A (DES)ILUSÃO DA FOTOGRAFIA

Nas minhas viagens, desde a infância, eu sempre carregava uma máquina fotográfica, e, como um “antropólogo mirim”, registrava os momentos mais significativos. O que aconteceu em uma dessas viagens, no Estado do Tocantins, foi muito interessante e merece um estudo especial.

Havia um senhor, chamado, carinhosamente, “Nêgo”, que não queria ser fotografado. Era membro de uma comunidade cujos integrantes, em sua maioria, descendiam de índios. Diante da máquina fotográfica, Nêgo rogava aos seus ancestrais, vendo-a como uma invenção “diabólica” e não admitia, por exemplo, ver a fotografia de uma pessoa que estivesse ao seu lado, pois seria como se essa pessoa pudesse se duplicar. De qualquer forma, com o seu consentimento, consegui fotografá-lo. Alguns meses depois, quando retornei àquela região, ao mostrar-lhe a fotografia, ele recusou-se a admitir que a imagem fosse realmente a sua.

O presente texto é uma tentativa de responder a algumas questões surgidas naquela ocasião. Para Baudrillard, a fotografia é o nosso exorcismo, o que corresponderia às máscaras (ou aos totens), para as sociedades antigas. No entanto, enquanto, para os antigos, as máscaras serviam a um ritual de força e magia, a fotografia, em nossa cultura, goza de um status de expressão da realidade. Mesmo com todos os recursos existentes e com as possibilidades de manipulação de imagens, ainda podemos dizer: “se foi fotografado, aconteceu, existe”, numa espécie de cogito contemporâneo. Mas, poderíamos perguntar: “Existe para quem?”. O episódio acima ilustra bem essa questão. Nêgo não podia aceitar a existência de outro “eu”, “mim-mesmo” ou algo assim, e era isto que a fotografia revelava: um outro “eu”. A fotografia tornava possível que ele enxergasse a si próprio, coisa que, com certeza, ele nunca havia feito e posso quase garantir que nem mesmo diante de um espelho. Que poder maligno possuía aquele objeto negro e aquele pedaço de papel. Seria magia ou truque do “coisa ruim”? Esse povo da cidade?!

A imagem fotográfica é uma ilusão, pois nada existe à maneira como é fotografado e isto fica evidenciado quando, por exemplo, fotografamos alguém andando de bicicleta. A bicicleta só permanece “em pé” devido ao seu movimento, se ela for imobilizada, a tendência é que caia. Mas a fotografia pode nos iludir, pois “congela” a imagem de alguém sobre uma bicicleta, quase nos fazendo pensar que tal fato seja concebível. A fotografia faz com que as águas de uma cachoeira pareçam estáticas...

Barthes, por sua vez, numa visão mais descritiva, afirmou que uma foto pode ser objeto de três práticas, às quais ele denominou de operator, que é o papel que cabe ao fotógrafo; spectator, que é aquele cujo olhar observa determinada fotografia e spectrum, que é o “alvo”, o referente.

No caso acima citado, nosso personagem central, “Nêgo”, relutava em ser spectrum, o que nos oferece uma pista sobre a sua relutância em se deixar fotografar. Vendo-se como alvo daquela máquina fria e silenciosa, Nêgo sentia que algo lhe seria retirado. Talvez a sua alma, que ficaria impregnada naquele objeto, sendo levada para longe. Como ele poderia conviver com a idéia de que um outro “si mesmo” pudesse ser visto por outros?

Eis a solução para a nossa questão inicial: Nêgo não podia conceber a ideia de ver a si mesmo como outro, como objeto da sua própria compreensão. Tal questão também incomodou a Barthes, que afirmou: “Pois a fotografia é o advento de mim mesmo como outro: uma dissociação astuciosa da consciência de identidade. (...) A fotografia transforma o sujeito em objeto”. *

Barthes também distingue na fotografia dois elementos: o studium, que significa uma espécie de “afeto médio do interesse”, um conhecimento geral, sem acuidade particular e o punctum, que representa uma parte específica da cena fotografada, é o elemento da foto que nos toca, como uma picada feita por um objeto pontudo.

Tomo, aqui, a liberdade de acrescentar aos dois elementos percebidos por Barthes, na fotografia, um terceiro, sem o qual, creio, ela não seria possível. À esse elemento, para usar uma terminologia próxima à de Barthes, denomino ratio, que representa o impulso, a intenção ou razão que levou o fotógrafo a “clicar” determinado objeto, é ele o responsável pelo sentimento que toma conta do fotógrafo toda vez que ele revê a foto, é por ele que todos nós podemos ser fotógrafos. Em algumas fotos, sobretudo as jornalísticas, tal elemento é evidente, mas, na maioria delas, ele não é transparente, sendo percebido apenas pelo próprio fotógrafo.

No episódio e na foto em questão, é possível perceber esses três elementos. O studium mostra uma cena urbana na qual um homem do campo sorri, apertando nervosamente um objeto com as mãos. O punctum é o seu sorriso voltado para o nada, inexpressivo, que revela mais medo do que alegria e, finalmente, a ratio, que representa, nesse caso, o desafio de fotografar alguém que relutava, que não aceitava a idéia de ver-se fotografado.

Assim, em Baudrillard, permanece a noção de que a fotografia “despe” a realidade dos elementos que a constituem, fazendo-os desaparecer, restando apenas uma imagem, sem sentido, do objeto fotografado. O preço de ver “o que aparece” é o “desaparecimento” do que não é próprio da fotografia, como, por exemplo, o tempo e o movimento. Para Barthes, em contrapartida, o elemento fundamental da fotografia não está na “câmara escura” e sim na “câmara clara”, que é o próprio homem, cujo papel é dar sentido, a partir de sua sensibilidade, às sensibilidades química e física que tornaram possível a fotografia.

Finalmente, parece-me que ambos concordam em um ponto, a fotografia é, ao mesmo tempo, uma ruptura e uma ligação com o mito, com o imaginário. Por um lado, ela promove a (des)ilusão, pois nos mostra algo de que não podemos duvidar. É fato! Aconteceu! Por outro, ela não rompe com a fantasia, pois alimenta a magia, o mistério. Talvez seja por isso que a história não nos tenha permitido fotografar Sócrates, Confúcio, César, Jesus, Maria, Buda, Agostinho, Galileu e tantos outros.

Bibliografia e notas:

* BARTHES, Roland. A Câmara clara. Trad. Júlio Castanôn Guimarães. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1980, p. 26.

Legenda das fotos (Veja as fotos no tópico “Fotos”, no álbum “(Des)Ilusão da Fotografia!

1 – Nêgo – Arraias TO, 1983 (câmera Kodak Pocket 100, filme 110) – Foto “melhorada” no Photoshop.

2 – Dois Bois – Arraias TO, (câmera Olimpus Trip 35, filme [película] 35mm)

3 – Igreja São Domingos – Uberaba MG (câmera Zenit II, filme [película] 35mm)

4 – Trave Solitária – Vitória ES, 1992. (câmera Zenit 12 XP, filme [película] 35mm)

5 – Rio Claro – (câmera Zenit 12 XP, filme [película] 35mm)

6 – Liberdade pra quê? – (câmera Pentax K1000, filme [película] 35mm) - Foto “melhorada” no Photoshop.

7 – Duas Irmãs – Arcos MG, 2009 – (câmera Polaroid a500 – digital)

O autor sugere aos leitores: identificar, nas fotos, os elementos citados no texto.

Crédito das fotos: Paulo Irineu

Paulo Irineu Barreto
Enviado por Paulo Irineu Barreto em 30/08/2010
Código do texto: T2469066
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