Rei morto, Rei posto
Todo mês de junho é assim: vem o frio, na região Sul – justamente o mês do ano em que menos me sinto em casa, minha tolerância ao inverno diminuiu bastante, nos últimos anos, e minha vontade de estar no Norte só cresce, mas não apenas por conta do frio, do inverno, do verão, que por lá está começando... é que, desde 2005, mais ou menos, quando vivi mais presentemente o tal do Festival Folclórico, uma vez por ano, me sinto parintinense.
Olhe... morei em Manaus, no que costumo ter como os três melhores anos da minha vida, até hoje, fui a outras cidades do Amazonas, conheci Itacoatiara; fui a Presidente Figueiredo, tomar banho de cachoeira, uma semana depois da Festa do Cupuaçu, e fui a Iranduba, do outro lado do Rio Negro, subindo na balsa do porto do São Raimundo, bairro de Manaus e descendo no Cacau Pirêra, vila do município de Iranduba. Mas nunca fui a Parintins!
Claro, se contarmos pela tevê e o Google Earth, já viajei algumas vezes a Parintins... mas nunca pisei meus pés, propriamente, na ilha tupinambarana. E nunca imaginei por meus pés lá! Já havia visto o festival, pela antiga emissora, em 2003 e 2004, tarde da noite. Mas só a partir de 2005, me senti transportado para lá, vi os dois bois, senti a emoção e a vibração da galera do Boi do Povão, fui hipnotizado pelas diversas tonalidades de vermelho... e aí, na frente da televisão, me vi dançando, cantando junto com o levantador, com o apresentador Israel Paulain, gargalhei e vibrei com as provocações e as anunciações do amo do boi, Tony Medeiros, fiquei extasiado com a beleza da Cunhã Poranga, da Porta-estandarte, da Rainha do Folclore, fiquei impressionado com a evolução do Boi Garantido, como parecia em tudo com um boi de verdade, se movimentando na arena. Me tornei, através da tevê, mais um torcedor, mais um orgulhoso membro daquela galera que não parava de pular, gritar, vibrar e levantava os braços toda vez que Israel Paulain os exortava para que fizessem isso. Lá pela terceira vez em que Israel entoou: “mas quem é Garantido, levante o seu braço...”, já estava levantando os meus e respondendo: “eu sou, eu sou!”
Enfim, desde então, nos últimos anos, todo mês de junho eu procuro me transportar, mesmo que através da tevê, para Parintins, todo mês de junho me sinto meio caboclo perreché, quase sinto-me como se estivesse no meio da galera. Desde que mudou o grupo de comunicação que transmite o festival, houve a vantagem de os dois bois serem transmitidos e a desvantagem de paulistas nem um pouco identificados com os mesmos falando o tempo todo, geralmente trazendo informações pra toda vida, ou seja: coisas que ou você já tá careca de saber, ou que não fariam a menor diferença se você não soubesse!
Este ano não foi de todo diferente, vesti minha camisa vermelha e branca e me postei em frente a televisão, pra me transportar à ilha tupinambarana, apesar do friozinho. Claro que o Garantido não estava tão criativo, claro que ainda estavam tentando se recuperar da traição, claro que o novo levantador de toada começou muito nervoso, e tudo o mais, mas mais claro ainda foi que os dois bois não estiveram outra coisa senão iguais. O boi contrário não apresentou nada que pudesse me empolgar, não tinha nada de mais criativo e vibrante – aliás a profusão de cores frias não tem nem como ser mais vibrante que o vermelho do boi Garantido. Os dez pontos de vantagem do boi contrário, na apuração do Festival de ontem à tarde não foram, a meu ver, de forma alguma justos, o boi contrário não demonstrou, afora, talvez, a financeira, nenhuma grande vantagem frente ao boi do povão. Se fossem décimos, e não pontos, de vantagem, eu até acreditaria, mas dez pontos é um tanto escandaloso demais! A compra do melhor levantador de toadas que há não pode render tantos pontos assim.
Em verdade, vos digo: tente imaginar se Fernandão, pretextando uma mágoa com a direção colorada, por não dar prioridade a sua repatriação, em vez de ir para o Goiás, viesse para o porto-alegrense! Imaginou?? Pois é, Fernandão, eterno capitão da Libertadores da América, não foi para o principal rival do glorioso Sport Club Internacional, para manter a torcida colorada, que à época acompanhava avidamente o noticiário esportivo, do seu lado. O torcedor colorado, e isso posso dizer com alguma propriedade, não ficou contra a diretoria do clube, mas tampouco ficou contra o jogador. Pois a burrice que capitão Fernandão não cometeu, o rei David achou de cometer: trocou a agremiação onde era ídolo incontestável, com sua torcida apaixonada, pelo dinheiro do principal – e único – rival. Tudo bem que se mude de agremiação quando o dinheiro fala mais alto, e que se admita isso, o que lhe queimou o filme foram a ladainha e as lamúrias contra a direção do boi bumbá Garantido – que naturalmente não deve ter aceitado bem o anúncio de sua saída – e sua declaração de amor ao contrário, chegando a dizer que, mesmo defendendo as cores do boi alvirrubro, sentia não ter um coração pulsando no peito, mas sim “uma estrela”. Não podia esperar, mesmo, que a torcida vermelha e branca o seguisse e passasse a torcer pelo aparentado parintinense do tricolino da Azenha. Aconteceu, porém, não sei bem como, que os comandantes da agremiação azul, preta e branca – se suas cores são essas, por que omitem o preto, ao falar das suas cores, e se realmente são apenas azuis e brancos, por que uma vaca preta lhes representa? – acharam que, comprando a voz do adversário, ganhariam de brinde a emoção.
Foi a primeira vez, desde que comecei a acompanhar mais atentamente o Festival de Parintins, em que vi David Assayag desafinando, por vezes rouco, em outras cantando burocraticamente, como um simples crooner de qualquer churrascaria numa noite de sábado. Terá ele, também, achado que conseguiria levar junto com sua voz a alegria que tinha, ao levantar as toadas no boi do povão? Terá ele achado que conseguiria conquistar a torcida da qual tirou onda e fez pouco por tantos anos, assim que pusesse os pés no bumbódromo? Teria a diretoria do boi contrário pensado realmente isso? Não foi apenas isso, claro que não foi! A direção do contrário achou que comprando a voz, também compraria a alma do adversário. E o outrora rei achou que tinha deixado a nação, mas que o povo o seguiria, onde quer que fosse. As coisas não são tão simples assim! O povo do contrário não reverenciou-o como se ainda tivesse alguma coroa, mesmo que metafórica, por sobre sua cabeça; o seu antigo povo não mais o reverencia como o rei que fora outrora.
David displicentemente deixou cair a velha Excalibur e esta se fincou na rocha da Baixa do São José. Enfim, como nas velhas lendas, um jovem, um menino foi quem se destacou dentre tantos outros que pareciam tão ou mais capazes que ele para substituir o antigo rei, negligente, retirou a espada da pedra e empunhou-a acima de sua cabeça. Após um ligeiro nervosismo, na primeira noite, ao cantar a bela toada “Batuqueiro Torcedor”, encantou e levantou a galera vermelha e branca na arena. Ao levantar a galera, Sebastião Junior teve o seu momento, ali ele empunhou e ergueu Excalibur. Façam anunciar: a Baixa tem um novo Rei! O menino franzino, vindo de longe, soltou a voz, forte e estrondosa como o rugido de um leão. Como nas velhas lendas, é sendo Rei que aprenderá a sê-lo, sem fugir à responsabilidade, sem temer estar aquém do encargo que lhe é imposto. E é assim! Rei morto, rei posto! Sabe aquela história de rei que não perde a majestade? Se David tivesse seguido o exemplo do capitão Fernandão e, sei lá, fosse cantar ciranda pela Flor Matizada, em Manacapuru, quem sabe ainda teria sua coroa, incólume e incontestável, como pretendera! Mas há outro lugar comum nas monarquias: Rei morto, rei posto! O rei está morto, longa vida ao Grande Rei! O mundo é bão, Sebastião!