Mil sessões para Bush
* Escrito quando Bush era Presidente dos E.U.A.
As produções do que chamo artes nobres – ao contrário de outras como a Medicina, a Engenharia, a Culinária, a Moda ou a Arquitetura, que tendem ao cuidado com o corpo e satisfação de suas necessidades – são, como também encontramos nos escritos de Hegel e outros filósofos, expressões do que chamamos “Espírito”; ou seja, de instâncias da Consciência onde são desenvolvidos ideais estéticos, éticos, morais, que tendem a nortear a produção expressiva de nossas culturas à promoção do íntegro desenvolvimento do caráter Humano de nossa insistente desumanidade.
Entre elas, uma das mais fascinantemente modernas é o Cinema, poderoso instrumento multimídia à difusão popular das artes plásticas e suas representações pictóricas, cenográficas, fotográficas e informáticas à construção do Humano e de sociedades mais justas, naturalmente com o imprescindível auxílio das artes do Teatro, da Música e da Literatura à demonstração virtual das causas e conseqüências de nossas perversidades e misérias, de nossa violência e barbárie, mas também de nossas fantasias e esperanças.
Entretanto, alguns teóricos afirmam que, considerando a extensa gama de expressões culturais que demarcaram os princípios ativos à produção de nossa civilidade, nenhuma, até agora, conseguiu realizar a contento seu intuito educativo ao melhoramento de nossos sentimentos, pensamentos, desejos e ações subjacentes à plena realização de nossa planetária Humanidade.
Em seu livro Gramáticas da criação o pensador parisiense naturalizado norte-americano contemporâneo George Steiner escreveu: “O liberalismo do século XIX e o positivismo científico consideravam evidente em si mesma a expectativa de que a difusão da escolaridade, do conhecimento, da produção científica e tecnológica, do livre intercâmbio e do contato entre comunidades diversas resultaria numa melhoria concreta da civilidade, da tolerância política e dos mecanismos dos negócios públicos e privados. Cada um desses axiomas de bem fundada esperança provou-se falso. Não foi só a educação em si que se mostrou incapaz de fazer com que a sensibilidade e o conhecimento resistissem à irracionalidade assassina. Num nível muito mais perturbador, a evidência comprova que a própria intelectualidade refinada, o virtuosismo estético, a apreciação das artes e a eminência científica colaboraram ativamente com as determinações totalitárias ou, no melhor dos casos, permaneceram indiferentes ao sadismo que as circulava. Concertos fulgurantes, exibições em grandes museus, publicações de livros eruditos e consideráveis desenvolvimentos da pesquisa acadêmica, tanto no campo científico quanto humanista, floresceram próximos a campos de concentração. A engenhosidade tecnocrática ou se submeteu ou permaneceu neutra à convocação do inumano”.
Assim, de modo geral, parece evidente que, apesar de todos os argumentos e produções cinematográficas voltadas a tal tarefa (com o reforço, como observei, de todas as outras expressões de nossas artes nobres), a maioria de nós continua subjugada as conseqüências devastadoras, em nível individual e coletivo, dos impulsos insistentes de nossos instintos bestiais remanescentes.
Para tais teóricos do comportamento “Humano” somos ainda um bando de selvagens contemporâneos que se digladiam em meio a selvas de pedras em busca da satisfação prepotente de cruéis mesquinharias. Um macro-exemplo disso? A recente recusa do império norte-americano à participação responsável entre países unidos à vigilância de suas desumanas e sistemáticas influências destruidoras de vidas sobre o planeta.
Para explicar mais essa nefasta atitude do mais ilustre sobrinho de Tio Sam eu poderia não apenas, como fiz aqui, fundamentar com as palavras de Steiner meus argumentos sobre a existência de nossa ignorância crônica que, desde os pré-históricos, parece ainda nortear nossos desejos e atitudes mais secretas, mas afirmar que George W. Bush, atual presidente dos Estados Unidos, parece não gostar de Cinema!
Apesar dos cineastas de seu país serem atualmente os mais eficientes nas técnicas de produção e reprodução de imagens em movimento, Bush não parece ter dedicado atenção a filmes como Idependence Day, onde seu país participa de um plano mundial de união à resistência predadora de alienígenas, ou O dia depois de amanhã. Neste, particularmente, depois de ser surpreendido por uma série de conjugados cataclismos, que tornam impossível as condições de vida do Pólo Norte a regiões do globo pouco acima do Equador, o arrogante império norte-americano se vê obrigado a reconhecer sua submissão às imprevisíveis e devastadoras forças da Natureza e promover a evacuação de sua população para países do Terceiro Mundo, para cuja atual situação de pobreza os Estados Unidos tem sido principal promotor.
Para fazer jus ao papel de denunciante de injustiças, os roteiristas de O dia depois de amanhã mostram como, inesperadamente, o jogo pode mudar, e então vemos na telona uma multidão de norte-americanos, num primeiro momento, sendo impedidos de transpor as fronteiras que demarcam os limites geopolíticos entre a América do Norte e o México. Com o agravamento da situação mundial, contudo, os mexicanos, mais próximos representantes terceiro-mundistas da então abalada prepotência imperial norte-americana, terminam por aceder à solidariedade que, em momentos de aflição, nos é peculiar, expressão das dificuldades naturais e político-financeiras constantes pelas quais passam todos os que subvivem abaixo da linha do Equador, e aí dão finalmente guarida aos sobreviventes do povo cujos administradores maiores foram seus arrependidos algozes.
Mesmo considerando a afirmativa de George Steiner, o exemplo de Bush e de todos os seus antecessores, entre outros, penso que talvez o Cinema pudesse promover uma esperança de mudança na consciência do atual democrático-ditador norte-americano se, a exemplo daquele personagem transviado do filme Laranja Mecânica, o amarrássemos a uma cadeira e o forçássemos a permanecer de olhos abertos diante de uma gigantesca tela à expectativa de ininterruptas mil sessões das incômodas imagens das destruições produzidas em O dia depois de amanhã, à efetivação real das quais profeticamente Bush está entre os principais responsáveis.