LAVRAR OS AUTOS - Entendendo as palavras
Podemos achar estranho na linguagem jurídica que, como a linguagem militar e as tantas linguagens das tantas tribos, usam palavras diferenciadas e termos técnicos exclusivos, – ao assistirmos a um júri, nos sentimos como etês, senão bem excluídos e inferiorizados – vemos com bastante estranheza dizerem nessa linguagem obscura que “lavrou-se os autos”. Talvez pessoas mais atuais crescidas na cidade possam nem estranhar tanto, pois decerto jamais terão ouvido falar de lavoura (roça e coisas assim), então somente ficariam a se questionar o que quer dizer “lavrar os autos”. Todavia, para quem cresceu conhecendo a horta, a roça e o arado a comparação é inevitável e sempre pairará a pergunta de o que há em comum entre um papel escrito e a roça para se dizer “lavrar os autos”. E até é possível que se visualize um homem com seu arado a lavrar os “altos” de sua propriedade e se imagine a dificuldade de executar o esse trabalho nos íngremes aclives e ribanceiras.
Entretanto, certamente lavrar os autos ou contrato e coisa do gênero tem relação com lavoura sim, pois com o arado se fazem sulcos na terra e no início da escrita o que se fazia com a ferramenta de esculpir escrita (talvez uma cunha, punção ou talhadeira) era lavrar uma pedra, uma madeira (que hoje chamamos entalhar, mas entalhe é lavrar), um tablete ou tijolo de barro produzindo assim um documento escrito. Nesse tempo então quando se escrevia um documento se lavrara um auto.
Entretanto, hoje não se lavram mais autos, mas se escrevem simplesmente ou se grafam (que quer dizer desenhar, pois letras são desenhos de símbolos fonéticos), sendo que nossos instrumentos de escrita não produzem mais sulcos e eles nem são mais necessários na escrita. Entretanto, o ser humano não perde a mania do fetiche, do querer fazer-se exclusivo pela linguagem, mostrando-se superior aos outros pela diferenciação, pelo somente ele dominar certa área. E quase todos fazem assim, sejam os que se utilizam da gíria, sejam os militares, com suas expressões operacionais, os jornalistas, com suas ovações, os médicos, com suas caligrafias sem-vergonha, os engenheiros com sua grafologia técnica, os técnicos em geral, os publicitários, que abrasileiram palavras em inglês tornando-as seus termos técnicos, os juristas, que amam o latim (que significa escondido), etc., e até os mecânicos, que, a exemplo dos outros, amam criar seus termos técnicos para, como disse o professor Roberto Mena Barreto, bem poder esconder frente aos leigos que eles não passam de especialistas incompetentes.
Portanto, “lavrar” os autos ou que documento seja com instrumentos de escrita tão sensíveis e fáceis de utilizar é de doer, bem como é de cair o queixo ovacionar alguém sem matar uma ovelha sequer.
Wilson do Amaral