FREUD E OS MECANÍSMOS DE SEGREGAÇÃO NA CULTURA

FREUD E OS MECANÍSMOS DE SEGREGAÇÃO NA CULTURA

Abenon Menegassi

RESUMO: neste trabalho objetiva-se descrever como Sigmund Freud compreende teoricamente os mecanismos de segregação existentes na cultura. Partimos do pressuposto de que para este autor a teoria do Narcisismo seria suficiente para explicar como os seres humanos vivendo em sociedades têm a propensão à agressão contra os outros homens (omni lupus omni), e que, para tanto, tendem a estigmatizar o outro com pequenas diferenças que justificariam o seu estranhamento e sua conseqüente segregação dos grupos. Segundo a teoria do narcisismo, existem três formas de catexização objetal que promovem a exclusão de objetos estranhos (Unheilich): o amor, a relação mãe-bebê e o grupo. Estas formas de catexização propiciam a constituição daquilo que Freud denominou “narcisismo das pequenas diferenças”, que estaria na base dos mecanismos que engendram os processos de segregação na cultura. Para Freud, a esperança de que num futuro próximo os homens possam conviver pacificamente em sociedade parece ser bastante remota, pois ainda não conseguimos constituir fórmulas racionais que nos ajudem a estar com o outro sem soberania.

Palavras-chave: segregação, narcisismo, cultura;

No capítulo I do livro A República, de Platão1 , Sócrates, a caminho do Pireu*, encontra-se com Trasímaco***, filho de um velho e rico fabricante de selas e, como era seu costume para com todos que encontrava nas ruas , dirige-lhe a seguinte pergunta:

- Caro Trasímaco, o que é, para você, a justiça? Trasímaco, de imediato, devolve a resposta:

- Justiça, estimado Sócrates, é o mais forte obter vantagem sobre o mais fraco, não há nada mais justo que isso.

Platão, dedicará o livro inteiro de A República à tarefa de tentar, através dos diálogos de Sócrates com seus interlocutores, redefinir o significado desta palavra.

Apesar das grandes diferenças existentes entre o mundo grego antigo, a idade média e as sociedades moderna e contemporânea, sejam do ponto de vista legal-jurídico, normativo ou ideológico, uma das ambições do projeto freudiano é edificar uma configuração teórica que possa levar a efeito a compreensão coerente dos processos da formação cultural. O objetivo deste trabalho é compreender como Freud concebe teoricamente a constituição dos mecanismos que levam aos processos de segregação que foram e são, ainda, fundamentais para a formação da cultura.

Consideradas as diferenças históricas mencionadas acima, a questão da convivência em sociedade aparece nesta passagem do diálogo platônico velada por uma concepção de que o fraco deve ser apenas o meio genuíno do forte obter vantagens para si e para os seus, condição que o deixa encerrado numa categoria que ideologicamente está delimitada pela cultura que a engendra e a normatiza. Dentro desta lógica, seja forte ou seja fraco, o outro não é mais aquele que está próximo no tempo e no espaço mas, aquele que está distante, e que está coberto por uma categoria que o torna um elemento abstrato e absolutizado por pertencer a uma classe que, por suas características, justifica uma ação política legalmente legitimada. Desde então, ser fraco é estar a priori condenado a ser meio de vantagem do mais forte. Isto por que pertencer a esta categoria significa culturalmente conjugar uma condição pré-determinada, cuja lei ou justiça apenas a sanciona.

A existência, na cultura, de ideologias que delimitam espaços, fazeres e funções, de acordo com estratégias que implícita ou explicitamente consideram que o outro deve ser meio de vantagens para si e para os seus não se deve ao caso, nem obedecem a formas naturais de laicização. Ao contrário, a dominação do homem pelo homem está historicamente associada aos modos de como as classes superiores construíram e mantiveram formas de coerção dos indivíduos em sociedade, seja pela lei ou pela força. Para que esta dominação pudesse ser concretizada, foi preciso que os homens, em grupo ou individualmente, encontrassem nos outros homens traços distintivos que permitisse a aplicação justificada daqueles modos de coerção. Este processo, foi o que deu origem à necessidade de se separar os homens uns dos outros, de segregá-los, para que assim se pudesse melhor domesticá-los.

Em O mal-estar na civilização, texto de 1930. Freud diz que é sempre possível unir um considerável número de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para receber as manifestações de sua agressividade. 2

Isto significa que o amor, enquanto afeto, promove a união de um grupo de pessoas cuja identidade está sedimentada em torno de objetos estimados pela comunidade. Unir no amor implica investir alguns objetos escolhidos pelo grupo com um afeto que promove a proximidade entre os indivíduos deste mesmo grupo tendo, por contrapartida, o afastamento, a separação de tudo aquilo que passa a não fazer mais parte da relação de objetos escolhidos no amor, quer dizer, o resto fica como alvo destinatário dos afetos hostis manifestados contra aqueles que, agora, se tornam os intrusos, os estranhos. Freud diz que o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar3. Freud usa o termo alemão UNHEILICH (estranho) em oposição a HEILICH (familiar). O intruso é este familiar que passou a ser estranho porque identificado com traços assustadores uma vez que não é mais amado, pois deixou de fazer parte da categoria escolhida como o Belo, assim selecionado pelas exigências do ideal de ego. O estranho é desprezado porque não serve mais à fórmula: eu me amo através dele em mim, pois em mim amo, dele, aquilo que, sendo meu, ou nosso, não pode ser da ordem do assustador. Tal como a velhice, por exemplo. Portanto, concluímos que UNHEILICH para Freud pode muito bem ser um termo que equivaleria à segregação tal como entendemos hoje, pois o estranho, enquanto não familiar, que deixou de sê-lo, é o segregado porque ejetado para fora do círculo dos iguais.

O que Freud sustenta é que existe nos grupos culturais uma inclinação muito difícil de abandonar que é a propensão para a agressão. Então, ele se esforçará para explicar os fenômenos culturais, inclusive a agressão, através da ferramenta Psicanalítica. No cerne da teoria psicológica do ego sobre o desenvolvimento da libido, abrigado pela Psicanálise, ele introduz o conceito de narcisismo tentando explicar as etapas deste desenvolvimento. Para efetivar o estudo do narcisismo, ele partirá da leitura intrapsíquica individual, concebendo o mecanismo narcísico como uma elaboração onde o ego procura se desenvolver orientando-se pelos objetos ideais introduzidos pelo superego.

No texto “O caso de Schereber” de 19114, (4), Freud, partindo do estudo do desejo homossexual na paranóia, chama a atenção para a existência de um estádio do desenvolvimento da libido situado entre o auto-erotismo e o amor objetal. Este estádio foi denominado por Freud de Narcisismo, termo que apareceu pela primeira vez em “Três ensaios sobre a sexualidade” de 19055. (5) Este estádio, segundo Freud, é a fase eqüidistante entre o auto-erotismo e o amor objetal, onde o indivíduo reúne as pulsões sexuais antes empenhadas em atividades auto-eróticas, a fim de conseguir um objeto amoroso. Neste processo, o primeiro objeto amoroso é o próprio indivíduo, mais precisamente seu próprio ego, apenas subseqüentemente é que se dá a passagem do ego para a escolha de alguma outra pessoa que não ele mesmo, como objeto. Segundo Freud, é possível a permanência de uma pessoa por demasiado tempo nesta fase narcísica, sendo também possível que muitas de suas características sejam transportadas para os estádios posteriores do desenvolvimento.

Em “Sobre o narcisismo”, texto de 19146 (6), Freud faz a seguinte afirmação: Existe uma antítese entre a libido do ego e a libido objetal: quanto mais uma é empregada, mais a outra se esvazia.

Isto significa que só é possível discriminar uma energia sexual (libido) de uma energia das pulsões quando houver catexia objetal; antes disso, no estádio narcísico, as energias psíquicas existem em conjunto, sem distinção ou diferenciação. A questão do narcisismo é que aí o objeto de investimento da energia é o próprio ego, quer dizer, a tensão entre a libido do ego e a libido objetal se resolve na confluência de ambas para o próprio ego do indivíduo enquanto objeto. É por isso que Freud, para estudar o narcisismo, coisa que para ele só pode ser feita indiretamente, terá que estudar as doenças ditas orgânicas; a hipocondria e a vida erótica dos sexos, porque é neste universo que esse investimento narcísico encontra-se acentuado.

O fenômeno narcísico de desenvolvimento da libido, associado ao fato de que é possível haver por parte dos grupos a discriminação dos objetos escolhidos para serem alvos de amor e objetos discriminados para serem alvos de ódio e repudiados com a agressão, introduz a idéia de que as pequenas diferenças entre os grupos são fatores relevantes para demarcar e situar a sua fixação, quer dizer, a fixação narcísica.

Vemos, então, que a fórmula “Narcisismo das pequenas diferenças”, forjado em Mal estar da civilização, pode ser adotado como um crivo interpretativo para se entender o processo da segregação, onde esta, enquanto separação ou isolamento, pode ser derivada de uma manifestação de hostilidade de um indivíduo ou de um grupo contra outro indivíduo ou outro grupo. Esta hostilidade seria direcionada contra aqueles que são diferentes, ou seja, estranhos, não familiar (Unheimlich), por não fazerem parte do rol de objetos escolhidos para a comunhão grupal. Os indivíduos dos outros grupos seriam detentores de marcas consideradas alheias pelos membros da comunidade segregadora.

Ademais, lembramos que existe a auto-segregação, o que significa: escolher-se, em parte ou no todo, enquanto indivíduo ou grupo, o que é o caso da história do judaísmo, ou enquanto auto-exclusão, como no caso da alienação.

Freud, ainda neste texto, lembra que segue uma sugestão verbal de Sándor Ferenczi que afirma que ...uma pessoa atormentada por dor e mal estar orgânico deixa de se interessar pelas coisas do mundo externo, na medida em que não dizem respeito ao seu sofrimento.7 (7). Ora, “deixar de interessar-se pelas coisas do mundo externo”, é um fenômeno que está na base da segregação, nos moldes léxicos mencionados anteriormente. De fato, na identificação amorosa isto também ocorre e é notório que no amor os amantes afastam-se e/ou afastam as outras coisas externas para “se auto completarem”. Temos, então, nesta afirmação a exposição da antítese narcísica entre a libido do ego e a libido objetal.

Contudo, se este percurso fosse interrompido aqui, teríamos que nos contentar com a idéia de que as bases narcísicas da segregação são apenas conjecturas. Não teríamos, deste modo, ampliado nossa compreensão sobre como esta base narcísica opera na própria cultura. Não teríamos respondido à questão: como aí a fase narcísica engendra os processos de segregação? Assim, uma das formas onde esta antítese encontra sua atualização cultural pode ser identificada no modelo religioso. Isto é o que passaremos a ver agora.

Narciso, cultura e religião

No texto O futuro de uma ilusão de 1927 (8), Freud se preocupará em tecer um estudo sobre a cultura, suas transformações e o seu destino. Por isso, enquanto observador da mesma, afirmará que é necessário, como bem prescreve o método psicanalítico, que para se ter a esperança de alteração futura de algo no curso de um acontecimento é preciso ater-se ao trabalho de examinar como as disposições do passado engendraram a situação presente e como esta situação pode estar condicionando os eventos futuros. Portanto, Para elaborar este exame psicanalítico da cultura, Freud empregará o seu modelo de aparelho mental, tal qual o concebera para o exame psicológico da etiologia das neuroses. Para isso utilizará principalmente os conceitos de narcisismo e ideal de eu.

De início, procedendo a um inventário econômico e psicológico da cultura, Freud afirmará que a cultura humana apresenta dois aspectos principais ao observador. Primeiro, do ponto de vista econômico, a cultura constitui-se de todo aquele conhecimento e capacidade adquiridas pelo homem para o controle das forças da natureza para daí extrair as suas riquezas e as distribuir para a satisfação das necessidades humanas. Segundo, constitui-se, também, de todos os regulamentos necessários para que as relações humanas sejam ajustadas umas com as outras, especialmente no que se refere à disposição das riquezas conquistadas. Na verdade, diz Freud, as instituições, os regulamentos, as ordens, não só se dirigem à tarefa de distribuição das riquezas, mas também à tarefa de proteger a civilização contra os indivíduos, isso por que o pesado fardo de existir em comunidade faz com que o indivíduo tenha impulsos hostis contra a civilização sendo, assim, o seu inimigo virtual.

Esta hostilidade para com a civilização nasce, segundo Freud, da coerção que esta impõe aos indivíduos. Sem a coerção muito provavelmente os homens voltariam a um estado de natureza pouco estreito ao trabalho e mais afeito às satisfações instintivas prejudiciais à existência da civilização. Dessa forma mesmo de modo imperfeito este é o meio único, ainda, a ser empregado para que os indivíduos renunciem aos instintos e se voltem para o trabalho. É apenas gerando uma discórdia interna aos homens que a civilização pode dedicar–se à aquisição da riqueza e à sua fruição. Neste ponto, Freud faz objeções quanto à possibilidade de se estabelecer um reordenamento nas relações humanas, fator que removeria as fontes de insatisfação (via coerção e repressão dos instintos), e estabeleceria uma reconciliação interna dos instintos e, conseqüentemente, entre o homem e a civilização. Para Freud tal projeto ainda não pode ser realizado por que a humanidade ainda não alcançou um meio de passar da coerção à não repressão dos instintos. Por outro lado, para ele, este fato psicológico, originado da coerção e repressão dos instintos, é o que está na base do inventário psíquico de uma civilização.

Como a condição para existência da civilização repousa na compulsão ao trabalho e na renúncia aos instintos, o que provoca grande oposição por parte daqueles que são atingidos, fica claro para Freud que a civilização não pode depender apenas do fator econômico, quer dizer, apenas dos meios de adquirir e distribuir as riquezas, mas também precisa ser defendida através de medidas de coerção e outras que se destinam a reconciliar os homens com ela e recompensá-los por seus sacrifícios. Portanto, ao lado do aspecto econômico, Freud fará o inventário dos aspectos psíquicos de uma civilização, aquilo que ele descreve como sendo as suas vantagens mentais.

Para Freud, a proibição priva e frustra a satisfação dos instintos , o que opera e constitui o âmago da hostilidade para com a civilização. Contudo, diz ele, esse processo foi fundamental para separar o homem de sua condição animal e estabelecer os primeiros traços de civilização, que foram se desenvolvendo quanto mais gerais e universais eram o alcance de suas proibições. A importância das renúncias instintuais reside no fato de que é através delas que a mente humana passará por desenvolvimentos, saindo dos tempos primitivos até os atuais da ciência e da tecnologia.

O que Freud salienta é que a mente humana não é hoje o mesmo que foi nos primórdios da história. O que ele afirma é que houve avanço no sentido de que a coerção vinda do exterior foi internalizada dando origem ao superego, cuja riqueza mental é a prova deste desenvolvimento, pois esta internalização resulta em preceitos morais conservados e difundidos pela cultura. Além deste fato psicológico da civilização, em O futuro de uma ilusão Freud enumera outros: Há, além disso, suas vantagens sob forma de ideais e criações artísticas, isto é, as satisfações que podem ser derivadas dessas fontes.8

Entre os predicados psíquicos de uma cultura estão os seus ideais, ou seja, as estimativas de valores a respeito de que realizações são mais elevadas e em relação às quais se deve fazer esforço por atingir.

Acerca dos ideais da cultura, Freud operará uma espécie de desmistificação ao afirmar que só a principio é que esses ideais parecem determinar as realizações da unidade cultural. O que ele introduz é a idéia de que na verdade esses ideais têm como base uma outra fonte que são aquelas primeiras realizações possibilitadas por uma combinação entre os dotes internos da cultura e as circunstâncias externas sendo, portanto, realizações que passam a ser erigidas pelo ideal como algo a ser levado adiante.

Vê-se, então, que as bases destes ideais da cultura são de natureza predominantemente narcísica e repousam no orgulho que se experimenta com relação àquilo que foi alcançado com êxito devido aos fatores resultantes da combinação acima mencionada. Este orgulho dá origem à necessidade de uma satisfação que encontrará na comparação com outras culturas, que realizaram ideais diferentes, o seu escoadouro natural. Desde esta comparação, diz Freud, uma intensidade das diferenças é o que dará a todas as culturas o direito de olhar com desdém para o resto. Assim, conclui-se que é assentada numa base narcísica que os ideais culturais concorrem como fonte de discórdia e inimizade entre as diferentes unidades culturais, o que aqui Freud traduz como nações.

Ademais, acrescenta ele, a satisfação narcísica não só origina o desprezo de uma nação por outra, como também alcança êxito no combate `a hostilidade para com a cultura dentro da própria unidade cultural. Este mecanismo se estabelece de dois modos principais. Primeiro, com as classes favorecidas desfrutando dos benefícios da cultura. Segundo, com as classes oprimidas reservando-se o direito de desprezar os povos estrangeiros como forma de compensação pelas injustiças que sofrem dentro das próprias unidades culturais. É o que ilustra o adágio: dentro de casa plebeu, fora dela legislador romano.

O que se deve destacar desta consideração é o fato de que nela está embutida uma teoria sobre a relação entre o senhor e o escravo, demonstrando que as classes oprimidas se identificam com os seus senhores e passam a agir como eles tão logo apareça a oportunidade, isso porque se por um lado os oprimidos são hostis para com os seus senhores e lhes reservam um grande grau de ódio e rancor, por outro, por estarem ligados emocionalmente a eles, podem ver neles os seus próprios ideais.

Além deste, um outro tipo de satisfação pode ser encontrado na arte. De fato, este tipo de ideal, embora seja inacessível às massas, oferece satisfações substitutivas para as renúncias culturais, reconciliando o homem com os sacrifícios que faz em nome da civilização e elevando, também, aqueles sentimentos de identificação, partilhando experiências altamente valorizadas e proporcionando à mente os seus ideais.

Para Freud, no entanto, o item mais importante a ser considerado dentro do inventário psíquico de uma civilização é aquele que constitui as idéias religiosas, naquilo que concerne às suas ilusões.

Em que reside, pergunta Freud, o valor peculiar das idéias religiosas? Partindo do pressuposto de que a vida em estado de natureza seria muito pior de suportar do que aquela propiciada pela civilização, pois uma das suas características é justamente nos defender contra a natureza, Freud dirá que quando ocorre uma catástrofe os homens esquecem as discordâncias, as dificuldades e animosidades internas e passam a se lembrar apenas da grande tarefa comum de se preservar contra o poder superior desta mesma natureza: Tentei demonstrar que as idéias religiosas surgiram da mesma necessidade de que se originaram todas as outras realizações da civilização, ou seja, da necessidade de defesa contra a força esmagadora da natureza.9 ( Pág. 33 F.I. )

Essa afirmação parte da idéia de que tanto para a humanidade quanto para o indivíduo a vida é muito difícil de suportar, isso porque às privações causadas pela vida em comum com outros homens que nos causam tanto sofrimento vemos, também, a ela acrescentados, os danos que a indômita natureza pode nos afligir. À mercê do destino, o homem desenvolve um permanente estado de ansiosa expectativa ocasionando, com isso, um prejuízo ao seu narcisismo natural. Contra os danos da civilização o homem desenvolve um grau correspondente de resistência aos seus regulamentos e de hostilidade para com ela, situação em que se encontram, segundo Freud, os neuróticos. Mas, pergunta Freud: Como se defende o homem contra os poderes superiores da natureza, do Destino, que o ameaçam da mesma forma que tudo o mais?10 ( Pág. 27 F.I. ). A resposta dada a esta pergunta é que a civilização põe-se numa atitude em que acaba por poupar o homem desta tarefa de se defender contra a natureza através de outros meios.

A consolação exigida para que a auto-estima humana não seja ameaçada diante da consciência dos terrores da vida e do universo acontece com o exercício de múltiplas tarefas da civilização. Com este objetivo, a saída encontrada pela civilização foi a da humanização da natureza. Aquela distância entre o homem e a natureza pode, assim, ser vencida porque o homem a tirou de sua impessoalidade, impondo a estas forças e destinos o estatuto de Seres cuja Vontade maligna deve ser retirada de sua condição espontânea para poderem ser aplacadas. Traduzindo o sobrenatural em tipos conhecidos, pudemos nos sentir em casa e lidar com nossa ansiedade através de meios exclusivamente psíquicos, condição necessária para que saíssemos de um estado de pura indefesa, onde estávamos desamparados e paralisados, para um estado em que poderíamos, via humanização da natureza, proporcionar alívio imediato e apontar para um ulterior domínio da situação.*

Aqui Freud realça a existência do mesmo mecanismo presente na internalização das leis da sociedade. Primeiro o homem criaria uma ciência natural através da entificação dos fenômenos naturais. Essa transformação dos elementos da natureza em Seres permitiria uma substituição dos mesmos na mente, o que possibilitaria, em seguida, a conjuração, a subordinação, o apaziguamento da natureza pelo homem. Mais uma vez Freud apontará que este mecanismo repete um protótipo infantil onde a criança desenvolve meios de se defender contra o próprio pai ameaçador.

Da violência à lei: mais segregação

Sobre a lei, Freud fará uma consideração em Por que a guerra?11 (9), texto de 1933, onde parte da idéia de que o direito, a lei, nasce da violência, que é o seu oposto. A violência, no início, era usada visando dois objetivos: matar e subjugar. Para matar servia-se da violência bruta, para escravizar a violência era apoiada no intelecto.

Houve, desde então, uma evolução no caminho que se estendia da violência à lei; este caminho era a união, cuja força passava a ser superior a de um único indivíduo. A lei era a força de uma comunidade, cuja base era, ainda, a violência.

Freud inclui no caminho desta evolução uma condição psicológica para a passagem da violência ao novo direito ou justiça. Diz ele neste texto:

A comunidade deve manter-se permanente, deve organizar-se, deve estabelecer regulamentos para antecipar-se ao risco de rebelião e deve instituir autoridades para fazer com que estes regulamentos – as leis – sejam respeitados, para superintender a execução dos atos legais de violência. O reconhecimento de uma identidade de interesses como estes levou ao surgimento de vínculos emocionais entre os membros de um grupo de pessoas unidas – sentimentos comuns, que são a verdadeira fonte de sua força.12

Poderíamos, para realizar o nosso esforço aproximativo, entender que estes “sentimentos comuns”, são aqueles que postulam a identidade do grupo e promovem a sua união, que são os mesmos sentimentos que contribuem para a exclusão dos subjugados, segregando-os e impossibilitando o acesso destes à riqueza que a comunidade produz?

O fato é que Freud diz que desde os primórdios estes elementos de força são sempre reunidos de forma desigual e que um estado de equilíbrio desta espécie não pode ser concebida teoricamente, onde o que acontece é que algo escapa e não deixa com que a justiça se efetue, conseqüentemente, ao contrário do que se possa ilusoriamente imaginar, as leis são feitas unicamente por e para os membros governantes, deixando pouco espaço para os direitos daqueles que se encontram em estado de sujeição. Lembram de Trasímaco?

Para Freud, isto tem conseqüências imediatas. Primeiro, os poderosos criam a lei para melhor usurpá-la, efetivando, com isso, uma justiça desigual. Segundo, os subjugados continuam querendo que as leis sejam reconhecidas, onde a justiça seria idêntica para todos. O que é preciso circunscrever aqui, é apenas o fato de que, seja de forma violenta, seja pelas leis, o que a historia nos ensina é que entre os grupos estes vínculos emocionais foram mantidos inclusive para aprovar a idéia de que se devia defender o sentimento de superioridade sobre outros povos. A identificação narcísica devia prevalecer à força ou sob a lei, para que alguma diferença fosse fator contrastante de superioridade com relação ao estrangeiro.

Freud nos ensina que se estas forças forem eficazes em certa medida, não conseguirão o equilíbrio duradouro necessário à existência de qualquer nação. O que nos interessa é estabelecer o núcleo do mecanismo segregador, o que até agora estamos delineando sobre as bases da conceituação narcísica, que é o que transparece nas seguintes palavras de Freud: Já vimos que uma comunidade se mantém unida por duas coisas: a força coercitiva da violência e os vínculos emocionais entre seus membros. Se estiver ausente um dos fatores, é possível que a comunidade se mantenha ainda pelo outro fator. As idéias a que se faz o apelo, só podem, naturalmente, ter importância se exprimirem afinidades importantes entre os membros, e pode-se perguntar quanta força essas idéias podem exercer. A história nos ensina que, em certa medida, elas foram eficazes. Por exemplo, a idéia do pan-helenismo, o sentido de ser superior aos bárbaros de além-fronteiras – idéia que foi expressa com tanto vigor no conselho anfictiônico, nos oráculos e nos jogos – foi forte a ponto de mitigar os costumes guerreiros entre os gregos...13 (l0). Quanto a isto, vemos que o narcisismo das pequenas diferenças é evocado com força descomunal para alavancar a idéia de que o “ser superior” aos bárbaros, que tinham a característica de guerrear; é o que dá margem à ação dos gregos que , por oposição ao outro, suprime de suas hostes os costumes guerreiros, costumes estes vistos como degenerativos em face dos próprios costumes que devem ser logicamente os melhores.

Ainda, quanto às leis, de modo ilustrativo, vale citar a visão particular de Rousseau sobre a origem da desigualdade entre os homens:

Tal foi ou deveu ser a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fracos e novas forças ao rico, destruíram irremediavelmente a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma usurpação sagaz um direito irrevogável e, para lucro de alguns ambiciosos; daí por diante sujeitaram todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria14. (ll).

Por outro lado, diz Freud, se de acordo com a teoria psicanalítica das pulsões, a lei não pode prescindir da violência, por que existe no homem uma pulsão de ódio e destruição, e se as pulsões que tendem a preservar e unir estão, também, em atividade, então talvez exista aí uma relação de atração e repulsa que opera para manter juntos os adeptos de uma identidade comum, destinando o ódio contra qualquer pessoa que esteja além desta fronteira.

Franz Kafka, em “Diante da lei” (l2), brinda-nos com a descrição de uma situação onde um camponês é posto à margem da lei através da intimidação. Diante da lei há um guarda...15, assim começa o texto; entrar na lei para se alcançar A Justiça é proibido, o que torna a tarefa muito difícil, quase impossível. O fraco deve fazer grandes esforços para alcançá-la, esta é a sua condição de acesso. A lei não é acessível a todos, de modo igual, cada um tem a sua própria porta de entrada. Esta entrada depende da força física ou intelectual de cada um. Caso não se possua as qualidades exigidas pela lei, o indivíduo jamais será admitido no interior do grupo.

Este guardião narcísico, cujo amor está direcionado ao ego ( à lei ), para preservar a própria vida, se manteria às custas de destruir a vida alheia. Ademais, teríamos aí, uma participação da pulsão de morte direcionada aos objetos externos mas, também, ao objetos internos por que parte deste amor próprio, que permanece no grupo, também contém a pulsão de morte. Se, por um lado, a unidade cultural segrega os que não se identificam com suas leis, por outro, aqueles que pertencem a ela travarão uma luta sem fim com o objetivo de ascender a ela, cada vez mais. Aqueles que já tiverem acesso às leis, de acordo com a sua força, e que se tornam o seu guardião, precisam ser suplantados para que alguma nova ordem se estabeleça, o que gera um desequilíbrio engendrado pela pulsão de morte.

A guerra e a questão do judaísmo: ódio contra o diferente

Para Freud, a pergunta “Por que a guerra?”, podemos inferir, gera um certo desconforto. Este sentimento deve ter a sua origem no fato de que precisa dar uma resposta a esta questão que permanece milenarmente não respondida pela história: Por que combater no sentido de separar os indivíduos em grupos cada vez mais diferentes ou desiguais? Por que isto gera um desconforto para Freud? Porque a tarefa direcionada a ele por Einstein parece convocar-lhe a dar uma resposta que não seja meramente explicativa deste comportamento, mas que seja também ela, uma resposta ética e combativa no sentido de contribuir para o encontro de um caminho que possa suprimir a guerra. O traço que Freud esboça, enquanto maneira provável de se combater a guerra, ou seja, de se combater o ódio ao diferente, será aquele que procura submeter as pulsões ao domínio da razão, estimulando esta e trabalhando contra a aniquilação.

Uma maneira de abordar esta questão freudiana pode ser, talvez, o entendimento de uma parte da vida do próprio Freud, mais particularmente na sua relação com o judaísmo, berço no qual nasceu.

Quanto à questão do judaísmo, diga-se de passagem, é de conhecimento de todos a perseguição imposta aos judeus por estes se auto proclamarem como sendo o povo eleito.* Esta proclamação produz no mesmo golpe um duplo efeito: auto exclusão e exclusão do outro. Pelo menos foi assim que, historicamente, se sentiram os outros povos com relação ao judaísmo. Do ponto de vista do próprio judaísmo, estes eram nos primórdios particularistas quanto às suas Leis e universalistas quanto a integração de novos adeptos.16 (l3)

No início da era cristã, com o cristianismo disputando com o judaísmo palmo a palmo o terreno na conquista de novos adeptos às suas respectivas seitas, pode-se observar como o contraste ritualísta entre ambos vai servir como força de ataque, tanto para o proselitismo judeu quanto para a pregação cristã.

Isto acontecia porque, de um lado, estava um proselitismo que defendia a circuncisão e a estreita observância da Lei Moral, características que os tornavam membros do povo eleito e, de outro lado, um cristianismo menos exigente no domínio ritual e muito mais rico no plano da doutrina e de acordo com os anseios da alma pagã por que apoiado num Cristo cujo drama é o calvário e numa mística de salvação bastante característica da época.

O que marca, nesse período, tanto a missão judaica quanto a missão cristã é o fato de que o proselitismo judaico, por ter preparado o terreno para a futura missão cristã, retroagiu à medida que esta se expandiu.

Um das características que fez com que o judaísmo recuasse, até mesmo na diáspora, foi o seu caráter nacionalista, caráter este de difícil sustentação para os novos adeptos, inclusive para os romanos, enquanto o cristianismo atingira um universalismo bem diferente dos judeus, que não significava abandonar a pátria. Outro aspecto desencorajador às conversões, pertencente aos judeus era a circuncisão. Este ritual era degradante, por ex., aos olhos dos greco-romanos que viam na castração uma afronta aos seus ideais de virilidade, tanto masculina quanto guerreira.

O que se verifica, então, é que a persistência do proselitismo vai desencadear uma série de perseguições por parte da igreja cristã ao povo judeu. São aplicadas proibições ao proselitismo pelos imperadores cristãos do séc. IV, cânones conciliares decretavam penas diversas e lançavam o anátema contra os judaizantes. Amplas correntes de literatura polêmica antijudaica demonstram o grau de rivalidade que existia entre estas instituições.

Pudemos observar que as instituições, inclusive as religiosas, não escapam às leis do narcisismo e do ideal de ego. Estas leis se manifestam sob os aspectos relacionias existentes entre as diversas instituições religiosas. Duas delas são o cristianismo e o judaísmo.**

De imediato, podemos observar que o cristianismo, neste aspecto, não deve ser tomado na sua acepção pura mas, também na sua secularização vigente através do Estado. Realmente o Estado cristão é que tem predominado na Europa ocidental nos últimos 2000 anos.

Para se compreender os fenômenos que estamos abordando, talvez seja interessante conhecer um fato que ficou conhecido na história da relação entre o judaísmo e o cristianismo como Emancipação dos judeus.

Mezam 1987, entende por Emancipação no inicio do séc. XIX, ...a concessão da cidadania aos judeus, na esteira da concessão desta mesma cidadania aos demais súditos dos diferentes Estados europeus. Cidadania aqui significa o gozo de direitos civis e políticos, tais como o acesso à educação pública, à prática de profissões liberais, à Universidade, ao jornalismo etç.17 (l4). Contudo, o próprio Mezan salienta uma diferença fundamental: ...na França e na Inglaterra, o acesso à cidadania no plano político foi conseqüência de revoluções burguesas que modificaram radicalmente as relações de poder e a organização do Estado, enquanto na Alemanha e na Áustria tais revoluções não se verificam.18(l5).

A tensão existente no interior das relações entre o judaísmo e o cristianismo, no séc. XIX, situadamente na Alemanha, se dá a partir do momento em que os judeus, isso por terem um corpo religioso formado por uma identidade bem específica, irão reivindicar do estado cristão o seu direito à cidadania. A oposição gerada entre judaísmo e cristianismo nasce, neste contexto, desde a constatação de que os judeus buscam uma situação de privilégios num momento em que nem mesmo os alemães estão emancipados, quer do ponto de vista econômico, político, e sobretudo, humanístico.

O que ocorre, então, é que os aspectos identificatórios pertencentes aos judeus serão realçados como exclusivistas para, justamente, marcarem o caráter exclusivista dos judeus. 19(l6)

No texto A questão judaica de 1843 de Karl Marx, temos um relato acerca do que se pensava na Alemanha da primeira metade do século XIX, sobre o pedido de Emancipação que os judeus fizeram ao Estado. Citando B. Bauer, diz o jovem Marx: “Os judeus não podem reivindicar a sua emancipação, os motivos alegados por eles para exigirem isto não se justifica. Os judeus querem ser diferentes, querem privilégios que ninguém tem. Por quê?20 (l7)

Para B. Bauer esta manifestação de superioridade não se mantém se considerada do ponto de vista humanístico, isto porque para ele todos são iguais tanto do ponto de vista político quanto do humano, porque os judeus querem ser melhores ou diferentes.

É preciso frisar que B. Bauer pertence à primeira metade do século XIX, Freud pertence à segunda em diante. Quando Freud nasce, a cidadania está mais ou menos implantada na Áustria por que o capitalismo precisou romper barreiras e diferenças individuais. O congresso de Viena tenta apagar a conquista de cidadania em 1815, mas não consegue. Tanto na Alemanha, quanto no Império austríaco, o direito de representação e consulta acaba, na segunda metade do XIX, por beneficiar, também, aos judeus. Freud se beneficia disso.

Se por um lado a situação dos judeus na Alemanha de B. Bauer ( 1a metade do século XIX ), acirra a questão emancipatória e expõe as contradições inerentes ao embate com o Estado burguês emergente, por outro, no final do século XIX e começo do século XX, a questão se dará entre os judeus, enquanto indivíduos e povo, no plano da sua posição contra o Estado capitalista cristão.

O capital, tornando obsoleto tudo o que encontra pela frente, faz com que o judaísmo se encontre ameaçado. A lógica do capitalismo é homogeneizadora e obedece aos ditames do mercado, onde os agentes sociais se percebem como indivíduos. Abrem-se possibilidades de realização inéditas, os judeus podem tornar-se burgueses, o que coloca uma questão para o indivíduo: como ser judeu? É desejável ser judeu? Vale a pena sê-lo? É dentro deste contexto que Freud vai precisar definir a sua identidade enquanto judeu.

O que acontece é que a partir do século XIX torna-se possível ser ou não ser judeu e, caso se queira, ainda, determinar este “ser judeu” de muitas maneiras diferentes.

Procurando descobrir possíveis influencias do judaísmo na psicanálise Mezan, faz uma pergunta interessante acerca da posição do próprio Freud, enquanto judeu. Perguntando-se em que Freud permaneceu, ainda, um judeu, Mezan conclui que não foi pela fé religiosa, Freud era um convicto ateu; tampouco foi pela identidade e unidade nacional, Freud já pressentia o perigo de todo nacionalismo particularista: ...eles realmente se consideram o povo escolhido de Deus, acreditam que estão especialmente próximos Dele e isto os torna orgulhosos e confiantes.21 (18)

Em uma carta escrita à sociedade Bnei Brit em 1926, Freud diz, isto sim, que se exclui da maioria compacta para exercer uma luta caracterizada pela oposição e resistência contra um meio hostil através da perseverança e tenacidade própria do judeu 22. (19). À guisa de contextualização, de acordo com esta carta, Freud conservou do judaísmo uma ética que se preocupa com o modo de viver, não a ética religiosa, quase concebida naturalmente pelo modo mítico de pensar o mundo, como vimos anteriormente mas, uma ética arraigada na ilustração, na força e no poder do intelecto enquanto meio próprio de se combater a ilusão não científica, uma ética combativa, de luta, de oposição, de atividade, de alegria de viver e não de passividade; uma ética que se opõe e luta com todas as forças contra a lei de entropia, aqui entendida como a tendência capitalista à equalização das tensões, à homogeneização, à desorganização. Para Freud ser judeu é, portanto, lutar contra a homogeneização, devido `a pressão de forças externas e internas, através da lida com a castração que é, por sua vez, o contra ponto narcísico.

Nesta linha de raciocínio, para grifar bem a escolha freudiana da razão ao invés do aspecto religioso, Mezan afirma que para Freud o essencial da doutrina de Moisés não era o monoteísmo, isto já era conhecido pelos egípcios através de Akhenaton por volta de 1300 a.C.. Para Freud, diz Mezan, “o que Moisés trouxe de radicalmente novo é a idéia de um Deus invisível e impossível de ser representado por imagens. Isto obrigou aqueles que acreditaram nesta idéia, isto é, os judeus, a um excepcional esforço de abstração, separando-se do mundo dos sentidos e abrindo caminho para o pensamento racional.”23 (20) Textualmente diz Freud:

Ao ser aceita, esta proibição exerceu um profundo efeito, pois significava subordinar a percepção sensorial a uma idéia decididamente abstrata, um triunfo da intelectualidade sobre a sensibilidade, e, estritamente considerada, uma renúncia aos instintos, com todas as suas consequências psicologicamente inevitáveis...24 (21).

Lacan: segregação e gozo

O retorno lacaniano a Freud pode ser entendido como um trabalho de reformulação e continuação constituído como sendo o avesso da psicanálise. Para Lacan, Seminário XVII, 19.. 25 (22) o avesso mostra a estrutura latente e silenciosa do constructo que Freud elaborou tentando desbravar os mistérios da vida psíquica. Na pág. 10 do referido Seminário, Lacan afirma que o seu discurso é uma retomada do projeto freudiano “pelo avesso”, quer dizer, um discurso sem palavras, mas não sem linguagem; um discurso que visa à estrutura.

Em Freud, o mito do pai morto, em nome do qual se “segrega”, é a estrutura edipiana. Na retomada pelo avesso lacaniano, a estrutura não é composta pela segregação nem pela fraternidade justamente por que ele parte da hipótese de que nas relações, rapport, não existe comensurabilidade, não existe relação sexual, formulando, portanto, que a antinomia segregação – irmandade, por redução ao absurdo, está eliminada. “Estamos todos isolados, juntos”, é a máxima lacaniana para designar que os pares deste binômio são dependentes entre si.

Na verdade, Lacan procura mostrar que a fraternidade é a origem da segregação e que a segregação, para existir, precisa estar ancorada num conteúdo latente que é a verdade. Ora, outra máxima lacaniana expressa que a verdade é a irmãzinha do gozo, donde infere-se que irmanar é gozar através da verdade e, consequentemente, que a segregação é o resultado deste ato gozante.***. Se a verdade é a partilha do pai morto e o pai morto é o gozo, então a segregação-irmandade é o binômio que garante, através da verdade que o impulsiona, uma inserção no gozo absoluto.

A obstinação em sermos isso que não somos, irmãos, recobre algo, diz Lacan. O que é? Recobre o fato de que na fraternidade, segregamos. E, ao fazê-lo, direcionamos para fora, para o objeto segregado grande parcela de pulsão destrutiva, ao passo que a outra parcela permanece no interior do grupo, entre “irmãos”. É ilusória, portanto, a idéia de que há a união, a relação. Era isso que o terrível YAHVÉ chamava de prostituição: a esta tentativa de cópula, o que é, para Lacan, cientificamente ridículo. Para Lacan, a verdade dá acesso ao gozo por que a verdade só existe sobre bases narcísicas de identificação com o “semelhante”.

Freud: o homem é o lobo do homem

Em Mal estar na civilização, Freud afirma que não parece lógico que o ser humano esteja disposto a oferecer sacrifícios pelo seu “próximo” como pede a máxima cristã, ainda mais se este “próximo” se mostra disposto a bater-lhe na face e, novamente fazê-lo caso lhe seja dado o outro lado do rosto.

Por outro lado, diz Freud:

Ela merecerá meu amor, se for de tal modo semelhante a mim, em aspectos importantes, que eu me possa amar nela; merecê-lo-á também, se for de tal modo mais perfeita que eu, que nela eu possa amar meu ideal de meu próprio eu ( self).26

Para Freud, o mais lógico é que o ser humano não dê a outra face e que, na verdade, a tendência é que o homem deve amar como este lhe ama. Para Freud o homem não é gentil, ao contrário carrega uma alta cota de agressividade que está disposto a descarregar tão logo alguém lhe dê as costas:

Em resultado disso, o seu próximo é para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar a sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posse, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. Homo homini lupus. Quem, em face de toda a sua experiência da vida e da história terá coragem de discutir essa asserção? Via de regra, essa cruel agressividade espera por alguma provocação, ou se coloca a serviço de algum outro intuito, cujo objetivo também poderia Ter sido alcançado por medidas mais brandas. Em circunstâncias Que lhes são favoráveis, quando as forças mentais contrárias que normalmente a inibem se encontram fora de ação, ela também se manifesta espontaneamente e revela o homem como uma besta selvagem, a quem a consideração para com sua própria espécie é algo estranho. Quem quer que relembre as atrocidades cometidas durante as migrações raciais ou as invasões dos Hunos, ou pelos povos conhecidos como mongóis sob a chefia de Gengis Khan e Tamerlão, ou na captura de Jerusalém pelos piedosos cruzados, ou mesmo, na verdade, os horrores da recente guerra mundial, quem quer que relembre tais coisas terá de se curvar humildemente ante a verdade desta opinião...27 (23)

Após todas estas considerações, a pergunta que se impõe é a seguinte: teoricamente, deveríamos seguir Freud no seu aparente pessimismo quanto ao futuro da civilização, ou deveríamos acreditar em uma possível proposta de conciliação entre Eros e Tánatos, no sentido de que estas forças alcancem um equilíbrio, recuando na tendência a exigir cada vez mais esforços e renúncias para o avanço do processo civilizatório? Não parece fácil decidir por uma e outra opção.

Por um lado, o abandono das ilusões poderia nos colocar de um modo mais realista diante da morte, o que nos possibilitaria estabelecer um outro modo de relação com o nosso desejo. Mas, esta via parece enormemente dificultada; na verdade, o homem ainda não conseguiu abandonar as fantasias que fazem com que a realidade esteja distorcida. A enorme dificuldade em aceitar a sua condição animal ainda o coloca diante da criação de idéias mágicas frente aos perigos da natureza, fazendo com que o projeto de uma troca dos “meios religiosos” pelos mais “esclarecidos” fique adiado.

Por outro lado, e como conseqüência, a renúncia àquelas pulsões parece não ter, hoje, um modo coerente de se efetivar, uma vez que ainda não encontrou idéias substitutas que possam apaziguar a angústia do homem diante da vida e da morte. Talvez, devêssemos acreditar na impossibilidade de se efetivar tal equilíbrio entre as forças de Eros e Tánatos. Na verdade, o que diz Freud é que embora ambas caminhem juntas, uma dependendo da outra para que as coisas sigam os seus curso natural, isto não se dá de modo equilibrado. Talvez a idéia de que Freud seja pessimista quanto aos destinos pulsionais esteja equivocada. Talvez, ao acreditarmos numa leitura que transfere a Freud um emblema pessimista, estejamos nos carregando de preceitos, porque não preconceitos, morais que nos distanciam da proposta freudiana de que a natureza segue seu curso para além de bem e mal, não nos cabendo julgamento nem ressentimento mas, apenas uma tentativa de tomada de consciência no sentido de responsabilização diante das enormes forças que estão em jogo, tanto egóica quanto inconscientes na profunda arquitetura da mente humana.

Se, de fato, procedêssemos assim, talvez pudéssemos alcançar um estádio mais promissor para a civilização. Um estádio em que, talvez, os mecanismos de segregação não fossem tão facilmente engendrados, onde estes perdessem as suas força e cedesse lugar a sociedades menos narcisistas e mais afeitas à supressão da intolerância diante do diferente e capazes de estar com o outro sem soberania. Talvez a utopia de um equilíbrio total não seja possível mas, também não devemos apostar na possibilidade de queda no extremo oposto. Entender que a plasticidade pulsional é um dos fatores relevantes a ser considerado para o alargamento das expectativas de minimização do mal estar vivido pelo homem diante das cruéis tarefas e renuncias impostas pela cultura, talvez seja uma saída, se entendermos, também, que esta plasticidade só se torna dinâmica e efetiva quando realmente nos comprometemos com a quebra dos discursos que promovem o gozo e a paralisação.

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