Washington Rocha: de Marx a Jesus

Quando conheci o professor-mestre em Filosofia Washington Rocha eu era ainda um pré-adolescente curioso, atento aos amigos de meu pai que, eventualmente, chegavam de todas as partes da cidade e do planeta trazendo consigo experiências, preconceitos e conceitos variados sobre si mesmos e sobre as realidades onde viviam.

Como eles, Washington, ainda não munido da experiência de vida (e de morte) que tem hoje, costumava ir a nossa casa para conversar com meu pai. Suas conversas, girando também em torno de assuntos ligados ao desenvolvimento da sensibilidade Humana (tanto quanto a investigações das “razões” de nossa insistente desumanidade), apresentavam-me Washington então preferencialmente devoto da filosofia materialista de Karl Marx e, em conseqüência, naturalmente inclinado à desconsideração de argumentos que tentam explicar a origem do mundo, e dos seres, fundamentados na perspectiva espiritualista.

Como a maioria, primariamente educado sob princípios deístas cristãos, na época espantava-me como alguém podia imaginar um mundo sem um “Deus” que, segundo o primeiro livro da Bíblia, nos parece ter emprestado partes de Si mesmo à feitura do Universo, a lhe reger perpetua e essencialmente os movimentos, ao mesmo tempo estabelecendo-Se como O Sentido, meta primeira e última da existência de tudo e daqueles que, não sem esforço, se tornariam Homens, ou seja, Seus pré-divinos representantes.

Até onde pude observar nas conversas entre Washington e meu pai – que, inclinado a considerações metafísicas, mantinha certa reserva na aceitação dos conceitos defendidos pelo materialismo histórico marxista para a explicação do(s) sentido(s) oculto(s) da Vida – como todo bom materialista comunista daquela época, e de todos os tempos, em sua jovialidade entusiasta, Washington jamais me pareceu capaz de mudar tão radical e corajosamente sua perspectiva, conseqüentemente pondo em dúvida suas “certezas” materialistas de outrora. Porque, munido das convicções de Marx, ele defendia peremptoriamente sua repulsa à experimentação influente dos efeitos do “ópio do povo” em seu juízo, considerando a presença do cosmos, como o “bom ateu” que parecia ser, nada mais que “obra do acaso”, sendo o fundamento das insatisfatórias relações “humanas”, submetidas à participação numa existência essencialmente “sem Sentido”, basicamente obra de uma cultura que providencia a má distribuição de toda riqueza material acumulada por aqueles que, também materialistas, foram e, ao que parece, continuam incapazes de enxergar outro sentido para suas vidas que não seja o desenvolvimento de métodos para a exploração impiedosa da força de trabalho de seus “semelhantes” – inconscientes de que, no fundo, como lhes advertem as palavras de Jesus, apenas desenvolvem formas de obtenção de grandes quantidades de comida para traças e vermes, além de promoverem violentos movimentos de revolta.

Mas, quando inclinados a materialismos capitalistas ou comunistas – tendo aqueles simpáticos ao Comunismo, é bom dizer, demonstrado maior interesse pelas tentativas de superação das aflições Humanas (a despeito da histórica ineficácia e violência de seus métodos) – a maioria dos jovens são como foi Washington: munidos de toda a energia de que biologicamente lhes dotou a Vida, pensam-se auto-suficientes em força, determinação e beleza, ao mesmo tempo em que lutam compulsoriamente por um sonho irrealizável: a “plena independência”; porque, então, com toda a prepotência peculiar aos jovens, não se apercebem como absolutamente dependentes de muitas coisas que, como a eles, sustentam temporariamente as mais de oitocentos milhões de formas de vidas que compartilham e revezam a Existência neste planetinha perdido na imensidão do Universo: todos os alimentos que vêm da terra, da água, do fogo e do ar, sendo este último elemento fundamental à promoção de vidas. Enquanto considerado “divino sopro”, metafórica expressão da existência invisível daquilo que, essencialmente sensível, nos determina como vivos, vivo-mortos e mortos.

Em todos os tempos e culturas está claro que é somente quando temos pelo menos uma experiência com a Morte, movimento final sístole (ou diástole?) das manifestações pulsantes da Vida, que então vemos quão efêmeros são os nossos e os corpos de tudo, tanto quanto nossos circunstanciais sonhos de ser. E então é quando tendemos a nos apegar à eterna Força Vital sem nome a qual, como assombrados selvagens contemporâneos, atribuímos status de “Espírito-Deus-todo-poderoso” que, em sucessivas gerações, também onipresente enquanto nós, tudo experimenta, sente, vê, ouve, sabe.

“Naqueles dias, em que esperava bastante corajosamente a morte”, escreveu o judeu Primo Levi em seu livro A Tabela Periódica, sobre momentos de sua estada num campo de concentração nazista nos idos de 1944, “abrigava uma vontade lancinante de tudo, de todas as experiências humanas imagináveis, mal dizia minha vida precedente, que me parecia ter desfrutado pouco e mal, e sentia o tempo fruir entre os dedos, escapar do corpo minuto a minuto, como uma hemorragia não mais estancável”.

É assim que sentem alguns quando em contato íntimo com a morte, ou com sua iminência, enquanto outros se apegam à esperança de que, depois do derradeiro suspiro e do definitivo verme a arrotar a comilança de seus últimos restos mortais, pelo milagroso e infinito poder de um Criador não apenas acreditam que terão de volta as personas que, no espaço-tempo de uma única vida, lhes deram sentido, mas também que poderão re-encontrar, quer em sucessivas reencarnações, quer numa única prometida ressurreição, seus entes queridos numa paradisíaca existência pós-morte – uma vez que, a considerar a potência Daquele que crêem manifestação do infinito Amor e Seus incondicionais perdões, no fim a maioria de nós deverá estar isenta de participações num inferno póstumo eterno, sendo-nos preferível o extermínio absoluto.

Para a mudança de perspectiva do Washington marxista ao deísta cristão fervoroso, certamente contribuíram, infelizmente, inesperadas investidas da Morte. Quando acontece naturalmente, não enquanto instrumento de assassinos, ela se apresenta absolutamente isenta de julgamentos morais ou paixões a influenciar-lhe o trabalho de levar consigo muitos de nossos queridos e queridas, além de uma quantidade assustadoramente significativa de vidas por nós desconhecidas que, em vários momentos da História, quer enquanto estrelas, reis, princesas, páreas ou baratas, sentiram o prazer e as dores de estar vivos na Terra desde a sua fundação ou, como também crêem possível muitos, em outras das muitas moradas do Profundíssimo-Altíssimo em seu maravilhoso organismo celestial.

Como o ex-comunista sensível e inteligente que é, para expressar suas angústias, dúvidas e, principalmente, suas esperanças, Washington Rocha escreveu o livro "Razões do Coração Cristão – Carta a Eliete em memória de Eliane Monte da Rocha", um ensaio místico-filosófico sobre o sentido da Vida de tudo (e, mais particularmente, da sua e daqueles a quem ele ama), onde explica sua mudança de paradigma e sua submissão à necessidade de sua fé, mesmo cega, no controverso universo de valores cristãos – e suas promessas de vida eterna individual – na forma de uma carta que escreveu à cunhada.

Para o jornalista e filósofo Iremar Bronzeado, que assina a primeira apresentação da Carta, “Washington se desnuda e expõe, sem nenhuma reserva, as feridas e as glórias de sua alma, aproveitando esse exercício catártico para defrontar com coragem indômita o desafio de encontrar, como fez Agostinho em seu famoso e apreciado livro Confissões, uma Verdade que preencha não somente sua razão e sua mente, mas que pacifique e justifique seu coração. Uma Verdade que lhe dê conta dos mistérios da morte, da existência, da finalidade da vida e da história humana, do bem, do mal, dos deuses, de “Deus”. Uma Verdade que transcenda todas as Verdades particulares para ser Verdadeiramente A Verdade, único refúgio para o repouso e a tranqüilidade completa da alma, sem o que não se atinge a plena felicidade”.

Em palestra recentemente proferida, Washington, no entanto, se declara incapaz de aceitar A Verdade se, ao contrário do que prometeu Jesus, ela for de encontro às suas expectativas e esperanças cristãs de viver para sempre em companhia dos seus. Para ele, por exemplo, no momento menos filósofo do que cristão esperançoso, não interessa se, como prevêem os budistas, a finalidade de nossas vidas seja a percepção de que apenas saímos da Roda da Vida (ciclo de encarnações necessárias à conquista do Nirvana) na consciência de que, como nos sugere uma das metáforas de Buda, somos como gotas de chuva que despencam das nuvens rumo ao mar para a plena integração de suas efêmeras individualidades no Grande Oceano.

Para o filósofo-cristão Washington Rocha, portanto, abaixo a Razão e sua prepotente tentativa de explicar “Deus”, sua “inequívoca onisciência” e Suas inquietantes vontades, já que também sequer pode ela fazê-lo conseguir argumentos razoáveis para explicações sobre o Sentido de sua própria vida, de seus queridos e queridas ou de seu declarado egoísmo, notadamente anticristão. “Sinto em ti, minha cara Eliete – escreveu ele em sua Carta – uma alma feita para essas Verdades superiores. A generosidade é marca dessas almas. Não é o meu caso; sou visceralmente egoísta”.

Para suportar sua vida na corda bamba entre o Ser e o nada, como uma multidão de outros ele recorre à fé na promessa jesuíta da ressurreição de sua carne e de seu pequenino ser pós-histórico. Quanto a mim, já que a Vida também nos dotou de considerável potencial reflexivo, prefiro me esforçar para compreender o que é e onde está aquilo a que chamamos “Deus”; quando e onde eficazmente atua e porque, do alto de Sua potente onisciência, parece não se importar com as misérias promovidas pela ignorância de Seus filhos e filhas.

Em minhas vivências e leituras, creio ter descoberto quando e onde “Deus” existe e quando e onde não existe; em conseqüência, quando e onde eu existo e quando e onde não existo – além do fato de que as semelhanças com Ele se evidenciam quando exercitamos nosso poder de “criadores”, sendo a sensibilidade, a memória e a imaginação as forças básicas responsáveis pelo desenvolvimento da Cultura, expressão de nossas intervenções no esforço para transformar nossos estados naturais na passagem pela Vida que, sem dúvida, estende-Se ad eterna entre os tempos de umas e outras de Suas (quase) infinitas manifestações.