SOBRE UMA DECLARAÇÃO DE LENNON

Poucas vezes uma afirmação causou tanta discussão quanto a que foi feita por John Lennon e publicada em março de 1966 por uma repórter inglesa do “Evenning Standard”, com o seguinte texto: “O Cristianismo passará. Passará e desaparecerá. O tempo provará isso. Agora nós somos mais populares do que Jesus. Não sei qual dos dois desaparecerá primeiro – o Rock’n’roll ou o Cristianismo...”. Embora não seja intenção deste texto abordar as implicações sociais e religiosas de tais afirmações, não é difícil imaginar a gravidade que as mesmas carregam. Lennon tentou se defender, dizendo que suas palavras foram mal interpretadas e que não se tratava de uma afirmação vaidosa ou de autopromoção e sim da constatação da popularidade de sua música, e atitude, junto aos jovens. Os Beatles, afinal, representavam a rebeldia própria da época e já haviam sido transformados em ícones de toda uma geração.

A declaração de Lennon tem, ao mesmo tempo, algo de profano e de sagrado. Ou melhor, tem algo de real – próprio do rei – (o rei sempre foi o “profano-sagrado” ou o “sagrado-profano”). As mesmas afirmações poderiam não ter causado tanta sensação, se tivessem sido pronunciadas por outra pessoa e não por Lennon que, a esta altura, já havia sido promovido a uma espécie de Midas da música. O rei Midas, por um poder conferido pelo deus Dionísio, a seu pedido, podia transformar em ouro tudo o que tocava. Lennon, por sua vez, podia transformar em ouro tudo o que falava, seja em suas declarações ou mesmo nas letras de suas canções, ouvidas e repetidas em todo o mundo.

Em uma das primeiras canções de sua carreira solo, demonstrando que via a si mesmo como uma espécie de herói, Lennon escreveu:

“Soon as you’re born they make you fell small

By giving you no time instead of it all

Till the pain is so big you feel nothing at all

A Working class hero is something to be

They hurt you at home and they hit you at school

They hate you if you’re clever and they despise a fool

Till you’re so fuckin’ crazy you cant’t follow their rules

A Working class hero is something to be

There’s room at the top they’re tellin’ you still

But first you must learn how to smile as you kill

If you want to be like the folks on the hill

A Working class hero is something to be

If you want to be a hero, well, just follow me”

O que poderia ser traduzido da seguinte forma:

“Assim que você nasce eles te fazem sentir pequeno

Não te dando nenhum tempo, ao invés do tempo todo

Até que a dor seja tão grande que você não sente mais nada

Um herói da classe operária é um boa coisa pra gente ser

Eles te machucam em casa e te batem na escola

Te odeiam se você é esperto e te desprezam se você é tolo

Até que você fica tão maluco que não consegue seguir suas regras

Um herói da classe operária é um boa coisa pra gente ser

Ainda há um lugar na cúpula, é o que estão te dizendo

Mas primeiro você tem de aprender a sorrir enquanto mata

Se quiser ser como os ricaços que moram na colina

Um herói da classe operária é um boa coisa pra gente ser

Se você quiser ser um herói, bem, é só me seguir...” 1

Midas, ao perceber que o seu poder não era um bom negócio, pois já não podia tocar em mais nada, nem mesmo em si próprio, pediu ao deus que o tornasse novamente uma pessoa comum, sem poderes; Lennon, de maneira semelhante, tentou se livrar da responsabilidade que atraíra para si, dizendo: “..não acredito mais no mito e os Beatles são mais um mito. E não estou falando só dos Beatles, falo de todo este lance de geração. O sonho acabou. Acabou e temos – pelo menos eu, pessoalmente – temos que votar à chamada realidade.” 2

Dionísio atendeu ao pedido de Midas, mas o rei permaneceu tolo e durante uma disputa entre a flauta de Pã e a Lira de Apolo, em que o prêmio foi concedido a Apolo, Midas, não conseguindo ficar em silêncio, criticou a decisão e manifestou-se a favor de Pã. Acreditando que poderia sair ileso, provocou a ira de Apolo, que transformou suas orelhas em orelhas de burro.

Lennon, assim como Midas, também prosseguiu falando e acreditando que o “Deus” – establishment – que ele tanto criticara, o perdoaria da responsabilidade de suas ações e afirmações, assim como Midas acreditou poder manifestar-se contra Apolo e sair ileso. A punição de Lennon, entretanto, não foi a mesma de Midas, que teve as orelhas transformadas. John Lennon pagou com a própria vida. Foi assassinado por um de seus admiradores, confirmando o ditado: “um rei sempre acaba morto por um de seus próprios cortesãos”.

Nem tudo estava acabado, no entanto, assim como Midas que, por ordem de Apolo, mergulhou a cabeça na corrente do rio Pactolo, para livrar-se de seu poder, transmitindo para o rio uma grande quantidade de ouro, Lennon deixou o “ouro” de suas canções correndo no “rio” dos corações de sua geração e das seguintes, influenciando novas canções e posturas e marcando toda uma época, ao afirmar que ainda é possível uma alternativa pacífica para o mundo. Sua voz foi silenciada, mas o seu eco ainda ressoa na voz de todos os que cantam as suas canções, ou outras, concebidas através da sua inspiração. “Imagine all the people, living life in peace...”.

Referências e notas:

MUGGIATI, Roberto. Rock: do sonho ao pesadelo. Porto Alegre: LePM, 1984.

SCHUWAB, Gustav. As mais belas histórias da antigüidade clássica. São Paulo: Paz e Terra, 1994.

1- MUGGIATI, Roberto. Rock: do sonho ao pesadelo. Porto Alegre: LePM, 1984. p.44.

2- Ibidem, p. 43.

* Ouça aqui “Working Class Hero”, versão Green Day:

http://www.youtube.com/watch?v=sNCFcDy94xc

Paulo Irineu Barreto
Enviado por Paulo Irineu Barreto em 14/08/2010
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