chamada desordem moral, que se resume em:
• injustiça, dominação, violência
• competição por inveja
• corrupção e presunção
• sexualidade desordenada
• indiferença e ausência de compromisso
O papa Pio XII († 1959) falou, em uma pregação, a respeito da perda do senso do pecado. O ser humano se torna tão envolvido com o pecado que acaba se confundindo, chegando a achar que nada mais é pecado, que não existe mais pecado, E aí se implanta o caos. Contra essa desordem, vamos encontrar vários caminhos para se evitar o pecado:
• Aceitar as limitações buscando o crescimento
• Cultivar os valores autênticos
• Estabelecer sadios ideais de vida
• Conhecer a Cristo e as verdades reveladas pela Igreja
• Orar, meditar e fazer sacrifícios pessoais
• Ter senso crítico para julgar os fatos do dia-a-dia
• Observar os mandamentos de Deus (especialmente o “novo”)
• Buscar orientação espiritual e freqüentar os sacramentos (penitência e eucaristia)
• Procurar desenvolver a vida em comunidade
• Fortalecer-se na fé e no apostolado (cf. Ef 6, 10-17)
O INFERNO
Poderíamos definir o inferno como criação e possibilidade da criatura capaz de rejeitar a graça de Deus. Deus não criou o inferno, o pecado nem os demônios. Os maus espíritos foram criados bons. Usando mal a liberdade que receberam, se rebelaram contra o projeto de Deus, preferindo escrever sozinhos sua história.
O inferno foi criado pelo mal. Quando Lúcifer se auto-excluiu e rompeu a comunhão com Deus, ele criou um estado de trevas para ele e seus seguidores. A fim de que se compreenda os nomes, é bom esclarecer que Lúcifer (Lux-fero = aquele que traz a luz = o iluminado), foi o primeiro anjo caído, que na rebelião do princípio levou consigo “um terço das estrelas (dos anjos) jogando-as no cosmo (cf. Ap 12, 4). Os nomes satã, satanás e diabo são meros qualificativos, como acusador, inimigo, desordeiro. A palavra demônio (do grego daimônos), espírito criado, usava-se, nos primeiros séculos, em uso geral. Só depois do século IV-V d.C. é que passou a significar “espírito maligno”.
Deus não é o criador do caos (cf. Is 45, 18). Consumada a sua condenação, Satanás tenta criar na terra, através de tantas estruturas de poder, de corrupção, de luxúria e de violência um pseudo-céu, material, sem Deus. Mais do que nenhuma coisa, o inferno é uma escolha:
Escolhe o bem e viverás (Jr 21, 8).
A partir do dia do julgamento, os réprobos se tornarão anjos do demônio (cf. Mt 25, 41). O Concílio Vaticano II nos mostra o inferno como destino dos servos maus e insolentes (cf. Mt 25, 16). Também é descrito como fogo eterno (v. 41). Os maus ressuscitarão para a condenação (LG 48). A existência de fogo no inferno é tirada da figura bíblica da geena, um misto de lugar de fogo com lugar de morte, muitas vezes referido como xeól, hades e infernos. A geena era como um lixão, existente nos arredores de Jerusalém, onde eram queimados todos os detritos da cidade. Trata-se de uma das doze portas da cidade, chamada de ashpôd, que se refere ao local onde o lixo era colocado para fora. Como havia muitos materiais e não era fácil fazer fogo, os encarregados mantinham as chamas acesas dia e noite.
Outra idéia de fogo do inferno vem do tofet (forno, torrador) hebraico, citado em Is 30, 33 como lugar de castigo para os inimigos de Israel. O tofet era um lugar de sacrifícios humanos, especialmente de crianças, ao deus Moloc, levado a efeito no tempo dos reis Acaz (cf. 2Rs 16, 3; 2Cr23, 3) e Manassés (cf. 2Rs 21, 6; 2Cr 33, 6).
Mas, afinal, o inferno existe? Esta pergunta, às vezes feita meio de supetão, a teólogos, bispos, pastores ou padres, os têm feito engolir em seco. Às vezes, observando-se os crimes, o desamor, a injustiça e a violência, é possível imaginar: será que existe coisa pior? Será o inferno pior que isso que passamos por aqui? Os espíritas, a maioria dos esotéricos e orientais dizem que não há inferno, que as penas desta vida são uma purgação cármica, atribuída a cada um, por causa dos pecados e dos crimes cometidos em suas vidas passadas. Será? Não creio.
Mas as perguntas voltam com mais intensidade: será que esses, que passam a vida construindo um inferno para seus irmãos, serão adequadamente justiçados com um inferno igual ao que construíram aqui? Quem julga de forma corrompida, explora, deixa morrer (de fome, nas prisões, nos sistemas de saúde falidos), quem abandona seus filhos, será que não há um julgamento rigoroso para esses?
Às vezes, diante de tanta miséria e injustiça, o teólogo não sabe definir um inferno no depois mais cruel do que o de agora. Jesus refere-se ao inferno como penas reservadas aos maus, aos inconversos, aos mentirosos e aos que praticam as chamadas “obras da carne” (cf. 1Cor 6, 9s; Gl 5, 19ss). As Escrituras se referem ao inferno com imagens tanto reais como através de metáforas:
• fogo inextinguível (cf. Mt 18, 8);
• trevas exteriores (Mt 22, 13);
• onde o verme que não morre e o fogo não se apaga (Mc 9, 48);
• lugar de choro e ranger de dentes (Lc 13, 28);
• cárcere (1Pd 3, 19);
• morte-condenação (Mt 7, 13);
• segunda morte (Ap 2, 11; 20, 6. 14; 21, 8);
Por inferno podemos entender uma frustração irreversível e uma solidão sem volta. É a negação da vida que conduz a um vazio irreparável. O estar longe de Deus para sempre, perdendo o acesso à felicidade e o acesso à fonte da água da vida, dá uma sensação de terrível frustração, que queima como um fogo. Como afirma Ruiz de La Peña, “a oferta divina é a de uma salvação total, de maneira que recusá-la significa uma perda total”.
O inferno existe, sim! Ele é a morada dos demônios e o destino dos ímpios e réprobos. Trata-se de um artigo de fé. É preciso crer na sua existência, assim como evitá-lo, no contexto de todas as verdades reveladas. Jesus, o bom pastor, veio ao mundo para ensinar aos homens o caminho para livrá-los da condenação. Embora se diga que Jesus vem para julgar, na verdade ele virá, na parusia, mais para ajudar e salvar do que efetivamente estabelecer julgamentos. Além disso, o Espírito Santo é o nosso “advogado” (cf. Jo 16, 8.13), aquele que mostra o caminho esclarece nossas dúvidas e ilumina nosso agir. Deus, no entanto, respeita a liberdade de escolha do homem:
Deus criou o homem e o deixou entregue ao poder de suas decisões (Eclo 15, 14).
Deste modo, só vai para o inferno quem obstinadamente não quiser ir para o céu, ou não crer no sacrifício salvífico de Cristo. Essa descrença é um pecado contra a inspiração do Espírito Santo. As ciências particulares, e em especial a psicologia, fazem uma abordagem diferente do que é pecado, buscando descaracterizar sua gravidade. De fato, há traumas, desajustes e angústias, capazes de gerar uma conduta conflituosa, que, por tirar a liberdade do ser humano, age como fator de cerceamento de sua liberdade e, por isso, podem retirar um dos ingredientes determinantes do pecado. Isso é possível que aconteça, mas é preciso ser observado por uma delicada análise pastoral.
O ensinamento da Igreja afirma a existência e a eternidade do inferno. As almas dos que morrem em estado de pecado mortal descem imediatamente após a morte aos infernos, onde sofrem as penas do Inferno, o “fogo eterno” (Catecismo, 1035; DS 1575).
E cabe um alerta: assim como tudo era pecado, como diziam alguns há décadas passadas, não podemos admitir o inverso de hoje, onde dizem que nada é pecado. Para que haja pecado, além da matéria grave, é necessária a existência de conhecimento de sua gravidade e liberdade para praticá-lo. O Papa Pio XII, na década de 50 já advertia: “Estamos perdendo o sentido do pecado...” (In: Rádio mensagem (Natal de 1949).
Assim como a morte é uma experiência antropológica de derrota, o depois é conseqüência de, como vivemos, um agora. Por isso, na morte há uma de-cisão, como que uma ruptura definitiva e totalizante. Ali há, com relação aos que não se decidirem por Cristo, a segunda morte (cf. Ap. 20, 14), quando os maus, os que recusarem o sumo bem ressuscitam, não para a Vida, mas para a perdição eterna. “A condenação eterna tem sua origem na livre recusa, até o fim, do amor e da piedade de Deus” disse o papa Paulo VI in Professio Fidei (AAS 60, 438).
A palavra inferno provém da idéia grega de imphra, ou seja, algo que está abaixo. Para os povos da Antiguidade a “região dos mortos” estava abaixo, com base nos sepultamentos, quando o defunto ia para debaixo da terra. A essa idéia foi associada a da “morada dos maus espíritos”, que também ficavam imphra.
O DIABO
O diabo ou demônio é uma realidade bíblica inegável. Jesus mais de uma vez se refere a ele nos evangelhos, em exorcismos e curas de lunáticos, tudo com inspiração demoníaca. Foi pela inveja que o diabo sente do ser humano que a morte entrou no mundo. Satanás, diabo ou demônio são espíritos (criados bons) que se revoltaram contra Deus numa opção definitiva. Eles tentam – ensina o Catecismo – associar o homem à sua revolta contra Deus (414).
Há um grande equívoco do Padre Oscar Quevedo, em seu livro "Antes que os demônios voltem" (Ed. Loyola,1989), onde o jesuíta explica todos os fenômenos atribuídos ao demônio sob o ponto de vista científico (da parapsicologia); nunca sob o prisma espiritual (de um espírito maligno). Esse tipo de informação dificulta a compreensão das forças diabólicas e dificulta a vigilância. O diabo (diábolos, desordeiro) é princípio e autor do pecado e de todo o mal. Ele anda ao nosso redor, como afirma São Pedro, como um leão a procura de alguém para devorar (1Pd 5,9).
Satanás ou Satã (do hebraico, adversário/acusador), no grego daimonos, é um termo originário da tradição judaico-cristaã e geralmente aplicado à manifestação do mal nas religiões monoteístas. A palavra Satanás assim como no árabe shaitan, derivam da raiz semítica šṭn, significando ser hostil, acusar. O talmude utiliza a palavra satan para se referir a adversários ou opositores no sentido geral assim como opositores espirituais. No interior do Brasil, para enfatizar sua maldade, o diabo é referido pelo povo simples como o “coisa ruim”, o “nefasto”, o “chifrudo”, o “caramulhão”, “o encardido”, etc.
Para o espiritismo, o Seicho-no-iê, as crenças esotéricas e a maioria das filosofias orientais (budismo, hinduísmo, taoísmo) os demônios não existem, mas funcionam apenas como a projeção dos maus pensamentos dos seres humanos. Segundo Freud, também, não existe pecado nem demônios; tudo é fruto de traumas psíquicos e conflitos (complexos) de culpa mal resolvidos.
Ademais, fortaleçam-se no Senhor e na força do seu poder. Vistam a armadura de Deus para resistir às manobras do diabo (Ef 6,10).
A MISERICÓRDIA
Embora o enfoque do estudo aqui fosse pecado e inferno, eu não poderia deixar, no fim desta meditação, de falar na misericórdia e no perdão. Apesar da ação e da existência do diabo há que se observar, acima de tudo, a misericórdia de Deus, de onde tirei esses quatro tópicos de reflexão:
1. Deus é maior que o pecado, o diabo e o inferno
2. O céu é mais importante
3. Nosso Deus é rico em misericórdia cf. Jo 3,16; Ef 2,4)
4. O Pai acolhe aquele que errou e quer reatar com ele; isto está claro na história do Filho Pródigo (parábola) e no arrependimento de Davi (fato real).
A grande novidade do cristianismo – e por isto ele se baseia numa boa notícia – foi ter instaurado um modo de ser, pensar e agir, enfim, um novo estilo de vida, a partir da compreensão e vivência da misericórdia divina. A boa notícia trazida por Jesus é aquela do amor e do perdão aos inimigos, conforme o Pai – rico em misericórdia – ensinou à humanidade, desde o princípio.
Tendo esse espírito de generosidade e misericórdia, Jesus levou o amor às últimas conseqüências, e não fez outra coisa que falar em perdão, ensinar a perdoar e também perdoar aos que pecaram e aos que o ofenderam. Este é um caminho muito difícil, antigo e sempre repleto de novidades. Jesus ao se encarnar, pelo projeto do Pai, através da ação do Espírito Santo, nos dá uma lição:
Deus de tal forma amou o mundo, que deu seu Filho Único, para que todo o que nele crer não morra, mas tenha a vida eterna (Jo 3, 16).
Texto de uma meditação em um retiro de casais levada a efeito em Canoas, em maio de 2010. O autor é Biblista e Doutor em Teologia Moral. Publicou mais de uma centena de livros, entre ele “Os sinais de Jesus” (Ed. Pao & Vinho, 2004), “Sacramentos. Sinais do amor de Deus” (Ed. Vozes, 1999, 3ª. edição) e “Deus é bom. Então por que existe o mal?” (a sair; Tese de Doutorado).