SÁBADO CULTURAL

É difícil, até para mim mesmo, imaginar que um paulistano não conheça sua própria cidade. É, percebeu bem aquele leitor atento que já sabe que estou falando de mim mesmo.

Tantas cidades em que não há nenhum tipo de programa interessante para ser feito e eu aqui, numa das maiores megalópoles do mundo sempre enclausurado em minha casa.

Teatros, shows, cinemas, bibliotecas, restaurantes, museus, parques, livrarias enormes e eu aqui no aconchego do meu lar dando comida ao cachorro e ao gato. Escrevendo quando alguma inspiração aparece.

E isso tem sido difícil ultimamente, pois estou tão sem conflitos, tão em paz comigo mesmo e com o mundo, que parece que as problematizações que eu antes fazia das coisas eram apenas minhas.

E de fato, eram minhas mesmo.

Espero sinceramente que esse estado de espírito quase búdico permaneça por muito tempo. Mesmo com o prejuízo da pouca inspiração para a literatura.

Mas a literatura é algo de tão livre e tão sem regras, que é possível se fazer quase que qualquer coisa dentro da sua infinitude.

A literatura é isso mesmo, infinitude.

Não há limites, mas criação.

E pensando dessa forma digo até uma bobagem quando falo que sem ter problemas é difícil fazer literatura. O bom autor cria sempre, não do nada, mas um motivo qualquer já é matéria para imaginar, delirar, colorir, aumentar, multiplicar, inventar, mentir, dizer a verdade...

Dito isso, fomos ontem, sábado gelado de junho, ao Museu da Língua Portuguesa. Eu, minha doce filhinha e sua não menos doce amiguinha de escola. Fomos de metrô ao Museu que até então eu não havia ido. Nem eu nem as meninas.

O Museu têm três andares, com exposições diferentes em cada um deles. No primeiro andar, logo na entrada do Museu, há um monte de placas com dezenas de palavras.

Estas estavam dispostas de modo que não era possível compreender seu sentido ao menos que se olhasse num determinado lugar.

Depois, no mesmo andar, havia um quadro enorme, cheio de umas espécies de placas com inadequações gramaticais que costumamos cometer no dia a dia.

Havia dezenas de pessoas paradas em frente às placas, lendo o que estas diziam. Era até difícil de passar. Havia letras de MPB por todos os lados, poemas de autores famosos e menos famosos.

Segundo andar. Do lado esquerdo da saída do elevador havia um telão imenso. Imenso mesmo. Acredito que este telão deveria ter pelo menos uns 50 metros de comprimento.

Nele passava um filme em que se falava sobre o português do Brasil. De todas as suas variações e suas nuances. Apareceram artistas famosos como Caetano Veloso, Chico Buarque, Maria Bethânia, Gilberto Gil e outros menos famosos e ainda populares de todos os tipos.

Falava-se das festas populares brasileiras, do carnaval, da música, das misturas que sofreu a língua, enfim, deste caldeirão multicultural que é o nosso país e a nossa língua.

No mesmo andar, bem ao centro, havia um painel com a evolução da língua portuguesa desde o latim mais arcaico até os nossos dias. Havia também painéis com as famílias das línguas de todo o mundo e os aspectos culturais, peças de artesanato, roupas, escritos e tudo quanto existe como influência em nossa querida língua portuguesa do Brasil.

No terceiro andar havia uma sala de cinema. O filme, é claro, falava sobre os vários aspectos da nossa língua e parecia ser um resumo de tudo o que havíamos visto até ali. O filme, muitíssimo bem produzido, com som impecável, era narrado por nada menos do que Fernanda Montenegro.

Depois que o filme acabou o telão se levantou e fomos convidados a entrar numa sala escura, cheia de fragmentos de textos e poesias no chão. A sala era muito grande e sentamos dispostos como num estádio de futebol. Então começou a narração e as imagens no teto e nas paredes.

“Penetra surdamente no reino das palavras”

Esse “pedaço” de Drummond era por reiteradas vezes proferidos pela voz de Matheus Nachtergaele. Convidando-nos a penetrar naquele enorme reino de palavras.

Então vários fragmentos de textos, poesias e músicas eram narrados e cantados por diversas personalidades brasileiras. Um show de imagens também se via no teto.

Realmente emocionante.

Para aqueles que são apaixonados pela língua como eu, fica difícil não deixar que algumas lágrimas escorram pelo rosto. Tamanha a beleza e a imensidão de nossa cultura e nossa língua.

Uma coisa que notei foi que a tônica ideológica do Museu é tentar quebrar preconceitos quanto ao falar “errado” do povo, pois em verdade, este povo é que é o dono da língua.

Os gramáticos são os “grilos”, como dizia Monteiro Lobato.

Eles não devem ditar regras, pois não detêm nenhum poder, e são muito pouco levados em consideração quando estamos falando desse fenômeno monumental que é esta língua falada por 200 milhões de pessoas somente no nosso Brasil.

Neste universo, quem são os gramáticos?

Enxugadas as lágrimas, saímos do Museu da Língua Portuguesa. Era cedo, 16h00. As meninas ainda estavam cheias de energia e vontade de continuar o passeio.

Pensei comigo: Vou levar essas danadas ao Museu de Arte Sacra. No qual eu também nunca fui. É perto do Museu da Língua Portuguesa, dá para ir a pé.

Fomos.

Para início de história, o prédio do Museu de Arte Sacra é tombado pelo patrimônio histórico desde 1943. É uma construção que data do século XVIII e está toda conservada.

Há ainda uma capela em estilo barroco, toda cheia de detalhes dourados e muitos, muitos, muitos detalhes, bem ao estilo rococó.

Pensei em como sou tonto em não sair de casa e ver essas belezas.

Mas, tudo bem, ainda sou novo. Há tempo para me recuperar de minha tontice.

Logo na entrada do Museu já há um enorme espelho com uma moldura toda entalhada em madeira, com anjos, querubins, e mais os muitíssimos detalhes do estilo barroco.

Fiquei impressionadíssimo com o trabalho que o artista deve ter tido para fazer aquilo. Trabalho e paciência, pois deve ter levado anos para conseguir chegar àquele resultado.

E fomos adentrando ao Museu. Ele é bem pequeno. Uma visita de duas horas é suficiente para ver tudo em detalhes.

Havia muitos e muitos santos feitos de madeira. Madeira policromada e quadros pintados a óleo.

Havia até uma obra da famosa Anita Malfati, uma das mais importantes pintoras do nosso país e também uma das artistas que fez parte das vanguardas artísticas do início do século XX.

E, enquanto as meninas se perderam da minha vista, eu continuava a caminhar lentamente pelo Museu.

Num sábado, na maior cidade de um país majoritariamente católico, havia uma enorme densidade demográfica dentro do Museu de Arte Sacra: Eu, a minha filha, a amiguinha dela e os funcionários do lugar. Esta foi uma das minhas muitas reflexões sobre o Museu e sua arte cristã.

Vamos mais adiante, no Museu de Arte Sacra; sagrada.

Havia um compartimento guardado por um segurança, compartimento este que abrigava inúmeras peças de ouro e de prata.

Ali também impressionava a arte rococó brasileira do século XVIII.

Os castiçais, os ostensórios, as inscrições latinas, as cruzes, os cetros dos padres, as batinas, as mitras, os defumadores, os utensílios para a ceia do Senhor... Tudo isso, muito ricamente, detalhadamente, minuciosamente trabalhado com muitíssimos detalhes.

Para nós, ratos de esgoto do século XXI, ver aquilo era algo extremamente surpreendente. Para nós, que vivemos num tempo em que tudo é muito facilmente descartado, ver aquilo que permanece há 300 anos e ainda permanecerá, se tudo der certo, por quase todo sempre, é uma coisa que no mínimo espanta.

E nesse entremeio de reflexões entre passado e futuro, veio-me à mente outra questão: O que tinha haver as coisas que um homem havia dito a tanto tempo com toda aquela pompa expressa nas obras de arte cristã?

Nada contra a arte cristã, muito pelo contrário, admiro muito a arte da igreja e penso que é uma das melhores coisas que ela produziu.

Mas o que a mensagem de Jesus Cristo, que é a de ter um amor incondicional a todas as pessoas, um amor que ama até mesmo os seus inimigos, uma mensagem de uma vida de virtude e simplicidade, qual seria a relação entre a megalomania católica e a essência da mensagem de Cristo?

A resposta também me veio imediatamente à cabeça:

Uma coisa foi Cristo e sua mensagem, outra bem diferente, bem diversa, quase antagônica, é o cristianismo e o que a igreja fez com a mensagem de Jesus.

E se levarmos em consideração o que é o cristianismo capitalista, neopentecostal, pós-moderno, teórico da prosperidade e cooptado pelos valores da sociedade de consumo, o que resta de Cristo nesse cristianismo às avessas?

Nada, nihil, niente, nothing e toda palavra que significar nada em qualquer idioma.

O cristianismo brasileiro que possuímos hoje está há anos luz da mensagem original de Cristo. E qual é essa mensagem? Já disse, o amor ao próximo, o amor incondicional até mesmo pelas pessoas mais desprezíveis e pelos nossos maiores inimigos.

Cristo, como foi um grande mestre, sabia que se amássemos uns aos outros sem distinção não haveria nenhum tipo de problema. Nenhum tipo de problema é possível quando se ama verdadeiramente e sem nenhum tipo de distinção.

A diferença novamente está entre Cristo e os cristãos. Estes últimos não assimilaram a sabedoria de seu mestre. Ao contrário, se hoje Cristo é às vezes desacreditado é porque o testemunho de seus seguidores é totalmente contraditório e desprovido de verdade.

Bem, o dia foi muito bom. Língua portuguesa, arte sacra, crianças felizes, cultura, reflexão e emoções à flor da pele.

Rendeu até essa extensa crônica.

É verdade, querido leitor, e especialmente as minhas queridas leitoras, algumas delas realmente especiais. O gênero textual destas palavras que vocês acabaram de ler não é o de um artigo, mas o de uma crônica.

Então por que eu o coloquei na seção de artigos?

Eu explico, a vocês, meus queridos leitores e leitoras.

Na verdade não sou cristão, portanto posso fazer algumas malandragens sem ficar com medo de ser enviado ao lago de fogo e enxofre, onde as chamas nunca se apagam e os vermes nunca param de roer.

Na parte reservada para os textos do gênero crônica entram muitos textos, portanto a possibilidade de ser lido é bem menor. Já na parte de artigos a coisa “rola” com muito mais vagareza.

Aumentando em muito as chances de ser lido e de passar para a posteridade como uma personalidade do mundo das letras.

Nem devia contar isso a vocês, mas meu coração diz somente a verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade.

Boa segunda-feira para aqueles que vão trabalhar amanhã, porque eu não vou!

Estou em férias!

See you in New York!!!

Frederico Guilherme
Enviado por Frederico Guilherme em 13/06/2010
Reeditado em 13/06/2010
Código do texto: T2317923
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