Mula sem cabeça

Mula sem cabeça

(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza

Dona Glória bate desesperadamente à porta do quarto de seu filho Fumarato. Não é a primeira vez que o faz. Está preocupada, impaciente, temerosa. Grita para se fazer ouvida:

- O que faz aí trancado, meu filho?

Fumarato em meio a desordem que reina lá dentro, responde, aos berros:

- Estou brincando, mãe.

- Brincando com quem, ou com quê?

- Sozinho.

- Que barulho estranho é esse?

- Não estou ouvindo nada.

À medida que mantém o diálogo, dona Glória insiste com as pancadas. A palma de sua mão inchou e uma vermelhidão muito forte tomou o lugar da cor natural.

- Destranque e venha lanchar. Cetotifeno, seu coleguinha, se abancou à mesa e lhe espera.

- Já vou, mãe, já vou.

A zoada persiste veloz como um tufão que se realça. Parece um ritual macabro. A impressão de dona Glória é a de que alguma coisa sofre horrores nas mãos do menino. O que ela ouve se assemelhava a grunhidos, urros e relinchos de dor e agonia entrecortados, como se um animal indefeso tivesse sendo barbaramente espancado. Mas impossível. O quarto de Fumarato fica no oitavo andar de um prédio de apartamentos. A janela do garoto media com a de outro edifício, de forma que não assiste razão para qualquer pessoa normal aceitar a idéia de que lá dentro tenha sido introduzido um animal, qualquer que seja o tamanho dele. Ademais, não existe como. Além da portaria não permitir, ela ou a empregada teriam se dado conta e brecado. Que alguma coisa diferente se metera lá dentro, não havia mais duvidas. Os estrondos produzidos não deixavam margens a dúvidas. Dona Gloria não ficara louca, Dorinha e Cetotifeno igualmente ouviam os urros e os chiados, sem, no entanto, identificarem sua possível origem. O que mais intrigava: Fumarato não possuía computador, nem aparelho de tevê. Aquele barulho inexplicável não advinha de nenhum jogo caseiro conhecido, menos ainda de um aparelho eletroeletrônico ligado.

- Abra Fumarato.

- Calma mãe!

- Cetotifeno está aqui. O café foi servido. Dorinha trouxe pão quente e a manteiga que você gosta. Venha, filho. Está me ouvindo?

Ouvindo Fumarato certamente estava. E bem. No entanto, alguma coisa fora dos padrões normais rolava à solta. A voz do guri, ora sobressaia aos relinchos, ora sumia de vez. Às vezes a balburdia aumentava de intensidade, outras cessava misteriosamente. Dona Glória não desistia e parecia cosida a parede.

- Filho, pare com essa bagunça.

- Que saco mãe! Vê se me erra.

- Cetotifeno vai subir pra casa dele. Não faça desfeita ao seu colega.

- Não faça o que, mãe?

- Desfeita, filho, desfeita.

Dona Glória se afasta, tolhida por forte indisposição que a invade. Pede socorro a empregada, sem esmiuçar os comentos malévolos que assaltam seu espírito. Dorinha acode e volta à carga pancadeando a porta com mais intensidade.

- Pó, qual é, mãe. Já vou...

- Não é sua mãe, sou eu, Dorinha.

- Me esquece, cara. Vá lavar as loucas.

- Que diabos acontece ai?

- O que você acha?

- Se eu soubesse alguma coisa não te perguntaria. Vamos, fale comigo. O que se passa?

- Dorinha, você não vai acreditar.

- No que não vou acreditar? Tente?

- Pintou aqui no meu quarto uma mula...

- Uma o quê?

- Uma mula.

- Faça me rir, garoto. Saia para o café. Deixe de pilherias. Você está bem grandinho para essas criancices. Vamos, abra...

- Assim que eu der cabo da mula...

- Só falta você me convencer de que essa mula é sem cabeça...

- Pêra ai, Dorinha. Como sabe?

- Adivinhei. Agora saia. Tenho mais que fazer. Preciso limpar seu quarto.

Dona Glória se prostra a porta. Junto dela, Cetotifeno.

- Filho, se não sair daí, interfonarei para a portaria.

Faz um gesto a Cetotifeno para que a ajude e intervenha. Cochicha com o moleque algumas palavras. O guri aquiesce e repete a história de providenciar reforços.

- Fumarato, sua mãe vai mandar subir a galera. Se eu fosse você caia fora daí agora. Abre ai, ô mané! Vou rachar no trecho. Qualé a sua, mano!

- Assim que acabar com a mula sem cabeça eu saio.

- Pirou, meu?

- Não.

As tentativas restam, por fim, infrutíferas. A contenda segue indiferente as batidas e as súplicas dos mais chegados. O subsíndico chega acompanhado com dois funcionários da administração. Os petitórios para que Fumarato deixe o quarto são redobrados. Nada. Dona Glória decide, então, pelo arrombamento. A ninguém mais interessa aquele estado de intranqüilidade. O pessoal põe a porta ao chão. A cena que surge, entrementes, é violenta e brutal. Assas incrédula e chocante. Fumarato está montado, a cavaleiro, sobre o lombo de um bicho enorme, que jaz estirado. Em volta, sangue por todos os lados respingados pelas paredes e móveis. Uma mancha se estende pelo chão e se transforma num desenho de dimensões grotescas escorrendo para o lado onde fica a cama. A cortina é aberta e a janela escancarada. Um “Meu Deus, que horror!” uníssono se faz ouvir em meio a uma onda de terror e ceticismo. A galera petrifica as feições. Dona Glória desmaia. Dorinha lhe segue os passos e vomita as tripas. Cetotifeno sai correndo em desabalada carreira. O pessoal do socorro acode com álcool e massagens. Fumarato realmente havia acabado de matar uma mula. Uma mula enorme. E sem cabeça.

(*) Aparecido Raimundo de Souza, 57 anos é jornalista.

Aparecidoescritor
Enviado por Aparecidoescritor em 24/04/2010
Código do texto: T2217253