O MITO, O VIRTUAL E O AGIR HUMANO
Resumo:
A presença e influência dos mitos nas ações do homem continuam a ser relevantes. A nova realidade da “vida virtual”, que a eletrônica e a informática nos proporcionam, permite estabelecer uma instrutiva comparação com o mundo da “vida mítica”. O homem está existencialmente inserido num “lugar mítico”. Este “lugar mítico” é o fator centralizador de nossas ações, e é a partir dele que deve ser avaliada a coerência das mesmas ações. Podemos afirmar que o homem é um ser condenado a agir a partir de seu envolvimento mítico, devendo complementar-se com outros fatores próprios do homem, como são a liberdade e a razão crítica, que condicionam e permitem avaliar a dimensão humanizante da “vida” mítica de cada indivíduo, de cada povo, de cada época... Alguns exemplos de mitos contemporâneos, como o mito do “paraíso” e o mito do nazismo, expresso em um “santuário”, ilustram a exposição.
Introdução
Embora inúmeros ensaios já tenham sido escritos sobre o fenômeno dos mitos, esta realidade cultural continua desafiando a compreensão. Nesta minha reflexão não pretendo relacionar mais uma vez as tentativas de interpretação dos pensadores, nem repetir as teorias até hoje levantadas sobre o mito. Tudo isto pode ser conferido nos verbetes de dicionários filosóficos. Buscarei analisar o fenômeno dos mitos comparativamente a uma nova realidade, com a qual a eletrônica e a informática nos confrontam hoje: as possibilidades de animação de um mundo com “vida” virtual. Esta fabulosa conquista da ciência eletrônica, criando um mundo animado de imagens virtuais, com consequências diretas sobre a ação física do homem, parece-me permitir algumas novas considerações sobre a questão dos mitos.
A “vida virtual”
A “vida virtual” a que me refiro, de fato, só existe na memória dos computadores. Mas com o recurso a aparelhos eletrônicos adequados o homem pode participar desta “vida”, deixando envolver-se de tal forma por ela que sua inteligência e emoções desencadeiam séries de ações correspondentes ao mundo físico. Por exemplo, um menino pode preferir um jogo de bola virtual a um jogo de bola no campo. No jogo virtual ele chuta, mete gol, emociona-se como se estivesse jogando em campo. Este menino como que entra na memória do computador e compartilha da “vida” virtual, tendo as sensações de fazer parte do cenário em terceira dimensão, que se movimenta na tela. Esta participação no cenário virtual consegue-se com o uso de máscaras, ou óculos adequados, que filtram as imagens-estímulos. Estas estimulam o cérebro que faz reagir novas dimensões físico-psíquicas da mesma forma como reagiriam a estímulos provindos do mundo real físico. Da mesma forma como o mundo virtual pode levar um menino a fazer a experiência de um jogo de bola, estas possibilidades da eletrônica podem-nos levar a experimentar as sensações de viagens fantásticas pelo cosmos, por novos mundos organizados ou caóticos, onde podemos ter a sensação de conviver com monstros ou entidades benéficas. Essas, enquanto estamos envolvidos pelo mundo virtual, podem querer-nos destruir ou proteger.
As potencialidades da “vida” virtual apenas começam a ser desvendadas. Ainda não conhecemos todas as suas possibilidades e consequências para a cultura humana. Em todo caso, deixaram de ser pura ficção. Tudo indica que este mundo da “vida” virtual é uma realidade aberta, sem limites definidos, do mesmo modo como a razão transforma o homem num ser aberto, sem limites para seus pensamentos e potencialidades de ação.
A relação entre os mitos e o virtual
Vejamos agora algumas analogias entre um homem que se deixa envolver pelo mundo da “vida” virtual, criado pela ciência, e um homem inserido num mundo de “vida” mítica, criado pelo imaginário.
A “vida” virtual envolve totalmente a quem se situa nas condições da sua existência. Enquanto este virtual se desenrola, ele condiciona a quem nele se articula. As imagens que provêm deste mundo são operantes no mundo físico. O menino da bola gesticula, chuta, grita, emociona-se. Quem observa o menino, mas não está envolvido pelas condições da “vida” virtual, no mínimo achará curiosas as atitudes do mesmo. O observador, fora do mundo virtual, não poderá negar as reações do menino, nem considerar falsas as imagens que provocam as suas ações.
Bem. No nível da “vida” mítica o homem não usa máscaras, nem óculos físicos, que filtrem as imagens ocasionadas pelo “lugar mítico”. Verdade é que, geralmente, os homens se revestem de trajes rituais quando se articulam em “lugares ou ambientes míticos” específicos. Mas, mesmo que não estejamos sempre em “lugares míticos” específicos, continuamos envolvidos existencialmente pelos mitos. O “lugar mítico” corresponde, no mundo da “vida” virtual, à memória do computador. As máscaras e os óculos que introduzem a mente do homem no virtual correspondem, no caso da “vida” mítica, ao psiquismo, à razão, à imaginação e à experiência cultural, que associadas entre si medeiam o envolvimento do homem pelo mundo mítico.
O ser humano, enquanto ser terrestre, não se poderá livrar totalmente de ser envolvido pelo “lugar mítico” (a natureza e a vida cultural). Se ele fosse razão pura talvez o conseguisse. Somente a partir de uma razão pura nós podemos usar os conceitos: lógico e ilógico; certo e errado; verdadeiro e falso; real e irreal; lógico e ontológico, real e ilusório; imaginário e concreto; concreto e abstrato; racional e irracional. Muitos já tentaram caracterizar os mitos como falsos, não-históricos, imaginários, fabulosos, mentirosos, irracionais... O recurso a esta conceituação, na interpretação do fenômeno do mito, não leva a nada. Estes conceitos são totalmente inadequados para se entender o que acontece na “vida mítica”. É preciso ter em consideração que o homem não é apenas racional, mas também um ser imaginativo, simbólico, emotivo, sonhador, criativo, esperançoso, construtor de mundos utópicos. Tudo isto vivenciado em seu “lugar mítico” produz ações do homem em seu mundo físico e cultural. Estas ações não são simplesmente objetivas, pragmáticas ou utilitaristas, no sentido tradicional; elas resultam do envolvimento da “vida mítica”, na qual o homem está situado.
Em analogia à expressão de Sartre sobre a liberdade, ouso afirmar que o homem é um ser condenado a agir a partir de seu envolvimento mítico. Segue-se daí que a “vida” mítica é um próprio do homem. Isto não significa que se deva encarar acriticamente qualquer mito. Pois, assim como na “vida” virtual há possibilidade para “n” propostas de ação, assim também o envolvimento mítico pode assumir “n” variantes, com múltiplas consequências na vida prática. A eletrônica poderia, sem dificuldades, introduzir a pessoa numa “vida” virtual não-ética, ou infra-ética, com consequente ação prática do mesmo gênero. Assim também o “lugar mítico” poderá suscitar envolvimentos de “vida” mítica que produzam ações destruidoras no real humano. Por isto a história nos revela que entre os mitos existem aqueles que produzem ações benéficas e humanizadoras entre os homens; mas existem também inúmeros mitos donde resultam ações diabólicas, perversas, destruidoras e desumanizadoras. As ações já não são mais o mito, mas o efeito do invólucro da “vida” mítica. É, portanto, pelas ações no mundo real físico que se torna possível identificar a “vida” mítica de um indivíduo ou de um povo. A ação real física permite uma avaliação da vida mítica. Não a partir dos conceitos lógicos do falso e do verdadeiro, do real ou do ilusório, mas a partir de sua capacidade indutora do civilizatório em dimensões humanizadoras ou desumanizantes. Não podemos afirmar se os mitos são verdadeiros ou falsos, racionais ou irracionais, certos ou errados. Apenas podemos analisá-los em relação à sua adequação, ou inadequação, ao ser humano. Mas o próprio conceito que expressamos sobre o ser humano novamente tem raízes na “vida” mítica. Dali a minha afirmação de que o homem é um ser condenado ao mito. O que não significa que esteja condenado a este ou àquele mito. Aqui justamente apresenta-se a razão crítica, que é outra característica própria do ser humano. Se não existisse a razão crítica, o homem provavelmente estaria condenado a fanatismos míticos excludentes. Os fanáticos são, justamente, pessoas que se envolvem de forma absoluta numa “vida” mítica exclusivista. Para evitar estes absolutismos míticos é necessário que o homem busque desvendar os recantos obscuros do “lugar mítico” que o envolve. E isto consegue-se pela ciência. Mas é preciso saber que a ciência não retira o homem do “lugar mítico”, apenas ajuda a ordená-lo, possibilitando que a sua ação no mundo físico seja menos caótica.
Consequências históricas das representações míticas
Em razão do que estou expondo, a nossa ação histórica pressupõe uma representação mítica. Em determinados momentos históricos estes mitos fazem com que se executem ações que, predominantemente, visam alcançar o Ser para além do “lugar mítico” que nos envolve. Neste caso os mitos e a ação humana caracterizam-se pela sua orientação para aspectos transcendentes (religiosos ou místicos). Nestes casos, a ação concreta dos homens fica imbuída de características oriundas dos mitos religiosos, das mitologias e dos mitos utópicos ou escatológicos. Em outros momentos o homem envolve-se por mitos que se esgotam dentro do horizonte do “lugar mítico” em que vive. Consequentemente apenas aspira a uma perfeição intra-histórica, e sua ação restringe-se ao mundo material e cultural dessacralizado, produzindo uma vida materialista com valorização de elementos culturais fechados. Nos mitos intra-históricos o Ser identifica-se com o “lugar mítico”. Tendo em vista que tais mitos têm um horizonte menos amplo, facilmente levam a práticas radicais e fanáticas. O que, aliás, acontece da mesma forma nos mitos “transcendentes” quando um “grupo mítico” particulariza o horizonte do “ser”, constituindo-se então em seita.
Diversos mitos contemporâneos são classificados como ideologias. Mesmo que se queira fazer uma distinção entre mito e ideologia, em última análise toda ideologia se enraíza em um mundo de “vida” mítica. Como exemplo de mito materialista podemos citar o capitalismo, que visa a perfeição pela apropriação de bens materiais. É uma variante do mito do paraíso terrestre. Os mitos culturalistas são, geralmente, a origem de guerras étnico-culturais, cujo exemplo mais dramático tivemos na II Guerra Mundial com o nazi-fascismo. Isto para não citar os conflitos tribais na Somália, os conflitos raciais na África do Sul, e em muitos outros recantos da terra.
Quanto ao mito do “paraíso” ele pretende identificar a construção deste “paraíso” com a própria felicidade, que, na visão aristotélica, é o objetivo maior de todo o homem. Por isso este mito está cheio de paradoxos, em que os elementos do mundo transcendente se misturam com o mundo real físico. Muitas vezes não nos é claro se o homem quer, de fato, este paraíso na terra ou para além dela. Indicarei, em seguida, algumas das características deste mito da “busca do paraíso”.
Como exemplo marcante dos mitos étnico-culturais descreverei alguns aspectos do mito do nazismo. Mitos étnico-culturais também motivaram as guerras entre sérvios e croatas, entre as tribos da Somália, os conflitos raciais da África do Sul, e em outros recantos da terra. Mas basta um exemplo para repararmos nas consequências práticas de tais mitos.
1º.exemplo: O Mito do “paraíso terrestre”
Os registros gráficos mais antigos já mencionam o desejo da humanidade de viver num paraíso. Mas os mitos jogam com representações de “paraísos perdidos” e de “paraísos a serem construídos”. Por isto, alguns pensadores se perguntam se o “mito do paraíso” se fundamenta numa saudade ou numa esperança.
O homem de hoje, sem dúvida, alimenta-se no mito do “paraíso a construir”. E, apesar das monstruosidades que nos são noticiadas diariamente, a humanidade não perde a esperança em dias melhores. Nem as dificuldades reais, nem as múltiplas opressões afastam os homens de agir em função de uma maior humanização do ser humano. Para trilhar este caminho, o homem de hoje é dono de conhecimentos científicos e capacidades tecnológicas fantásticas. Mas estas capacidades não projetam apenas luzes no “caminhar para o paraíso”. Uma complexidade de problemas econômicos, sociais, psicológicos, morais e religiosos entrepõe-se em seu caminho. Mesmo assim, o mito do paraíso continua tão forte, especialmente no homem da cultura ocidental, que ele inibe a consciência destes problemas e incentiva o homem a se jogar na vida. Mas este “jogar-se na vida”, muitas vezes, empurra o homem por caminhos práticos que o afastam de um possível “paraíso” adequado. Por isto as suas ações, e consequentes satisfações, não correspondem ao sentido originário do mito e resultam em frustrações.
Muitos homens de hoje estão convencidos de que os frutos da ciência e da tecnologia poderão abrir-lhes as portas do “paraíso”. Bastaria deixar-se levar pelas correntes desta ciência e tecnologia, e promover o progresso. Progresso que significaria a aquisição de maior quantidade de bens materiais e maior precisão em seus aparelhos. A posse e o uso destes bens promete ao homem preencher os caminhos do paraíso. Mas a realidade mostra-nos que as ações em função de um tal paraíso geram, muitas vezes, um vazio de sentido na vida. Por isto muitos recorrem hoje ao caminho das drogas. Um caminho que, novamente, frustra o mito originário.
Em seu sentido originário o mito do paraíso dá ânimo aos homens para melhorarem as suas condições de vida. Muitas guerras e revoluções já foram feitas neste sentido. Mas muitas destas ações, em vez de trazerem o paraíso mítico para a realidade física, produziram desolação, morte e miséria. Quando os homens buscam realizar o paraíso nos limites de nosso pequeno planeta, esta busca estará sempre mesclada de grandes frustrações. E isto parece ser também hoje o caso, pela maneira como este mito está sendo entendido. Por momentos, e em certas circunstâncias, parece que a realização do paraíso na realidade intra-histórica e intra-terrena trará mais justiça, verdade e respeito para o meio dos homens. Em outros momentos, no entanto, mesmo animados pelos dinamismos deste mito, sentimo-nos muito distantes da perfeição que buscamos. Mesmo assim o homem não pode deixar de relacionar o mito do paraíso com a vida real física, pois com a ação concreta o mito deixa de ser mito.
2º. Exemplo: O mito nazista expresso em um “santuário”
Ainda em nosso tempo são frequentes na mídia as referências ao nazismo. Deve-se isto a diversos fatores: persistência de grupos neonazistas, localização de nazistas da II Guerra Mundial, ainda vivos, incapacidade de explicações racionais para as crueldades nazistas. De fato, o nazismo não é pura ideologia racionalmente arquitetada. Ele é tipicamente um mito étnico-cultural. E a sua ação mística, baseada neste mito, torna-se, por isso, muito mais difícil de ser erradicada de seu “lugar mítico”. É interessante reparar que os próprios nazistas tentaram sistematizar os elementos de seu mito, e concluíram que seria necessário um lugar físico para alimentar as imagens de sua “vida” mítica, que se transporiam depois para a vida da ação física. Para isto o comandante-em-chefe dos SS, Heinrich Himmler, argumentava em seus discursos que cada Estado necessitava de uma elite. Na Alemanha social-nacionalista os membros da SS seriam tal elite. Estes deveriam ser educados segundo boas tradições prussianas, e selecionados entre os melhores da raça ariana. Após uma propaganda intensa deste mito, os nazistas adquiriram a fama de “gente educada”, com costumes superiores aos da rude massa de plebeus.
As colocações de Himmler foram sedutoras para muitos alemães da época. Ainda mais porque buscava seu vocabulário na linguagem do romantismo conservador, muito do agrado da antiga nobreza. E muitos senhores de “sangue azul” se inscreveram na SS. Himmler reparou imediatamente que a admissão de tantos novos sócios no seu partido prejudicava o espírito elitário. Fundou então uma espécie de ordem religiosa, ou sociedade secreta. A “ordem negra” de Himmler estruturava-se em base hierárquica, com classes correspondentes a “sacerdotes” e “sumo-sacerdotes”, claramente distintos dos irmãos leigos. Méritos pessoais possibilitavam a passagem para graus superiores na hierarquia. Os membros dos diferentes graus distinguiam-se entre si por insígnias características. Todos os membros beneméritos da SS recebiam de Himmler um anel de prata com as insígnias da caveira-SS. A um pequeno grupo de escolhidos Himmler, posteriormente, distribuía um outro tótem.
Mas Himmler não ficou por aí com seu mito. Em algum de seus livros lendários lera que o rei bretão (celta?) Arthur (ca. 500 d.C.) reunira ao redor de uma mesa os seus doze mais valentes e nobres cavalheiros para que o servissem em todas as suas necessidades. Esta lenda deve ter impressionado muito a Himmler, pois nunca admitia mais do que doze hóspedes à sua mesa. A exemplo do Rei Arthur, Himmler nomeou então os doze “melhores”, dentre os dirigentes de seus grupos, para que ocupassem os postos mais elevados da hierarquia da “ordem-SS”. Os “doze apóstolos” de Himmler eram altos, loiros, de olhos azuis. Raça ariana pura! Para estes Himmler confeccionou distintivos especiais, inclusive um escudo artisticamente trabalhado.
Era também do conhecimento de Himmler que muitos grupos religiosos possuem centros de encontro ou de peregrinação, os santuários. Concluiu que tais centros eram elementos essenciais de todo e qualquer movimento religioso que se quisesse perpetuar. Por isso, a sua “ordem-negra” deveria possuir também um centro. Escolheu então para “santuário” o castelo triangular de Wewelsburg na Vestfália alemã. Para escolher este castelo, certamente influiu a sua forma triangular, pois o triângulo tem grande valor simbólico e mítico, tanto em religiões orientais como ocidentais. E ainda mais nas religiões mistéricas. Castelos triangulares existiam apenas dois ou três em toda a Europa.
Além das adaptações necessárias, Himmler tencionava ampliar em muito as construções do castelo escolhido, inclusive com alas para a procriação do “super-homem-ariano”. Os doze cavalheiros (apóstolos), já nomeados, seriam os pais destes “super”. De toda a Alemanha viriam moças escolhidas para darem “um filho a Hitler”. Com o desenvolvimento rápido da guerra, Himmler não conseguiu terminar o seu projeto. Mas já concluíra o núcleo do “santuário”, a Walhalla, denominação tirada da religião dos antigos germanos. Ali, duas vezes ao mês, Himmler se encontrava com os seus cavalheiros, das 12:00 horas da noite até às 2:00 horas da madrugada. O que faziam, ninguém o sabe exatamente. Há indícios de que meditavam e praticavam uma espécie de magia negra. O centro da Walhalla era para eles o “centro do mundo”. Ao redor deste centro seriam, futuramente, realizados os casamentos germânicos, e dali subiriam as almas dos germanos para o definitivo Walhalla etéreo.
Bem. Estes dados sumários sobre as “devoções” dos nazistas parecem-me suficientes para acenar para o mundo mítico que alimentava as suas ações. E em função das ações perversas praticadas por eles, parece-nos mais uma vez oportuno acentuar a necessidade da razão crítica em função dos conteúdos da “vida” mítica. Inclusive quando religiosamente articulada.
Conclusões sugestivas
Todo homem está inserido num “lugar mítico”, a partir do qual forma as representações de sua “vida” mítica. Para entender esta situação humana aduzi, no início destas minhas reflexões, o que ocorre com a “vida” virtual da eletrônica e da informática do nosso tempo.
O nosso mundo mítico é o fator centralizador de nossas ações. E as nossas ações apenas demonstram uma coerência na medida em que são fruto dos nossos mitos.
Quem não participa de nossa “vida” mítica, e analisa racionalmente as nossas ações físicas, até pode achar hilariante ou incompreensível o que fazemos. Mas para nós, na medida em que as ações se relacionam com os nossos mitos, tudo isto tem sentido e é digno de ser praticado e defendido. Daí os rituais religiosos e políticos, e tudo o que realizamos prática e ideologicamente.
A avaliação dos mitos não pode ser feita simplesmente a partir de seus conteúdos conceituais, pois há uma infinidade de representações míticas entre os homens. Apenas é válida uma avaliação da “vida” mítica a partir dos resultados práticos na convivência humana. Por mais estranho que seja o mundo mítico de alguém para nós, se a sua ação é adequada à dignificação do ser humano e do seu mundo da vida, este “mito” deve ser respeitado. Se assim não procedêssemos teríamos que retornar às épocas da inquisição em que se eliminavam pessoas não por causa de suas ações, e sim por causa de seus mundos míticos. Hoje a convivência humana exige o respeito ao pluralismo mítico na medida em que os mitos conseguem motivar ações adequadas à humanização do homem e de todos os homens. Neste sentido a razão crítica deve estar atenta aos mitos, denunciando aqueles mitos particularistas e excludentes que motivam ações perversas ou alienantes entre os homens. E nesta aplicação da razão crítica, ao que parece, se situa uma das funções principais da filosofia e da sã reflexão teológica em nosso tempo.
Inácio Strieder é Professor de Filosofia-Recife/PE