Uma Página da História da África do Sul: As Guerras Bôeres
José Lisboa Mendes Moreira
Antecedentes Históricos
Em 1487, D. João II, Rei de Portugal, incumbiu o navegador Bartolomeu Dias de costear o lado ocidental da África, que já era conhecido até o começo da Namíbia, e ir além para descobrir uma passagem para o oriente.
Bartolomeu Dias passou pela Namíbia e continuou navegando para o sul. Quando chegou ao extremo da África, uma tremenda tempestade levou os navios mais para o sul e ninguém percebeu que já tinham ultrapassado a ponta do continente africano. Como não viam nenhuma terra, passaram a navegar para o norte. A costa que passaram a avistar já era a oriental. Ao chegaram à altura do atual Port Elizabeth, os tripulantes, ainda assustados com a tempestade, não quiseram prosseguir. No caminho de volta, o tempo estava bom e o céu claro. Só então viram o majestoso Cabo.
Bartolomeu Dias voltou a Portugal e fez ao Rei o relato da descoberta do Cabo das Tormentas. O Rei atalhou-o e disse que o nome certo seria Cabo da Boa Esperança, com vistas à descoberta do caminho marítimo para as Índias.
Dez anos depois, já em tempos do Rei D. Manuel, partiu de Lisboa, no dia 08 de março de 1497, uma esquadra com a missão de chegar às Índias. A expedição passou além de Port Elizabeth. Mais adiante, foi avistada uma longa costa. Era o dia 25 de dezembro de 1497. Vasco da Gama, que era o comandante da esquadra, deu ao lugar o nome de Natal.
Quando as viagens às Índias se tornaram mais frequentes, os portugueses instalaram, na região do Cabo, postos de abastecimento.
O mesmo fizeram os holandeses, dois séculos depois, em nome da Companhia Holandesa das Índias Orientais.
Em 1647, uma embarcação holandesa encalhou na Baía da Mesa. Os tripulantes só foram resgatados um ano depois. Gostaram daquela terra e sugeriram à direção da Companhia que estabelecesse ali uma base permanente.
Em 1652, lá chegou uma expedição holandesa comandada por Jan Van Riebeck.
Riebeck tinha 32 anos, era muito inteligente e ativo. Mandou construir um pequeno estaleiro para reparos nos navios, um hospital e um Castelo Fortificado (o governador Zacharias Wagenaar demoliu a construção primitiva e substituiu-a por outra maior, mais fortificada e em alvenaria). Nas cercanias do Castelo, Riebeck mandou plantar árvores frutíferas, videiras e hortaliças.
Foi nesse lugar, um pouco ao norte do Cabo da Boa Esperança, que se ergueu a Cidade do Cabo.
Os Negros
Antes da chegada dos brancos, o sul da África estava habitado por numerosas tribos de negros, pertencentes a duas etnias: khoisans e bantos.
Os vizinhos mais próximos dos holandeses eram os khoisans, com os quais viviam em paz.
Os holandeses eram fazendeiros, bôeres, em holandês. Alguns desses fazendeiros viajavam em busca de novas terras e pastagens. Eram chamados treckbôeres (fazendeiros viajantes). Com o passar do tempo começaram a se atritar com os khoisans. Estes foram quase exterminados ou empurrados para regiões inóspitas como o deserto de Kalahari.
Da etnia banto, as tribos xhosas e zulus foram as de maior presença na história.
Tanto xhosas como zulus tiveram muitos embates com os bôeres.
A língua xhosa, com seus inúmeros dialetos, é a mais falada. A título de curiosidade: a cantora Miriam Makeba é xhosa e o mais famoso falante da língua xhosa é Nelson Mandela.
Os zulus, que têm sua própria língua, enfrentaram não só os bôeres como também os ingleses. Ao final, os bôeres e os ingleses foram vitoriosos, mas perderam várias batalhas.
Na batalha de Isandehlwana (22 de janeiro de 1879) os zulus dizimaram uma expedição britânica. Nessa batalha morreram mais oficiais ingleses do que em Waterloo.
A Grande Jornada
No século XVIII, o poderio holandês já estava em declínio e o poder britânico era cada vez maior.
No começo do século XIX, precisamente em 1806, a Colônia do Cabo foi ocupada por tropas britânicas. Em 1814, o tratado de Londres ratificou a ocupação.
Entre a chegada dos holandeses e a ocupação britânica, se haviam passado 154 anos. Os descendentes dos holandeses tinham desenvolvido uma nova cultura. Falavam “africâner” (derivado do holandês) e estavam mais ligados à África do que à Europa. Fundaram uma nova Igreja: a Igreja Holandesa Reformada da África do Sul.
Além de serem conhecidos como bôeres, passaram a ser conhecidos como “africânderes”.
A convivência com os ingleses tornou-se cada vez mais insustentável para os bôeres (cada vez mais conhecidos como “africânderes”). Eles queriam viver sob suas próprias leis e não sob a legislação inglesa.
Um dos pontos de conflito era a questão racial. Tanto os ingleses como os bôeres eram racistas, mas as práticas diferiam. Os ingleses eram menos intolerantes e os “africânderes” mais radicais. Eram a favor da violência para impor e manter medidas discriminatórias e segregacionistas.
Os treckbôeres eram conhecidos há muito tempo no Cabo. Porém, na Grande Jornada (Great Trek) não se tratava de alguns grupos; foi um verdadeiro êxodo. Uma grande parte da população se deslocou em massa.
Piet Retief, um dos líderes dos treckbôeres, escreveu um manifesto explicando porque deixavam o Cabo. Queriam fundar uma comunidade livre e independente. Tendo-se em mente a ideologia “africânder”, é patente que Retief se referia à liberdade e independência para os brancos.
A grande jornada ocorreu entre 1834 e 1838 e ocasionou a colonização de grandes partes do leste da África do Sul. Os bôeres que transpuseram o Rio Vaal fundaram a República do Transvaal; os que se localizaram às margens do Rio Orange, criaram o Estado Livre de Orange; os que se dirigiram para a região costeira , deram origem à República de Natal.
Em 1834, centenas de carroções, semelhantes aos dos pioneiros americanos, deixaram a Colônia do Cabo e se dirigiram para o leste.
Os pioneiros americanos foram para o oeste ocupar as terras dos índios. Os treckbôeres foram para o leste ocupar as terras das tribos negras.
Pioneiros e treckbôeres tinham um pensamento em comum: os brancos eram a raça superior que, no plano de Deus, estava destinada a dominar o mundo.
Em 1838, depois de muitas lutas com os zulus, na região de Natal, os bôeres fizeram um acordo com eles: dividiram a região ao meio. Na metade norte ficou a Zululândia e na metade sul os bôeres instalaram a República de Natal.
Em 1843, os ingleses, que consideravam aquela região costeira muito estratégica para ficar em mãos inimigas, anexaram a República de Natal.
A Grã-Bretanha reconheceu a independência dos estados interiores de Orange (convenção de Bloenfontein, em 1854) e Transvaal (convenção do Rio de Areia, em 1852), por serem de menor valor estratégico e não apresentarem, na época, nenhum atrativo econômico.
Diamantes e Ouro
Em 1867, descobriram diamantes no Rio Vaal, a alguns quilômetros acima da sua confluência com o Rio Orange. Eram diamantes de aluvião, que vinham misturados com cascalho. Porém, pouco depois foi descoberta uma mina de diamantes, junto à cidade que foi batizada com o nome de Kimberley e ficava na Colônia do Cabo, bem próxima da fronteira de Orange.
Enquanto para extrair os diamantes de aluvião bastavam equipamentos primitivos, a extração das minas exigia técnicas sofisticadas. Milhares de prospectores, engenheiros e aventureiros sem preparo rumaram para os campos diamantíferos. Veio gente não só das localidades próximas, mas também da Europa, dos Estados Unidos e da Austrália.
Em pouco tempo, Kimberley se havia tornado a segunda cidade mais importante da África do Sul, perdendo o lugar de honra apenas para a Cidade do Cabo.
Entre as pessoas que foram atraídas a Kimberley, estava um jovem plantador de algodão, com 19 anos de idade. Ele converteu 3000 libras, que um tio lhe havia dado para o cultivo de algodão, em licença para explorar uma mina de diamantes. Esse jovem, que se chamava Cecil Rhodes, ficou com todas as licenças que lhe ofereceram e se tornou riquíssimo ao descobrir cada vez mais minas de diamantes. Em abril de 1880, fundou, com dois sócios, a De Beers Mining Company. Em 1885, já controlava mais de 50% da economia de Kimberley.
Cecil Rhodes chegou a ser Primeiro-Ministro da Colônia do Cabo e levou o imperialismo britânico mais para o norte, criando as condições para o estabelecimento de duas grandes colônias inglesas que receberam o nome de Rodésias. A Rodésia do Sul é hoje o Zimbabue e a Rodésia do Norte é a atual Zâmbia.
Em 1886, descobriu-se ouro no Transvaal, mais propriamente em Witwatersrand que é uma extensão de uma cadeia de montanhas. A palavra Witwatersrand vem do “africâner” e significa “o cume das águas brancas”.
O “Rand”, como Witwatersrand é conhecido, é fonte de 40% do ouro explorado no mundo. A área de exploração se estende por mais de 100 km e as minas podem atingir, em alguns lugares, 3,6 km de profundidade.
A moeda sul-africana, o rand, foi nomeada em homenagem ao local.
O ouro chegou a ser explorado na periferia de Johanesburgo que se tornou uma cidade muito rica e importante. Ainda hoje, Johanesburgo é o centro financeiro da África do Sul.
Primeira guerra bôer
Em 1867, Lord Carnarvon, Secretário de Estado para as Colônias, propôs convidar representantes das várias partes da África do Sul, para uma conferência em que se estudaria a criação de uma federação de todas essas partes.
A conferência, realizada em Londres, em 1876, não atingiu seu objetivo.
Lord Carnarvon decidiu então tomar outro caminho e anexar o Transvaal. Deu ordem a Theophilus Shepstone, que foi legado de Natal na conferência de Londres, para levar a cabo a anexação. Shepstone se entendeu com Sir Bartle Frere, gorvernador da Colônia do Cabo. Por sua posição, Frere seria o chefe da missão.
Shepstone, com uma pequena cavalaria, entrou no Transvaal e dirigiu-se a Pretória, no dia 4 de janeiro de 1877. Conferenciou com a Assembléia do Transvaal durante quatro meses e, no dia 12 de abril de 1877, proclamou a anexação do Transvaal ao Império Britânico.
Quando Shepstone anexou o Transvaal, o Vice-Presidente desse país, Paul Kruger (eleito Presidente em 1881) foi um dos poucos que protestou. Quando seu protesto não foi atendido, formou um triunvirato com Piet Joubert e Marthinus Pretorius, com o expresso fim de resistir aos britânicos.
A primeira guerra bôer começou em 1880. Os bôeres sitiaram Pretória, Potchefstroom e Lydenburg. Derrotaram os britânicos em Laing’s Nek e Manjuba. A captura de Manjuba teve muita repercussão. Foi grande o entusiasmo no Estado Livre de Orange e entre os “africânderes” que viviam na Colônia do Cabo.
Após a humilhante derrota, o governo inglês, cujo Primeiro Ministro era Gladstone, optou pela negociação.
Em 05 de abril de 1881, foi assinada a convenção de Pretória. Por ela, a Grã-Bretanha reconhecia a independência do Transvaal. Por outro lado, o Transvaal reconhecia a suserania da Grã-Bretanha, simbolizada por um residente britânico em Pretória.
Em fins de 1883, o Presidente Kruger viajou para Londres a fim de negociar. Seu objetivo era a independência completa do Transvaal. Ele conseguiu o que queria na Convenção de Londres, de 27 de fevereiro de 1887. Com ela, eliminou-se a suserania e o residente retirou-se de Pretória.
Segunda guerra bôer
O ouro atraiu muitos imigrantes.
Doze anos após a descoberta do ouro, a população do Transvaal quase dobrou.
Havia pouca afinidade entre os dois grupos populacionais: o antigo e o novo. O primeiro constituía-se de famílias grandes, tradicionais e religiosas; o outro de jovens aventureiros, geralmente solteiros e sem religião. A sociedade bôer era agrária e quase autárquica. Os recém-chegados, chamados pelos bôeres de “uitlanders” (estrangeiros), vinculavam-se às minas e suas indústrias associadas.
Paul Kruger, antevendo que em futuro próximo haveria mais uitlanders do que bôeres, nunca lhes deu o direito de voto.
A riqueza do Transvaal, trazida pelo ouro, despertou nos ingleses a velha idéia da anexação.
O governador da Colônia do Cabo, que era, na época, Sir Alfred Milner, havia preparado um ultimato ao governo do Transvaal. Porém, antes que ele o enviasse, Kruger confrontou-o com o seu ultimato. Exigiu a imediata retirada das tropas britânicas reunidas nas fronteiras do Transvaal, a retirada de todos os reforços britânicos e que nenhuma tropa nova britânica fosse enviada. O governo britânico declarou que essas exigências eram inaceitáveis.
Após essa declaração, as hostilidades começaram em 11 de outubro de 1899.
A princípio, os bôeres tomaram a iniciativa. Invadiram a Colônia de Natal no sul e a Colônia do Cabo no oeste. Os bôeres continuaram obtendo outros êxitos, vencendo várias batalhas.
A Grã-Bretanha, no entanto, era muito mais forte e, quando resolveu exercer sua força, anexou não só o Transvaal, mas também o Estado Livre de Orange.
O general Radvers Buller, após muitas derrotas, foi substituído pelo Marechal de Campo Lord Roberts (Frederick Sleigh Roberts), retirado da reforma para esse fim. Para auxiliá-lo no comando estava Horatio Herbert Kitchener, militar com longa experiência e que também chegaria a Marechal de Campo.
O exército britânico, reforçado e bem armado, partiu da Cidade do Cabo, ao longo da ferrovia, em direção a Kimberley. Rompeu o cerco que os bôeres tinham feito a essa cidade. Em 13 de março de 1900, Roberts entrou em Bloenfontein, capital de Orange. O Estado Livre de Orange foi anexado ao Império Britânico, com o nome de Colônia do Rio Orange. Em 31 de maio de 1900, Roberts tomou Johanesburgo e em junho tomou Pretória. Em 3 de setembro de 1900, a República da África do Sul (nome oficial do Transvaal) foi anexada e passou a ser Colônia do Transvaal. Nesse mesmo ano, Roberts renunciou, passou o comando a Kitchener e deixou a África do Sul.
O derrotado Paul Kruger foi para Lourenço Marques e lá embarcou para a Europa, exilando-se na Suíça.
Os bôeres ainda fizeram uma guerrilha que durou até 1902.
Para derrotar a guerrilha, Kitchener fez as maiores barbaridades. Para atingir os guerrilheiros, confinou suas mulheres e filhos em campos de concentração que eram cercados de arame farpado e vigiados constantemente.
Criaram-se 44 campos para brancos, nos quais confinaram 120 mil mulheres e crianças. Para os negros foram feitos 19 campos. Brancos e negros sofreram muitas privações e vários foram torturados. Calcula-se que só de crianças brancas morreram 22 mil.
Finalmente, em março de 1902, os guerrilheiros se deram por vencidos e entraram em negociações com os ingleses.
Nas discussões então havidas, os ingleses foram representados por Kitchener e Milner. Cinco generais representaram os bôeres. Um deles, Jan Christian Smuts, estava destinado a ocupar altos cargos e foi várias vezes Primeiro Ministro.
Ao fim de uma reunião em Pretória, no dia 31 de maio de 1902, foi assinado o tratado de paz. Orange e Transvaal passaram a fazer parte do Império Britânico.
Acontecimentos posteriores
Em 1910, os “africânderes” reconciliaram-se com os britânicos. Como resultado, o Transvaal, Orange, Natal e a Colônia do Cabo passaram a integrar um Estado unificado, a União Sul-Africana, que se vinculou à Commonwealth.
Em 1961, essa União deixou a Commonwealth e passou a ser um país inteiramente independente: a República da África do Sul.